Volume 1
Capítulo 16: Espírito de Combate
O sangue de um prisioneiro esquecido banhava uma ruela de Markshal. A terra e a pedra perfuravam sua carne como se fossem parte do mesmo ser. O profanado de sangue desferia golpes com empenho animalesco, tentando destruir o alvo que o ferira. No entanto, o prisioneiro era absurdamente resistente. Após minutos de ataques consecutivos, um buraco se formara no chão, e os tentáculos do Outro estavam encharcados com o sangue de seu inimigo.
O prisioneiro estava com as costas deformadas, mas ainda se mexia. Seus olhos, vidrados, ardiam numa fúria sanguinolenta contra a criatura. A respiração se tornava mais ofegante a cada intervalo entre os golpes. A raiva que borbulhava em Ezkiel não era apenas contra o monstro, mas contra sua própria tolice. Menosprezara o inimigo, acreditara que o Outro seria burro, previsível.
Nada era simples neste mundo. Por que seu primeiro combate seria diferente?
A ira por aquele sorriso bobo que dera antes, pela felicidade de achar que entendia os movimentos do inimigo como se fosse o ataque de um chefe de jogo. Precisava estar sempre alerta. Confiar nos instintos não era o bastante. Precisava esperar sempre pelo pior.
Quando o último golpe soou sobre o corpo do prisioneiro, batendo contra as correntes, o humanoide desfigurado cambaleou, quase caindo de exaustão. Os tentáculos estavam moles, inertes. A boca se movia lentamente.
Naquele instante, o fogo nos olhos de Ezkiel se espalhou por seu corpo. Um impulso de pura vontade emergiu, e ele se levantou o mais rápido que pôde. Segurou a adaga com os braços completamente roxos, os dedos ensanguentados onde as unhas haviam sido arrancadas pelo esmagamento. E avançou. A raiva o fez focar nas feridas que já abrira na criatura. Elas haviam se aprofundado com os próprios golpes do monstro.
A lâmina estava perto de tocar a carne, mas a monstruosidade reagiu. Desabou para a frente, caindo sobre Ezkiel, a boca se abrindo ao máximo para devorar sua cabeça.
Ezkiel, porém, aprendera com seu erro. Focou na defesa. Desistiu do corte e fluiu com o movimento, jogando seu antebraço esquerdo na direção da bocarra da criatura. O Outro mordeu a corrente, assustado. A mandíbula se fechou no impulso, e os dentes rangeram contra o metal indestrutível, sem efeito. Ezkiel não esperou. Puxou a adaga e começou a cravá-la no pescoço exposto do monstro. Finalmente, estava na altura certa.
A adaga entrou na carne até o cabo, saiu e foi cravada de novo. E de novo. Sem parar. Toda vez que a criatura ameaçava recuar, Ezkiel enfiava mais o braço esquerdo em sua garganta.
Os olhos do prisioneiro ferviam em ódio. O sangue do monstro finalmente se unia ao seu, banhando ambos. A vingança era prazerosa. Um sentimento de êxito lhe subiu à cabeça, mas ele o dispersou. Só comemoraria quando o monstro estivesse morto.
Sangue jorrava, mas a criatura retomou o controle. Investiu para a frente, prendendo o braço de Ezkiel em sua boca. Um estrondo ecoou quando os dois se chocaram contra uma parede. A cabeça de Ezkiel quicou na madeira. Uma pessoa normal teria desmaiado. Ele não. Manteve-se firme, desferindo facadas na jugular do inimigo.
O Outro finalmente conseguiu soltar o braço acorrentado e jogou o prisioneiro ao chão. No entanto, o ser era resistente e caiu de pé, as costas jorrando sangue.
Como um vulto vermelho, o tentáculo direito voou na horizontal, direto para a cabeça de Ezkiel.
Sem espaço para recuar, ele correu para a frente, agachando-se o máximo que pôde. O vento assobiou sobre sua nuca. Antes que pudesse reagir, outro tentáculo veio por baixo, acertando sua perna direita em cheio.
Ezkiel girou no ar, uma dor excruciante explodindo em seu membro. Foi jogado a metros de distância. Olhou para baixo, lágrimas brotando, e viu sua perna, torta, virada para dentro. Quebrada na canela.
Babando de agonia, sua visão se afunilou. O osso não estava exposto, mas a dor era tanta que todo o sofrimento anterior pareceu nada. Tudo porque ele quis treinar, porque quis ver se conseguiria um sonho daquela criatura.
Confiando nos instintos, bufando de dor, ele observou o alvo. O monstro tropeçava, quase tombando pela perda de sangue. Os passos eram bambos e o pescoço pendia para o lado, uma ferida aberta espalhando um cheiro de especiarias podres como um chafariz. Os tentáculos derretiam, formando pequenas poças no chão. A criatura se desfazia, perdendo massa e altura.
Ezkiel olhou para a cena. O medo se fora, mas seu fim estava próximo. Em momentos assim, não havia o que pensar. Apenas fazer. Colocou as duas mãos sobre a canela quebrada, estendeu a perna e, com toda a sua força, girou o osso de volta para o lugar.
— AAAAAAHHHH!
O rugido de dor foi tão alto que até a criatura parou. A perna estava ereta, mas mole, inútil. Confiando em seu talento, ele tentou ficar de pé. Não conseguiu. Havia um limite, e ele estava perto. Mal conseguia distinguir a criatura, apenas um vulto vermelho e turvo.
Arrastou-se até uma parede e, usando-a como apoio, ficou de pé em uma perna só. Puxou a adaga para perto. Mesmo destruído, entrou em posição de defesa, as correntes dos braços protegendo seu rosto e peito.
Os dois combatentes se encararam. A criatura sem olhos movia a boca, furiosa, enquanto a cabeça pendia a cada movimento. Os tentáculos agora tinham o tamanho de braços humanos.
O prisioneiro mal se equilibrava, a perna direita pendurada. A cabeça sangrava, misturando-se ao sangue das costas. Os braços estavam roxos, repletos de hematomas. Era difícil dizer qual dos dois era o monstro.
O impasse durou minutos. Ambos esperando que o outro caísse primeiro. Mesmo sendo instintivo, o Outro sabia que atacar de novo poderia significar a morte para ambos.
Ezkiel, por outro lado, pensava o oposto. Tinha uma confiança cega em seu talento. Esguendo-se pela parede, aproximou-se. A dois metros de distância, impulsionou-se com sua única perna boa. O Outro reagiu, jogando seus tentáculos menores num ataque cruzado.
Loucamente, Ezkiel usou os antebraços para aparar os golpes. A dor foi muito maior do que esperava; tanta que a adaga escapou de sua mão. Desarmado, ele se jogou para a frente, enfiou os dois antebraços na boca da criatura e usou todo o seu peso. Fraco, o monstro mordeu involuntariamente e caiu para trás. A cabeça, quase solta, pendeu, e a criatura emitiu um rugido oco, abafado pelas correntes. Seus tentáculos se retraíram, chicoteando as costas de Ezkiel.
Tombaram ao solo, mas desta vez, Ezkiel estava por cima. Começou a martelar com os antebraços, afundando as correntes no crânio do monstro. As batidas não tinham ritmo, apenas força bruta, afundando cada vez mais. Os tentáculos se debatiam, acertando suas costelas, mas ele não parava. Quando sentiu os braços fundos o suficiente, jogou o corpo para a frente e começou a torcer, tentando arrancar a cabeça da criatura.
O Outro, em seu último esforço, mirou na perna quebrada de Ezkiel. Uma chicotada fraca o atingiu, o suficiente para fazê-lo vomitar bile e sangue. Outro tentáculo veio em seu rosto. O instinto gritou para se defender, mas ele sabia que, se o fizesse, perderia a vantagem. O golpe acertou sua têmpora. Um zumbido ensurdecedor ecoou em seu crânio. O tentáculo seguinte acertou sua perna novamente. Mas Ezkiel se recompôs. Martelou com mais força a massa de carne que um dia fora um rosto. Os dentes se desprenderam.
Os tentáculos pararam de se mexer. O som de aço contra osso era o único no ambiente. Incessante. Por minutos. Ezkiel estava em tal frenesi que não percebeu quando a criatura morreu. Continuou golpeando até a cabeça se tornar uma polpa líquida.
"Eu o matei... Matei esse filho da puta!"
O prisioneiro desabou sobre o cadáver. O sangue e pedaços de carne aderiram às suas roupas, limpas há poucos minutos. Aos poucos, a consciência retornou, e com ela, as consequências.
"Nem um sonho. Merda! Tudo isso para nada! O que eu ganhei entrando nessa luta. Queria descobrir como lutar? Pronto! Está feito! Minha perna mal consegue se mover. Meus braços parecem dois vulcões de tanta dor. Minha costa está toda cortada. As costelas estão fraturadas. Que ideia foi essa? Que impulso foi esse de achar que conseguiria vencer uma criatura dessa"
Ele socou o corpo do monstro. Uma raiva de si mesmo.
“Meu corpo respondem bem! Eu achei que conseguiria! Que seria mais fácil! Apenas queria confirmar a merda de uma teoria e melhorar em combate. Mas quem melhoras em combate contra uma criatura dessa! Como eu posso ser tão idiota?”
A visão se afunilou de novo. Estava prestes a desmaiar. O sono começou a acalmar seus pensamentos, e uma estranha sensação de bem-estar surgiu ao ver a criatura morta. O desejo de vencer. De destruir. Em um lugar como este, o instinto de combate era essencial, e o dele havia se fortalecido naquela vitória amarga.
O mundo parecia diferente. Um êxito cruel. Ele estava aprendendo. E um dos maiores aprendizados foi o uso de sua perseverança em combate.
O espírito de combate nascia. Uma vontade ininterrupta de sobreviver.
Ele se levantou, apoiando-se na parede, mancando com sua única perna. Olhou para a ruela e viu a brecha no muro por onde o Outro tentara passar. Esgueirou-se pela passagem estreita, adentrando uma área destruída cheia de escombros.
Deitou-se no chão frio, escondeu-se e fechou os olhos.
"Esses Outros são mesmo fortes."
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