Volume 1
Capítulo 15: Passo em Falso
《 Retorno disponível em 2h12min 》
“O tempo para voltar ao meu mundo aumentou”, pensou Ezkiel, o cronômetro mental brilhando em sua consciência.
“Deve ter começado em três horas. Mas isso não importa agora. Não posso voltar até deixar este corpo em um lugar seguro, e não faço ideia de quanto tempo isso vai levar.”
Por sorte, o retorno não era automático. O fim do tempo apenas disponibilizava a porta de saída.
Ezkiel se esgueirava pelas ruelas da antiga cidade em ruinas, Markshal, rumando para o leste, o mesmo caminho por onde os acólitos chegaram. Precisava ver a Zona da Morte com os próprios olhos, avaliar qualquer chance de fuga. Seus pensamentos corriam junto com seus passos furtivos.
“Mesmo que eu consiga sair da cidade, preciso de suprimentos, porém não tenho a mínima ideia de onde consegui-los. A carne que comi em casa de Lavia parecia ser salgada para fácil armazenamento, mas não vi nenhuma criatura até agora, apenas os Outros.”
No meio da ruela, Ezkiel parou de andar. O pensamento intrusivo de ter comido a carne de um ser que outrora já foi humano era tão repulsivo em sua mente que não conseguia cogitar que esse era o alimento para toda a população da Torre do Sino, mesmo que não fossem muitos.
“Deve ter algum animal aqui perto. Não é possível. Esse é um dos focos a ser procurado em meu caminho para o leste da cidade. Meu segundo objetivo é mais simples, porém mais perigoso.”
Adentrando as ruelas mais estreitas, ladeadas por casas que pareciam favelas desmoronadas, um vulto avermelhado chamou sua atenção. A criatura se espremia, tentando passar por um buraco estreito na parede de um casebre desmoronado.
Ele sabia que esse local era mais perigoso. Seria melhor andar pelas ruas centrais da cidade, de onde os Outros fugiram na chegada da carruagem, entretanto, ele poderia ser facilmente visto por grupos de exploradores e até mesmo pelos próprios acólitos. Pelo menos nessas ruelas os cavalos não conseguiriam passar.
E, por sua vez, seria mais fácil encontrar uma dessas criaturas. Ezkiel encarou a massa avermelhada presa entre a estrutura estreita. Não era nem mesmo possível ver sua forma, apenas tentáculos de carne vermelho-rubi que se espremiam como slimes para dentro, sem sucesso. Alguns elementos pontiagudos, que o prisioneiro acreditava que eram ossos, pareciam ser os causadores de tal cena horrenda.
Ele controlou devagar sua respiração. Estava com medo da criatura a sua frente. Ezkiel não era um lutador, nunca teve interesse em combate. O máximo que sabia sobre essas coisas era o que seu pai lhe contava em seus dias de caçada quando era mais novo. Porém, todos os ensinamentos tinham a ver com uma arma de fogo e uma grande distância do alvo, o que era o oposto nesse momento. Ezkiel apenas possuía uma adaga antiga e precisaria lutar corpo a corpo com uma criatura várias vezes mais sanguinária do que um cervo. Entretanto, ele não estava ali para lutar, mas lutaria se fosse necessário. Queria testar uma de suas habilidades.
“Analisar de Sonhador.”
A criatura parou de se mover. A massa de carne retraiu-se com um rangido de ossos, mas continuou presa.
Nome: —
Raça: Profanado de Sangue
Forma: Deformidade Humanoide
Classe: —
Estágio: Sem alma
Grau: —
Talentos: —
Sonhos Detectados: Nenhum
Informações possíveis: Nenhuma
“Funciona então... Mas não mostra quase informação nenhuma. Pelo menos consigo entender melhor. A raça deles é Profanados de Sangue e possuem diversas formas diferentes. Como eu sou um coletor de sonhos, talvez possuam coletores de sonhos de outras raças? Isso faz muito mais sentido.”
Porém, a revelação mais importante era que não conseguiria ganhar sonhos novos matando os Profanados de Sangue, afinal, eles não sonhavam. Essa era uma notícia horrível para Ezkiel, que planejava conseguir sonhos dessa forma.
A criatura se desprendia cada vez mais da madeira, retornando à ruela em que Ezkiel estava. O sol se aproximava do seu pico, deixando todas as sombras menores pelo ambiente esquecido da cidade. O Outro não parecia enfraquecido pelos raios solares, muito menos se importava com tal coisa.
Ezkiel deu alguns passos para trás. Ainda estava em dúvida sobre entrar em combate. Não queria lutar, mas sentia que precisava. Seu próprio corpo respondia, o enchendo de adrenalina e outros hormônios para a luta. De alguma forma introspectiva, ele sabia, junto aos seus instintos, que não teria escolha. Precisaria quebrar essa barreira de covardia logo. Não teria uma vida tranquila nesse sonho; não havia essa escolha para uma pessoa como ele. A luta chegaria à sua porta e, se não estivesse preparado, morreria. Claro que Ezkiel temia isso, sua mente fraquejava e toda ideia que vinha à sua frente era que ele não deveria fazer isso, mas, em contrapartida, diferente de todas as outras pessoas que estariam nesse estado, seu corpo não travava. Os instintos pulsavam para ele ir para frente. Ele poderia estar nervoso, mas o corpo não tremia.
A adaga continuava ereta para frente. Os cinco sentidos se aguçavam, puxando o máximo de informação possível. A respiração não se tornava ofegante, mas controlada. Parecia que o próprio corpo estava reafirmando isso para o garoto. Pedindo por sua confiança. Implorando para que não desistisse. Ele queria sobreviver. Ele lutaria até o fim. Não importa a dor. Não importa a tortura. Ele resistiria. Ezkiel precisava apenas confiar nessa vontade.
A parede onde a criatura estava presa rachou-se até o teto; uma parte desmoronou para o interior, fazendo-a gritar de dor enquanto se soltava. O corpo vermelho-rubi surgiu, similar a um balão murcho, com dezenas de camadas soltas pelos cantos de sua pele, vazando o líquido avermelhado. Ossos saíam de seu corpo, desordenadamente, o deixando com uma postura mole. A sua semelhança com humanos já fora perdida há muito tempo, porém, entre as camadas, podia-se ver parte da pele escurecida e trapos de roupa. Próximo à cabeça, o Outro possuía uma boca aberta e torta, como um buraco com serras, e apenas isso o fazia parecer um dedão.
Mesmo sem ter olhos, a criatura notou a presença de Ezkiel. O ser horrível começou a se mover para frente em uma velocidade muito maior do que seria possível para sua formação corporal. As camadas avermelhadas se remexeram entre si e dois tentáculos largos transformaram-se em seus braços.
“Ele é bem diferente dos anteriores que vi. Merda!”
O prisioneiro respirou fundo mais uma vez. Aceitando o seu destino, correu para frente com toda a sua velocidade. Nesse momento, sentiu que seu corpo machucado e fraco pela falta de comida se moveu muito melhor do que esperava. Sua velocidade não estava abaixo da sua no mundo real e, de alguma forma, ele tinha mais poder explosivo nas pernas do que imaginava. Parecia que ele usava o pouco de energia que possuía para dar o melhor de si. Um controle corporal que nunca vira antes em sua vida.
Entretanto, quando se aproximou da criatura, que estendia seus tentáculos para cima, preparada para um ataque, não soube o que fazer. De que importava ter vontade de lutar se não sabia o que fazer com ela? Afinal, Ezkiel nunca fora um combatente, e o corpo só podia seguir as ações que ele ordenava.
Com a mão direita, pegou a adaga e enfiou na barriga da criatura. No ataque ordinário, a lâmina adentrou a carne mucosa com certa rigidez. Sangue carmesim vazou entre os dedos de Ezkiel e o cheiro de especiarias se intensificou no ar.
A criatura deu um leve rosnado de dor, abaixando seu tentáculo da esquerda com velocidade. A massa gigante se moveu, preparada para esmagar o prisioneiro a sua frente como se fosse nada. Desesperado por dentro, Ezkiel moveu seu braço esquerdo para frente, cheio de medo. Entretanto, seu corpo completou o serviço com seu instinto: fortaleceu a musculatura e posicionou as correntes do antebraço contra o golpe enquanto firmava as fundações de suas pernas.
O impacto foi brutal. Uma dor absurda percorreu todo o seu corpo. O antebraço esquerdo ardeu como se estivesse prestes a se quebrar com o impacto. Ezkiel tentou puxar a adaga para fugir, mas não conseguiu. O segundo tentáculo veio em sua direção. Ele se jogou para a direita, como fazia no futebol americano para fugir do Quarterback.
O golpe acertou o solo, fazendo pedaços de terra e pedra do chão se esmagarem.
“Porra! Ele é muito forte. Como eu aguentei esse golpe?”
Sua mente pensava milhares de coisas ao mesmo tempo. Notou que seu braço esquerdo ainda podia se mexer. Hematomas surgiam em sua pele, mas não estava quebrado como esperava. As correntes eram realmente indestrutíveis e poderiam ser usadas como defesa. Porém, seu braço uma hora não aguentaria.
Sentindo as fisgadas de dor imensas em seu braço esquerdo, Ezkiel posicionou os dois braços à frente. Era melhor machucar os braços do que receber um golpe desses na cabeça ou no tronco.
A criatura virou sua cabeça; a boca rodeada por dentes desordenados mastigava o ar com raiva. Ela retraiu seus tentáculos para dentro do corpo novamente. Ezkiel conseguia sentir a vontade da criatura de matá-lo, mas o corpo não a respondia, era lerdo demais.
Os tentáculos voltavam devagar para o seu corpo, enquanto a sede de sangue aumentava. Ele não podia perder mais tempo, precisava atacá-lo nessa lacuna aberta. O corpo dele respondeu vorazmente. Em uma investida rápida, jogou seu ombro contra o peitoral da criatura e puxou a adaga com toda a sua força.
Os tentáculos já haviam desaparecido do solo, aumentando sua massa entre as camadas de protuberâncias que saíam. O muco viscoso vazava da ferida, banhando as mãos e toda a lâmina com o cheiro de ferro e especiarias. Percebendo que logo o outro ataque viria e que Ezkiel estava no centro da área de contato, ele investiu novamente para frente, enfiando a adaga com toda a força que possuía no peitoral da criatura. Se ele fosse um pouco mais alto, tentaria enfiar no rosto, mas o humanoide disforme à sua frente parecia um gigante, com 2 metros de altura.
A lâmina adentrou novamente, jorrando o sangue. Diferente da última vez, vendo a sombra do golpe se aproximando de sua pessoa, ele jogou os dois pés sobre a criatura enquanto se impulsionava para tirar a adaga.
A cena parecia ligeiramente cômica e tosca para um guerreiro habilidoso. Afinal, Ezkiel apenas conseguia cortar a carne da criatura jogando todo o peso da sua investida na adaga. E precisava de extrema força para retirá-la da carne do ser. Entretanto, pareceu ser eficiente, pois antes do próximo golpe descer ao solo, ele já estava em uma área segura com a lâmina em mãos.
Um suor frio percorria seu corpo, e ele estava cansado em poucos segundos. Porém, observar o golpe bater no solo e ele não ser acertado foi muito satisfatório.
Um sorriso surgiu em seu rosto ao ver o sangue da criatura jorrar no solo. O segundo tentáculo se aproximava para bater no chão, o mesmo ataque vertical padrão, e pelo vetor do movimento não poderia ser parado. O prisioneiro se preparava para pular de novo em direção à barriga da criatura assim que o golpe fosse executado por completo. Entretanto, quando estava próximo de se aproximar do solo, o tentáculo investiu para frente, aumentando sua área de ataque e acertando em cheio o peitoral de Ezkiel.
O golpe fora tão rápido e avassalador que ele sentiu uma das costelas à sua direita se rachar. As correntes em seu peito tilintaram. O corpo não respondeu a tempo e o garoto foi jogado a 5 metros, caindo no meio da ruela. A respiração estava ofegante e o sorriso alegre do combate desapareceu em poucos segundos. A animação de ferir o inimigo sumiu e o ânimo do combate se tornou determinação e sobrevivência. O pequeno erro de principiante sobre o inimigo lhe custou um ferimento sério.
Sufocado, ele tentou se levantar, mas o Outro foi mais rápido. A criatura se jogou sobre ele, iniciando uma série de esmagamentos contra o solo. A única defesa de Ezkiel foi cruzar os braços, as correntes recebendo a punição.
Os golpes não cessavam. Esmagavam. Pensar era impossível. Restava apenas a dor, uma maré vermelha que o afogava. O gosto metálico e rançoso de seu próprio sangue encheu-lhe a boca. A raiva começou a borbulhar, misturada ao desespero de sentir seus ossos protestando sob as ataduras metálicas. Mas ele percebeu algo. Os golpes estavam mais lentos. A criatura estava cansando.
Ele só precisava aguentar. Uma abertura surgiria. Seus olhos, banhados em sangue, ardiam de ódio, esperando por esse momento.
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