Volume 1
Capítulo 18: Que a Boa Face nos proteja
Após a entrega do relatório, outros investigadores foram enviados pela Igreja. Fizeram a busca e, quando acharam o corpo do bispo, parte de sua alma havia sido levada. Este era o fato necessário para a confirmação da hipótese do líder do grupo de investigação.
Era mesmo um Coletor de Sonhos.
O Caso Coelho ficou conhecido por todo o Império e Igreja; a destruição de Gastiar foi um grande abalo na expansão do Norte. O Imperador perdeu poder e alguns reinos livres que estavam prestes a ceder pacificamente, voltaram atrás em sua palavra. A Igreja de Duas Faces perdeu um grande bispo, um número enorme de acólitos e, o mais importante, o relicário de Santa Irsabel. A fé do povo do Norte, que acreditava na proteção divina de Duas Faces, nunca mais foi a mesma; e o Coelho desapareceu.
A lembrança do caso era alarmante para os dois Lenços Brancos. A expressão de Madly, sempre concisa, havia perdido seu ar nulo. Os relatos eram muito nítidos em sua mente; havia estudado esse caso várias vezes. Havia diversas informações, inúmeros grupos de busca foram criados com o intuito de encontrar o Coletor. Para quê? Nem ela mesma sabia, diziam que os próprios Cardeais iriam entrar em combate ao encontrá-lo.
Agora, em sua frente, as suspeitas da mesma criatura que havia criado um dos maiores desastres de sua Igreja na última época estavam prestes a ser confirmadas.
Os lábios se remexeram em medo. As unhas cravaram contra a carne da palma da mão. O sangue novo se misturava com o velho. Estava prestes a perder o controle. O coração batia cada vez mais rápido. Conseguia sentir o sangue subir e atiçar as veias de sua testa. Ela estava prestes a desmaiar de pavor e desespero.
Calvirs observou a feição da mulher mudar. Ela deu alguns passos para trás, prestes a tropeçar entre as correntes. As ações dela apenas reafirmavam suas suspeitas. O conhecimento do caso era comum entre os novos recrutas, e ele era um acólito na época do Coelho. Havia conhecido outros acólitos de Gastiar no começo, lembrava do rosto de alguns Lenços Brancas que foram enviados para investigação e nunca voltaram. Mesmo que não tivesse perdido ninguém especial, havia sentido os tremores da tragédia; todos da Igreja sentiram esse abalo na época.
O homem estava perdendo seu controle ao ver o estado de sua parceira. Madly não era de se abalar. Já vira inúmeros casos com ela, alguns tão horríveis que nem gostava de se lembrar, mas um Coletor de Sonhos estava em outro nível.
— Acha que é o mesmo? — Calvirs forçou sua voz a sair, como um pato se afogando.
A voz de Calvirs acordou Madly do seu inevitável surto. Um sentimento lógico, treinado, correu pelo seu corpo. Ambos foram treinados para isso por anos. Os relatórios não foram criados à toa. A lembrança do acontecido foi para que não se repetisse.
— Não. O modus operandi é diferente. Esse parece ter tentado ser furtivo, ou apenas queria mandar um recado. O Coelho teria matado toda a população do local e nos esperado em meio aos cadáveres. — Ela retirou as luvas, jogando-as em meio às correntes. — Eu vi inúmeros relatórios, o Coelho é um showman, gosta de chamar atenção. Ele espera os investigadores surgirem, responde a eles cantando aquela música inventada para respondê-los. Ele gosta de chamar atenção.
— Se for outro, ele apenas adentrou aqui para matá-lo? Fugiu dos outros sem fazer nenhum barulho e desapareceu? O sangue é fresco. O que ele queria nos avisar? — Calvirs se respondeu, olhou o corte na barriga do prisioneiro machucado, a forma como os outros se portavam, os arranhões nos sigilos. Alguém que quisesse deixar um recado faria algo muito melhor, alguém que quisesse ser furtivo para matar um Arque saberia quebrar runas, ou burlar o relatório de quebra. — Ele é novo. Um Coletor inexperiente...
Madly encarou o parceiro e correu o mesmo raciocínio. Parecia lógico, mas havia poucas provas para comprovar e muitas suposições que vinham dessas criaturas, nem ao menos sabiam se tinham mesmo essa concepção de jovem e maduro, inexperiente e veterano.
— Precisamos enviar um relatório. Eu vou correr para a população local. Se ele for mesmo um Coletor novo, vai coletar o máximo de sonhos possível aonde quer que passe. Além de que podem ter informações de alguém novo no local.
Madly não esperou a resposta de Calvirs. A mão correu pelo bolso interno do sobretudo e puxou entre os dedos da mão esquerda moedas prateadas. Ao mesmo tempo, correu em direção ao corredor de pedra o mais rápido que pôde. Sua velocidade era humanamente incomum, afinal estava próxima do 2° Grau; a melhoria de seu corpo e o aumento de fluxo eram nítidos do seu treinamento como Lenço Branco.
Em passos velozes entre a escuridão, viu o clarão de luz do corredor, sem frear, jogou as moedas contra a cela metálica e sua parede. Uma explosão se formou, a construção antiga tremeu com o impacto. Um rombo fora criado pelo andar, pedaços de pedra caíam contra o solo como chuva. Do meio da nuvem de pedras e poeira, Madly saltou em queda livre. O corpo se fechou diminuindo a área de contato, como uma pequena bola de canhão. A cartola voou, soltando o coque que prendia seus cabelos. A roupa tremia contra o vento, preparando-se para o impacto contra pequenos casebres mais sólidos. A menos de um metro contra o solo, a Lenço Branca jogou uma moeda prateada da mão direita. Essa era diferente das outras, criada por um Luva Prateada focado em sigilos, especificamente para ela, com a qual ela aprendera a usar seu fluxo melhor para ativá-la, como parte do treinamento para uma técnica avançada dos Luvas Prateadas.
O fluxo da garota emergiu sobre a moeda, fazendo seus sigilos brilharem. Madly pulsou corretamente, pois um pequeno erro teria a machucado.
— Senhora das Unções, Aquela de Duas Faces, Deusa que revela a verdade. Ajude sua seguidora, promova a verdade em minhas palavras. Eu suplico, Oradora da Coragem, Protetora dos Justos, mostre a verdadeira face desse objeto. Não negue a minha súplica. Remodele-o à sua verdadeira forma.
A oração foi finalizada, um passo importante para uma seguidora da Deusa. Madly sabia que não era necessário efetuar a oração, mas ainda era apenas uma desalmada, precisava de sua fé para efetuar os avanços futuros. Tudo que tivera até agora foi por ela. Seu fluxo poderia sustentar sozinho a ação dos Sigilos, mas se um dia quisesse não precisar usá-los, precisaria treinar a técnica de revelar as verdades.
A moeda ativou-se, tornando-se um grande escudo prateado de 1 metro de diâmetro. Os desenhos pelo seu entorno eram belos. Os sigilos se uniam aos detalhes do metal que formavam um belo olho prateado no centro. O tom monocromático reluzia à luz do sol da cidade arruinada.
Madly pousou sua mão direita sobre o escudo e o puxou para mais perto de seu corpo. Pisou com os dois pés sobre ele, aceitando o impacto. Os sigilos brilharam novamente, e grande parte do fluxo foi gasto para manter o objeto em sua verdadeira forma e não ser destruído. Faíscas caíram contra o teto de pedras e o escudo deslizava com facilidade pelo meio, enquanto a Lenço Branco combinava seu fluxo com equilíbrio, disparando entre as ruelas da cidade em direção à torre do sino com uma velocidade assombrosa.
...
Calvirs olhou o corpo do prisioneiro morto mais uma vez. O pavor ainda se remexia sobre os seus ossos, dificultando o mover do seu fluxo, mas era treinado para isso. Além de que, não era um mestre em uso de fluxo e sabia que nunca seria, mas era bom em criar sigilos, que poderiam ser bengalas para os seus feitos. Aprendera o suficiente para não precisar tanto de sua energia para isso. Pegou uma moeda de seu bolso, uma que passou horas para fazê-la e que finalmente seria útil para o caso. Não pensava sobre o preço dela nesse momento, apenas no que deveria ser feito.
Posicionou a moeda branca leitosa, um pouco mais grossa do que as padrões entregues para Lenços Brancos, em cima de seu polegar e a atirou para cima. Uma pequena pulsação de fluxo específica foi jogada para a moeda. O fluxo rodeou os sigilos, entregando-lhes energia. O objeto começou a girar naturalmente, até aumentar sua velocidade. Brilhos brancos começaram a surgir sobre a moeda, ramificando-se em pequenos sigilos menores à sua volta. A velocidade aumentou ainda mais, um zunido estranho, uma cacofonia de metal sendo amassado, perfurou os ouvidos de Calvirs. Ele sabia que era um bom sinal.
— A Deusa de Duas Faces, senhora dos justos, a que perdeu um olho para que todos possam ver. Eis a minha vontade. Eis a minha súplica. — Calvirs jogou seu cabelo para trás e colocou o olho direito para frente, colocando a face o mais próximo possível entre o prisioneiro e a moeda que girava no ar. O ar quase cortava ao se aproximar da moeda que brilhava e se quebrava à sua frente. Com a mão tampando o olho esquerdo, ele continuou a oração. — Que meus sentidos sejam entregues por meio da visão. Que seja dividida entre seu outro seguidor, Valen Kiros, até o meu olho se fechar. Por favor, Senhora dos bons, não me vire sua outra face, não me mostre a dor, mas tenha compaixão do seu devoto...
A dor não o deixou terminar. A moeda explodiu em sua frente e o brilho branco se uniu ao pó metálico, adentrando o seu olho direito. A dor absurda quase o cegou, mas a visão turva começava a se acostumar. Seu olho, de tom castanho, agora era branco leitoso, com pequenos vislumbres de prata que aumentavam aos poucos.
— Funcionou... Merda! Funcionou... — A euforia não continha sua dor, mas Calvirs conseguiu enviar sua visão com sucesso.
Uma compressão se formou na retina, similar a dedos esmagando o globo ocular. Calvirs sabia o que isso significava. Padre Valen havia recebido o comunicado. Um Luva Prateada estava vendo pelo seu olho nesse exato momento.
Vários pensamentos vieram à sua mente nesse momento. Todos picotados e cortados para não enviar as informações erradas para o Luva. A dor diminuiu aos poucos e ele respirou fundo para voltar ao controle após a euforia de sucesso.
— Padre Valen Kiros, eu, Calvirs, Lenço Branco, venho lhe enviar um relatório de suma importância. Viemos analisar uma ruína na Pinça Imperial, fronteira com o Reino pseudo-destruído de Ralzalen, atualmente uma Zona Morta. A antiga cidade, conhecida como Markshal. Um sigilo da Nova Ordem foi quebrado por um alvo desconhecido, o prisioneiro dentro da cela foi morto por um ataque de alma.
Calvirs se aproximou aos poucos do corpo do homem. Olhou fundo na ferida e enfiou sua mão por dentro do corte. Pulsou um pouco de fluxo para dentro, sentindo as centelhas da alma distantes, quase desaparecendo.
“Não tenho capacidade para entender como foi o ataque, mas espero que Padre Valen consiga discernir pela minha tentativa... Ele deve estar ouvindo meus pensamentos agora. Perdão, Padre Valen Kiros.”
Uma dor surgiu novamente em sua córnea, confirmando-o para continuar.
— A Lenço Branco, Madly, confirmou a hipótese de que apenas parte da alma foi levada. Pelo golpe único e pela forma como a alma foi levada. Acreditamos que possa ser um Cole...
Antes que Calvirs pudesse terminar a frase, o brilho de seu olho apertou-se com mais força. Sangue vazou de suas córneas e ele não se conteve em gritar. O brilho aumentou e ele sentiu seu fluxo sair do controle, uma energia irregular estava passando pelo seu comando. Um recado estava surgindo em sua frente.
Alerta Máximo! Cumpra seu papel na missão: Defenda a área e procure entre os civis o Coletor de Sonhos. Qualquer criatura que sair da cidade deve ser eliminada automaticamente. Force uma quarentena total.
O Coletor deve estar procurando sonhos próximos. Tente segurá-lo o máximo possível. Não o deixe fugir, mesmo que leve a sua vida. Estou distante, mas chegarei o mais rápido possível, me dê 1 semana.
O coração de Calvirs pulsou. O medo se tornou nítido em sua frente. Seus olhos encararam o cadáver do prisioneiro, imaginando que seria o seu fim. Essa era uma missão suicida. 1 semana preso em uma cidade abandonada com um Coletor de Sonhos? Ele não tinha capacidade de tal feito.
“Novas tropas chegarão junto comigo. Não podemos sinalizar nada ao Império. A informação não pode sair dos muros da cidade. Faça seu trabalho o melhor possível.”
“Que a Boa Face lhe proteja!”
O relatório forçado foi finalizado. Calvirs encarou os pedaços da moeda caídos contra o solo e seu sangue vazando do seu olho.
— Que a Boa Face nos proteja.
Nota do Autor: Olá, pessoal! Desculpa a demora para atualizar a novel. Tive alguns problemas de saúde e estou melhorando agora. Para pedir perdão pela minha ausência fiz esse pequeno combo. Espero que gostem!
Não se esqueçam de sonhar!
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios