Volume 1
Capítulo 17: Alma Quebrada
— Este lugar é normal demais para uma ruína da Nova Ordem. Digo, é macabro, obviamente, mas é apenas uma prisão antiga.
A moeda sibilou entre os dedos de Calvirs e disparou como uma bala, atingindo o peitoral de um Outro armadurado, um antigo cavaleiro. Sangue avermelhado e uma massa mucosa explodiram, não deixando nada da criatura além de uma poça carmesim.
Madly retirou a cartola e passou a mão pelos cabelos presos para limpar um respingo de carne. Seus olhos fuzilavam Calvirs.
— Além dessas criaturas! Não sabia que poderiam existir tantos Outros nesse lugar. Deveríamos ter pensado que vieram aqui por algum tipo de energia poderosa.
— Os Outros não tem um padrão de influência. Afirmar que vieram aqui por alguma energia é uma falácia. Nem mesmo uma raça padrão essas criaturas possuem. Por isso são categorizadas como Outros, mesmo que eu odeie esse nome. A igreja da Eterna Caçada deveria trabalhar mais nas nomenclaturas. — Madly respondeu, séria, enquanto adentrava a prisão. Calvirs a seguia, já girando outra moeda entre os dedos.
— Não foram os Perseguidores do Império que criaram o termo? Já que os Demônios usam essas criaturas para aumentar seus poderes... avançar de Grau e tudo mais.
Uma outra criatura começou a se levantar. Imediatamente a moeda que rodava em sua mão foi arremessada em sua cabeça. Explodindo os miolos carmesins, pedaços de armaduras e o sangue gosmento do Outro.
— Continue gastando sua energia com eles... — Madly ironizou. — Será ótimo se surgir algo pior.
— Madly, você sabe que sem fui ruim em economia de energia de alma. E essas criaturas podem se tornar um perigo para nós, imagina se muitos se unirem contra nós? Vai saber como esses Outros funcionam. Melhor prevenir.
— Justo. Então use as mãos, não os sigilos.
Calvirs deu um sorriso, abaixando seu chapéu-coco. Ele olhou para suas roupas impecáveis, abriu a boca para argumentar, mas Madly já se afastava, e a careta que ela lhe lançou encerrou o assunto.
— Os Outros podem ser usados para vários fatores — ela continuou, subindo a escadaria. — Os esporos que saem de seus corpos são conhecidos como "especiarias", um dos ingredientes mais raros do mundo. — Ela fez uma pausa e olhou para Calvirs, como se lesse sua mente. — Não estes, mas os verdadeiros. Aqueles com almas poderosas e Graus avançados. Os Demônios os usam para atingir grande poder, obviamente com consequências, mas magos desse tipo não se importam.
— A falta de fé os leva a esses caminhos — Calvirs disse, decepcionado. — Se orassem para a Deusa de Duas Faces teriam um caminho brilhante pela frente. Poderiam chegar até mesmo a Bispos.
Calvirs parecia um pouco decepcionada. Lembranças vinham a sua mente de quando adentrou para Igreja, muitos outros tentaram seguir caminhos distintos e muito morreram por isso, ou não chegaram nem perto de onde está hoje.
— Eles são gananciosos. Desejam se tornar deuses, acreditam na apoteose. O que é uma blasfêmia, mas para tais pessoas que fariam de tudo por poder. Isso é o de menos.
Madly conhecia um pouco do passado de Calvirs. Todos os Lenços Brancos, Acólitos de investigação da Igreja de Duas Faces, vinham de um meio parecido, sonhando em um dia subir na hierarquia e se tornar um Lente Prateada, elite da igreja e seu verdadeiro poder
— Mas não se preocupe, não encontraremos Demônios aqui, não tão perto do Império. Por isso nós fomos enviados, e não os Perseguidores. Deve ser outra coisa.
Madly parou, pensativa. A junção dos fatos era óbvia.
— Merda, Madly. Este lugar é uma área de cultivo do Império? Eles estão criando Outros?
A pergunta saiu antes que ele pudesse se conter.
— Não é bem assim que funciona, Calvirs. É mais complicado do que parece. O Império apenas deixa os Outros se proliferarem em uma área abandonada, sem controle sobre os exilados que entram aqui. — Madly subiu para o próximo andar. — Não estou defendendo o Império, a Deusa sabe que pouco me importo com eles. Mas este território estava parcialmente sob nossa jurisdição por causa da Ruína. Por isso fomos enviados. Se não fosse por isso nem tocaríamos nesse lugar.
— Porque não colocam guardas? Não os criam em cativeiro?
— Como vou saber, Calvirs? Não sou parte do Império! Eles devem ter os motivos deles, se não já teriam feito a muito tempo. O Império tem muitos problemas para combater, mas isso não tem a ver conosco.
Madly mentiu, isso obviamente tinha a ver com as igrejas. Todas as igrejas estavam nesse processo. Havia territórios importantes além do oceano, em que outras igrejas estavam explorando. Os afogados estavam voltando e os Ancorados logo precisariam de reforços. Demônios estavam tomando poder de reinos menores e formando suas próprias massas de guerras. E a influência das igrejas começava a se bater. Tudo estava conectado, ela apenas não sabia os fatos.
Calvirs estava levemente angustiado, mas não o suficiente para perder o seu foco. Após entender os fatos acalmou sua mente. Apenas precisava fazer seu trabalho. Entretanto, pensar em como o Império funcionava era complicado, como parte da igreja as vezes tocava em alguns fios soltos, mas sabia que para o seu bem não deveria mexer nisso. A igreja não entraria em guerra pelo sumiço de Lenço Branco curioso. Apenas Lente Prateada podem tocar nesses assuntos e tem poder para sustentar tais feitos.
— Estamos nos aproximando. Sinto um grande fluxo de alma. Um sigilista habilidoso fez esta cela.
Madly se aproximou do final do corredor. Observou a escuridão a frente se ajoelhou para tocar na fresta onde o portão havia descido.
— O sigilo foi rompido, mas pelo fluxo vazado a energia ainda está sobre o ambiente. Quem fez isso não é um sigilista. Não seria tão descuidado.
— Talvez o tempo em que os Outros bateram no portão possa ter enfraquecido o sigilo. Vai se saber quantos anos eles ficaram batendo aqui?
— Bem possível, mas deveria ter algum sigilo de rompimento de alma.
— Mais provável Quebra mental. É bem comum de se usarem por sigilistas dessa época.
Respondeu Calvirs com um olhar sério para o solo. A bela mulher encarou sem nenhuma surpresa e deu um leve sorriso de canto de boca como contribuição. Um dos raros de sua pessoa.
— Parece que seus estudos de sigilos estão fazendo efeito. Logo, será um grande sigilista.
— Claro, Madly, nem todos tiveram a sua sorte. Entrar na igreja com 16 anos e aos 25 consegui se tornar uma Lenço Branco. Com sua aptidão, eu nem pensaria em sigilo.
Madly se manteve quieta. Qualquer resposta iria parecer soberba. Ela sabia que era boa em manipulação de fluxo de alma. Sabia também que conseguiria chegar no 2° Grau em alguns anos. Era uma questão de tempo até se tornar uma Luva Prateada. O sonho de muitos era um fato para ela. E assim que conseguisse, poderia tentar buscar uma nuance de alma. Após esse processo, chegar a uma Legitima seria possível.
— Vamos entrar? Os sigilos que prendem essa escuridão não vão durar. Logo, tudo inanimado dentro irá desaparecer. — Calvirs olhou para a fenda. — É uma pena. Deveria ser um belo sigilo.
— Você fala como se tivéssemos capacidade de vê-la. Nossa mente seria destruída.
— Infelizmente.
Os dois adentraram a escuridão em silencio. Em alguns passos chegaram a milhares de correntes ao solo. Parte da escuridão já havia desaparecido deixando o tamanho da cela muito menor do que deveria ser.
Os dois Lenços Brancos se olharem entre-si com caute-la. Ambos sabiam o preço desse metal e para que ele era usado: prender e selar prisioneiros extremamente perigosos que não deveriam ser mortos. Os motivos foram perdidos junto com a história da época.
— Você acha que... ele se soltou?
Calvirs perguntou incomodado com a situação. Se o que quer estivesse preso aqui por anos se soltou. Seria um perigo em uma escala muito maior do que seu calibre.
— Quebrar estas correntes é quase impossível, não importa a nuance de sua alma ou o Grau de seu poder. Seria um feito para um Magnus, ou superior.
O homem girou a moeda mais rápido entre os dedos. O fato de Madly não ter respondido diretamente à pergunta era a pior das respostas.
As correntes se intensificaram no solo até chegar ao seu estopim. Um corpo de um homem estava preso entre elas. Enroladas sobre todo o seu corpo lhe prendendo superior ao solo. Apenas seu rosto e uma parte pequena do peito estava amostra.
A face estava caída para frente. Sangue vazava de sua boca unindo-se aos seus cabelos escuros com mechas brancas carmesins. O queixo belo, pingava sangue fresco que saia de seu nariz.
Calvirs paralisou ao encarar a cena. Observar um homem preso nesse lugar por tantos anos significa algo muito acima da sua ossada. Para tantos usos de correntes da era da Nova ordem, ele deveria ser um ser de extremo poder. Provavelmente um Arque ou até mesmo um Magnus. Para sem alma, como os dois, estava além do seu alcance. A situação beirava um nível próximo aos Cardeais da Igreja, ou até maior.
A cena se tornava ainda mais macabra ao notar o sangue fresco saindo da ferida em seu peito. Um Arque fora morto a poucos instantes atrás.
— O assassino ainda deve estar próximo — disse Calvirs, imóvel.
— Foi um único golpe. De uma lâmina. — Madly, inquebrável, aproximou-se do corpo. — Uma lâmina comum não mataria um Arque, não importa o quão enfraquecido.
Ela estendeu a mão, e seus dedos afundaram para dentro da carne, como um açougueiro em um porco. Para muitos isso seria um absurdo, uma Sem Alma de 1° Grau macular o corpo de um Arque.
— Uma lâmina curta. Perfurou o coração, mas sinto poucos vestígios de fluxo de alma.
Calvirs se aproximou, tocando o rosto do homem morto.
— Um ataque de alma? Devemos chamar os Devotos do Barqueiro? Ataque de almas é muito fora da área de estudo da nossa igreja.
— Os Ladinos estão ocupados. Sempre estão. A batalha do Mar Cinza tomando grande parte do seu foco. Até chegarem aqui a escuridão vai ter levado tudo.
Madly olhou novamente para os seus pés. No fundo, ela temia a escuridão. Sabia que era normal para sigilistas utilizarem no passado, mas ouvira histórias de acólitos que foram levados ainda vivos por ela.
— Você tem razão. — Sugeriu Calvirs. — Talvez um Devorador de Almas? São raros, mas podem ser vistos vagando pelo Império
— É uma boa hipótese para alguém que não é especializado em ataques de alma, mas parece simples demais. Um devorador de almas não deixaria tantos fragmentos de alma para trás. Parece que o ataque retirou algo específico. Grande parte foi deixada para trás e dissipada.
O dedo de Madly remexia dentro do cadáver como um verme.
— Retirou uma parte da alma? Para um propósito específico? Talvez...
Calvirs teve uma ideia distante. Suas mãos tremeram. Ele havia lembrado de um caso a alguns anos atrás. No norte do Império, um Bispo da Deusa de Duas faces, Sacerdote da Igreja de Irsabel, foi morto da mesma forma. Na época não descobriram o que havia feito isso.
— Você... Lembra do caso do Bispo de Irsabel? Na cidade de Gastiar?
Madly congelou. Sua mão caiu do corpo, o olhar perdido em pensamentos. Uma expressão de horror surgiu em seu rosto. Calvirs viu as mãos dela tremerem, os olhos vidrados e os lábios secos.
A mente de ambos disparou, não para uma simples lembrança, mas para o relato que assombrava todos os Lenços Brancos.
Os relatos contam que um grupo de Lenços Brancos adentrava a cidade de Gastiar. A cidade outrora movimentada, completa de seguidores da Deusa de Duas Faces era um símbolo nítido do aumento da influência da igreja por partes mais ao norte do Império. A catedral que estava em construção era o maior feito por toda a região, tudo graças ao antigo bispo que com seu poder conseguiu enraizar cada vez mais a fé. Porem, tudo isso era passado.
O grupo de Lenços Brancos sabia que um ataque havia ocorrido e deveria apenas investigar, mas ao chegar, notaram a cidade completamente silenciosa. Corpos secos, drenados como múmias estavam por toda as ruas. Mortos quase instantemente em seus afazeres. As construções belas estavam vazias, castelos, academias, lojas e mansões intactas, como um museu a céu aberto. O grupo estava temoroso, deveria haver cavaleiros de médio grau do Império protegendo o território e membros da igreja que seguiam o bispo de Irsabel para todos os cantos.
O homem por si próprio era uma figura temorosa, um seguidor que protegia um relicário de uma própria santa de Duas faces Irsabel. Entretanto, não havia sinal de suas existências.
Os Lenços brancos mandaram mensagens e imagens demonstrando toda a situação de Gastiar para sede a Catedral central, ao se aproximarem da antiga igreja de Irsabel não havia nada ali. O grande monumento que se tornava uma catedral, estava completamente destruído. Pedaços de vidros brancos, pilares de mármore polido, desenhos em prata estavas jogados em um montante de entulho. Nada além de lixo.
Os corpos dos acólitos, luvas e diáconos da igreja se reuniam em meio a destruição, mostrando apenas seus membros e trajes quase irreconhecíveis.
No meio de todo aquela destruição estava apenas um ser. Uma criatura que havia exterminado mais de 300.000 pessoas em algumas horas. Vencido cavaleiros imperiais e seguidores de Duas Faces como se fosse apenas uma brincadeira de criança.
Ele trajava um terno preto, com leves tons cinzas. Sua figura, era similar a de um humano, mas pela presença de seu poder todos sabiam que não era um. A aparência física também era pouco vista, afinal seu rosto estava coberto por uma máscara de um coelho, deixando apenas seus cabelos curto levemente avermelhados vibrarem ao vento.
A máscara estava levemente suja de cinzas, os olhos grandes do coelho encaravam os Lenços Brancos a sua frente com zombaria. Ele se sentava entre os destroços enquanto brincava com uma moeda da Deusa de Duas Faces em sua mão. Girando-a de um lado para o outro entre os dedos. Poderia se notar que o homem sorria.
O grupo de reconhecimento tremia de medo. Pavor se posicionava em sua face. Todo menos o seu líder, caíram em joelhos implorando para um milagre da deusa os salve-se, mas a Deusa não havia salvado nem mesmo seu bispo, imagina pequenas Luvas como eles.
O líder posicionou-se em direção a coelho máscara. Sua mão tremia, mas ele precisava levar o relatório. Pelo menos assim sua morte seria útil de alguma forma.
— Quem é você?
O coelho levantou um pouco o rosto. Um sorriso surgiu maior, movendo até mesmo a máscara que se ajeitou perfeitamente em seu rosto. Cantarolando uma música em um ritmo de jazz ele respondeu.
— “Você não é ninguém até alguém amar você. Então encontre alguém para amar.”
Nota do Autor: Tradução da música You’re nobody ‘til somebody loves you de Dean Martin.
O líder do grupo paralisou enquanto encarava o cantar do homem sem pressa. A música continuava.
— “O mundo ainda é o mesmo, você nunca mudará isso. Tão certo quanto as estrelas brilharem no céu.”
O homem ouvia a música em tom alegre contrastando com o ambiente fúnebre. O coelho parecia se divertir com a situação, cantando em um ar nostálgico.
— Por que você fez isso?
O coelho parou de cantarolar e encarou o líder do grupo. Os dois olhos se encararam. E um medo infantil tomou conta do velho homem. Lembranças de sua velha mãe lhe contando histórias de terror para dormir pareciam se tornar reais.
— Essa é a pergunta correta. — O coelho colocou a moeda no bolso e puxou outro objeto. — Queria saber qual sonho um seguidor de alto nível da Igreja me daria.
Os olhos falso da máscara exibiriam pequenos relances de uma luz azul purpura dos verdadeiros olhos do ser.
— E precisava pegar o relicário.
De seu bolso surgiu um olho com a pupila branca prateada, próximo a se tornar um espelho, com diversos sigilos rodeando as córneas.
O líder do grupo caiu de joelho. O medo pousava sobre o seu rosto e todos os sentimentos e sentidos foram enviados para a catedral. A última pensamento antes do fim do relatório foi.
— Um Coletor de Sonhos...
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