Volume 1
Capítulo 19: Torre do Sino
O sino estava quebrado pela lateral da construção, unindo-a ao solo da cidade. A pequena casa na lateral estava completamente destruída, mas se unia à paisagem, tornando-se um novo marco da cidade de Markshal. Madly conseguia ver diversos nomes esculpidos no sino, um memorial aos mortos da cidade. Aos exilados que tentaram ganhar sua vida na exploração das ruínas e aos seus filhos que sofreram sua dor. O ambiente era belo e calmo. A torre se erguia à sua frente, com barulhos de vozes e passos ecoando em uma sinfonia alegre. Havia vida naquela ruína abandonada, em meio à destruição de uma zona da morte, poderia até mesmo se ouvir música. A Lenço Branco tinha a sensação de estar se aproximando de uma taverna suja do leste do Império, com música alta. O som de vozes repercutindo em meio a gargalhadas, como se o mundo lá fora não se importasse. Entretanto, o cheiro a chamava de volta: além do padrão de tavernas, suor e carne queimada, havia a especiaria que ardia nas narinas. Eram os tons únicos de canela e outros condimentos, misturados ao ferro do sangue dos Outros.
“Meu fluxo está abalado só em sentir esse cheiro. A especiaria é mesmo poderosa.”
Esse foi o primeiro contato de Madly com a especiaria e a sua cabeça doía apenas em pensar em seu fluxo. Movimentos menores repercutiam em seu corpo, suas emoções pareciam afloradas, o suor saía de seus poros com maior frequência.
A Lenço Branco pisou na ponta do escudo, o que o lançou em forma de pêndulo para cima. A pulsão desapareceu dos sigilos, o brilho desapareceu, transformando-o novamente em uma moeda que caiu na palma de sua mão.
— Bom truque, para alguém que invadiu a minha cidade. — Disse uma voz masculina que saiu das sombras.
Um homem de um olho só surgiu. Seus cabelos castanhos avermelhados, longos como uma juba, caíam por trás de suas orelhas, similar a um mullet pelo volume.
— Não sabia que o Imperador tinha deixado um filho bastardo nessa ruína. — Madly encarava o homem com a arrogância nítida de sua pessoa.
O homem alto se aproximou. Estava sem armadura, apenas com uma espada bastarda em sua cintura. A roupa era suja e remendada, o que combinava com sua pele bronzeada. Cicatrizes sibilavam em seus braços musculosos e suados. Ele encarou a Luva Branca com seu terno e sobretudo, frente a frente.
— Você está vendo algum soldado Imperial aqui? — Os braços se fecharam mostrando os bíceps e tríceps ressaltados. Virou a cabeça de um lado para o outro como se caçoasse da mulher, mas havia outro interesse: buscar para ver se ela estava sozinha. — Não! O Império não tem poder nesse lugar.
Madly abriu a boca para questionar o homem. Ele era mais alto que ela em 30 centímetros, fazendo-a bater em seu peitoral.
— Então, o que está fazendo em minha cidade? — O homem a cortou, reafirmando a posse do terreno.
“Ele não parece nem mesmo ser do 1° Grau. Será um iniciante? Não... Duvido muito.”
— A arrogância precede a queda. Você é um sapo no fundo do poço achando que é dono do céu. Ponha-se no seu lugar. — Madly não conseguia conter suas ações. Sempre teve um temperamento forte, mas nunca ao ponto de exibi-lo facilmente.
A mão da Lenço Branco tocou na barriga do homem rapidamente. Uma pulsação leve percorreu o seu corpo. Capaz de desnortear qualquer sem grau facilmente; afinal, alguém sem controle de fluxo ter uma injeção de energia faz seu corpo se transformar em uma bagunça por alguns minutos.
Entretanto, nada aconteceu. A essência de fluxo foi impedida de correr após poucos segundos de tocar no homem. A pulsão se desfez de forma natural, apenas causando um arrepio fraco.
A mão do caolho segurou o braço de Madly e aproximou seu rosto do dela.
— Ponha-se você no seu lugar, estrangeira. Se tentar mais uma dessas palhaçadas, arranco seu braço fora. — A força do homem era muito maior do que Madly pensava, mas ela não sentia dor com a pressão em sua pele, ainda não era o suficiente para feri-la.
“Como? Ele tem os fluxos rompidos? Nunca vi algo parecido antes.”
Ela puxou o braço com força, sentindo o leve tranco da mão do homem. Com o braço livre, o encarou, sabia que ele havia sentido dor pelo puxão dela, mas com a força que usou deveria ter quebrado pelo menos os dedos dele. Ela havia menosprezado o rapaz.
— Não estou aqui para brigar. Estou apenas de passagem... — Ela continuava falando quando foi interrompida novamente.
— Não sou um homem paciente! Fale logo o que veio fazer aqui! Sem rodeios. — Ele fechou o punho algumas vezes, sentindo a dor do puxão.
— Seu povo pode estar em perigo. Acreditamos que haja um Coletor de Sonhos nessa cidade. — Ela parou um pouco e se controlou para entrar no jogo. — Na sua cidade.
— Coletor de Sonhos? O que é isso? — O homem a encarou em dúvida.
“Finalmente está começando a me ouvir.”
— Um...
— Você é do Império? — O homem voltou à sua postura hostil e a encarou com raiva.
— Império? Nasci no Império, mas não trabalho para ele. — Madly segurava sua raiva, mas aos poucos estava perdendo seu autocontrole.
“Ele não sabe nem diferenciar um cavaleiro imperial e se declara rei de uma cidade? Poderia sentir pena dele, mas ele não deixa essa opção.”
— Então de que merda você é? — A voz dele não possuía raiva, mas um leve tom de dúvida e confusão em um nível autoritário.
— Sou uma Lenço Branco. — Madly apontou para o lenço em sua roupa. — Uma acólita da Deusa de Duas Faces, membra oficial da Igreja.
O orgulho vazava da voz de Madly. Uma prepotência rara e respeitável que sabia que teria em qualquer lugar. A Igreja de Duas Faces era uma das principais religiões do Império, todos a conheciam e muitos a temiam.
— Uma crente. — Ele resmungou com pouca expectativa nítida em sua fala. — Fale logo o que é esse tal de Coletor de Sonhos.
A mulher ficou um pouco desnorteada com a ignorância do homem à sua frente. Um Lenço Branco era respeitado por todos, pois não gostariam de ter brigas com a Igreja; mesmo que isso não fosse de todo verdade.
— Coletores de Sonhos são seres perigosos que devoram os sonhos das pessoas. Eles se tornam mais fortes a cada sonho que absorvem. Podem devorar parte de sua alma e aumentar seu poder. Se conseguirem se alimentar bem, nada poderá pará-los. Eles se camuflam entre a população e são quase irreconhecíveis.
Madly não se conteve e começou a andar em direção à Torre, tinha coisas para fazer e precisava analisar as outras pessoas. O homem à sua frente com certeza não era um Coletor de Sonhos.
— E por que um deles estaria aqui? Não tem nada nesse lugar que um Coletor queira! Ele gosta de sonhos? Que sonhos exilados têm? — O homem grande andou ao lado de Madly, pau a pau em seu ombro, de igual para igual.
O pensamento lógico do homem a assustou um pouco. Ele não era burro.
“Quase confundi ignorância com falta de inteligência. Ele apenas não sabe das coisas. Não conhece os perigos e os poderes desse mundo.”
— Não sei o porquê ele estaria aqui, mas com certeza está pela cidade. Preciso analisar seu povo, saber se um deles é um Coletor. — Ela olhou para o homem que fixava seu olhar sério sobre o salão da torre. — Ele pode ter se infiltrado nesse local.
O homem segurou no braço dela novamente. O único olho dele encarou-a novamente e depois soltou o seu braço, fazendo-a parar no lugar.
— Eu saberia se tivesse algum ladrão de sonhos no meu povo. E tenho certeza de que não tem. — Ele olhou no fundo dos olhos dela e continuou. — Se você quiser analisar e confirmar a minha resposta, faça-o, mas quero que explique como você sabe quem é um Coletor de Sonhos?
Madly encarou o homem novamente. A forma de falar dele estava diferente, parecia mais consciente do perigo de alguma forma, ou apenas mais interessado no assunto, o que para ela não importava. Precisava encontrar o Coletor de Sonhos o mais rápido.
— Eles conhecem partes pessoais de nossa vida. Sabem informações que ninguém sabe. Assim eles se adaptam à sociedade, surgem como pessoas comuns, aparecendo do nada, e quando se percebe, já roubaram todos os seus sonhos e os de quem está à sua volta.
— Como eles atacam? — O guerreiro estava profundamente pensativo. A mente de caçador parecia elaborar milhares de informações.
— Sua alma é destruída. Como isso é feito? Depende... Golpes ou até mesmo apenas de chegar perto as pessoas caem mortas. Uma cidade inteira teve seus sonhos coletados em poucas horas. 300 mil pessoas mortas. Mas em criaturas mais fortes, ele precisa dar golpes para que isso ocorra.
Madly não sabia se as informações estavam corretas, afinal, apenas vira um Coletor de Sonhos e soubera de outros casos não confirmados por outras Igrejas. O Caso Coelho foi o maior conhecido; os outros eram apenas especulações muito condizentes.
— Porra! Não tem nenhum detalhe marcante? Nada que possa identificar que ele é um monstro? Não quero saber a merda dos feitos deles. Eu entendi que é uma criatura perigosa. — O homem rude se posicionou.
— Seus olhos brilham em roxo quando devoram sonhos. É a única informação palpável que possuo sobre sua forma de ataque. — Madly mantinha sua postura, mesmo irritada.
— Agora sim você falou algo útil!
O homem se manteve em silêncio, deixando Madly passar à frente e adentrar à Torre do Sino. Ele continuou atrás dela pensando, refletindo sobre o assunto. A mulher o encarava a cada poucos passos, apenas para perceber sua quietude incomum. Cumprindo seu trabalho, ela adentrou o aposento.
A torre era um local grande, como o saguão de uma antiga igreja. Havia milhares de móveis jogados em todos os cantos, barracas que se formavam em uma grande feira, vendendo milhares de mantimentos diferentes. Era possível ver armas coletadas nas ruínas, objetos feitos à mão, aparatos medicinais, roupas e, por último, e não menos importante, carne. A carne, por sua vez, parecia uma massa de muco avermelhado cozido ou desidratado. Madly, assustada com o objeto, ignorou todas as outras informações em seu caminho: o número exorbitante de pelo menos 2.000 pessoas (grande parte delas usando armaduras com cotas de couro e armaduras metálicas enferrujadas) e como sua presença era destoante naquele meio.
Ela se aproximou do vendedor de carne. O homem a encarava incrédulo, seus olhos se arregalaram e os beiços foram quase devorados em prazer ao ver uma mulher tão limpa e bela.
— Do que é essa carne? — Madly perguntou com pressa. Havia irritação, medo e desconforto em sua voz.
— Do que mais você acha que é, gostosa? Carne de Outro! — O homem ligeiramente gordo, mas com músculos aparentes, coçou a barba. — Vai se acostumando, querida, se você foi exilada é isso que você vai comer! Mas se quiser alguns ratinhos eu consigo para você, em troca de alguns favores com esse rostinho de porcelana.
O homem riu alto, coçando a barba com os dedos escuros de especiaria. Sua mão direita tocava vagarosamente na fivela do cinto.
— Não deveriam comer isso... Tem alto grau de especiaria. — Ela tentou manter sua face calma, mas embasbacada com a situação.
“Eles estão consumindo uma das maiores e mais perigosas fontes de poder do mundo, como se não fosse nada. Magos morrem em pequenas dosagens. Pessoas matariam por uma pequena quantidade do pó avermelhado que está nas mãos desse comerciante.”
Ela não sabia muito sobre a consequência do uso da especiaria, mas sabia o risco que era alardeado do uso. A população geral não deveria saber disso, pois era um assunto que apenas membros das Igrejas ou cavaleiros do Império sabiam. Entretanto, já vira casos de perda de controle, modificação de fluxo ou até mesmo visões mirabolantes. Saber o básico já a fazia temer, imagina saber o suficiente. Era um material perigoso, que não deveria ser usado de forma cotidiana.
— Alto Grau? Prefere a fome? Poucos morrem por comer carne de Outros. E os que morreram, morreriam de qualquer forma. — Ele a encarou de novo, lambeu os dentes e sorriu. — Então, vai aceitar a minha proposta?
Madly ignorou o homem e rodeou com sua visão o local. A paisagem em seu campo periférico mostrava milhares de homens e mulheres sujos, magros, alguns apavorados, outros valentes. Simbolizavam o arquétipo do Exilado na mente da acólita, mas nada além disso. Não pareciam ter efeitos visíveis do uso da especiaria.
“Eles parecem normais, mas quando utilizei uma pulsão no caolho, ele não sentiu nada. O fluxo de energia deles deve estar encharcado de especiaria. Isso deve impedir o seu avanço, mas os mantém com maior defesa contra essas criaturas? Deve ter outras mudanças que não consigo entender. Por que eu não consigo pensar melhor!”
Uma raiva emergia de sua mente. Uma vontade de bater no homem à sua frente, que a olhava como se fosse engoli-la, emergia, contida no fundo de sua mente.
O cheiro de especiaria crescia e uma vontade de vomitar aumentava cada vez mais. Quase intoxicada pelos poucos minutos no ambiente, ela pegou seu pano branco e o colocou próximo ao rosto, tampando para respirar melhor, como um filtro.
— Forasteira, você quer caçar essa criatura, não é? Acho que não conseguirá sozinha. Meu grupo conhece essas ruas, lutamos contra Outros desde que nos entendemos por gente. Podemos não ter as habilidades que você possui, mas somos capazes e mais adaptáveis que você a esse ambiente.
Madly assustou-se com a voz do homem atrás dela. O guerreiro caolho a encarava com um sorriso. Ele havia deduzido a sensação que a mulher teria ao entrar na torre. Sabia o que ela sentiria ao ter grande contato com a especiaria e o estilo de vida dos exploradores. Uma feição sagaz surgiu no rosto do guerreiro, arquitetando tudo isso desde o início para mostrar seu verdadeiro valor. Para ganhar a futura negociação.
— Podemos ajudar a encontrar o seu Coletor de Sonhos. Até mesmo matá-lo. Eu tenho algumas ideias de quem ele possa ser, e posso caçá-lo. Mas quero saber o que eu ganho com isso. O que a Igreja da Deusa de Duas Faces pode me dar?
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