Sonhar Brasileira

Autor(a): Caetano F.


Volume 1

Capítulo 10: Acordar

 

Assim que a visão retornou, Ezkiel sentiu um peso sobre o peito que lhe dificultava a respiração. Assustado, jogou com toda a força a forma alojada sobre o corpo para o lado.

— AAHH! Okay! Okay! Kiel, eu já acordei! Precisava disso tudo?

Maeve caiu assustada. Os cabelos bagunçados sobre o rosto a deixavam parecida com uma aparição.

Ezkiel ainda estava atordoado. Tentou se levantar, mas o ombro esquerdo doía absurdamente. O corpo parecia ter sido amassado por um carro, e a cabeça ardia em uma enxaqueca pesada.

— Inferno...

Sussurrou, segurando a vontade de vomitar por causa da dor.

A confusão ainda estava por todo o corpo, correndo pelo sistema nervoso como raios que eletrocutavam as feridas, em uma ardência semelhante à dormência, porém mais intensa.

O sentimento era conflitante. Ele podia notar as dores no corpo, mas os ferimentos não existiam. Apenas os choques e as dormências ardiam na carne e nos ossos, mostrando detalhadamente onde as feridas do sonho deveriam estar.

— Kiel... Tudo bem?

Maeve estava um pouco assustada, as bochechas infladas de ar pela queda brusca.

O garoto não respondeu. Estava incomodado demais para se manter em pé, com os espasmos de dor atravessando o corpo. Tentou levantar devagar o braço direito, mas não conseguiu: um choque correu até a ponta do dedo e subiu até o centro da testa.

Irritado, encarou o objeto que havia iniciado todo o sofrimento. O filtro de sonhos ainda balançava suavemente sobre a cama, como se nada tivesse acontecido. Enfurecido, puxou o objeto com a mão esquerda e começou a desmembrá-lo, depositando toda a raiva que reverberava em seu âmago, demonstrando a tortura que havia sofrido, todo o medo, todo o desespero em cada fio e galho que compunha o objeto.

Maeve olhava, incrédula, o que o namorado fazia com o presente que havia dado. Com os olhos cheios de lágrimas, começou a se levantar. Em passos leves, aproximou-se dele enquanto soluçava baixinho.

— Kiel! O que houve? Você está bravo comigo? Sei que achou bobagem, mas não precisava quebrar assim.

A voz dela tinha um tom sofrido, como se o coração frágil estivesse se quebrando.

Após depositar toda a fúria no objeto, ele encarou a namorada chorosa. Ela sempre fora delicada, emocional o suficiente para sentir que toda ação ao seu redor fosse sua culpa.

— Não. Não. O filtro funcionou. Eu só tive um pesadelo!

Nesse momento, Ezkiel soube que não podia contar a ela o que havia acontecido no sonho. Maeve nunca se perdoaria por fazê-lo sofrer.

— Ah, meu Deus! Desculpa! Desculpa! Desculpa!

Ela correu, totalmente culpada, e o abraçou. Lágrimas escorriam pelo rosto branco e delicado.

— Está tudo bem! Já passou...

Ele se segurava para não gritar de dor. Cada vez que Maeve aumentava a força do abraço pela culpa e jogava o corpo pequeno sobre o dele, a dor só piorava.

Maeve permaneceu abraçada por alguns minutos, até conseguir se recompor por completo. Depois, voltou ao padrão normal. Andou um pouco pelo quarto de Ezkiel, pegando roupas para se trocar. Afinal, o primeiro dia do ano letivo estava começando.

Ezkiel quase esquecera a vontade de voltar a praticar esportes na quadra. A mente ainda estava focada na dor, mas acreditava que logo melhoraria.

A namorada havia acabado de entrar no banho. O barulho do chuveiro ligando ecoava enquanto ele ainda tentava se levantar. Retirou devagar a camisa de dormir, olhando-se no espelho em busca de feridas,, mas nada havia ali. O corpo atlético estava perfeito.

Ver-se no espelho com o corpo original era muito melhor. Ele era um garoto bonito: 1,82 de altura, 80 kg, quase sem gordura, músculos bem definidos. Acreditava que era genética. O maxilar era firme, o nariz grande, estilo grego. Os cabelos raspados nas laterais e mais altos no centro, levemente arrepiados, grossos, lisos e de tom castanho-escuro. Os olhos eram do mesmo tom. Sorriu de leve, feliz com a aparência, exibindo o sorriso branco. Desde pequeno sempre fora um dos mais bonitos da escola e sempre soube disso.

Apaixonar-se por Maeve foi um processo fácil. Ela era a garota mais tímida da escola, e sua mãe era muito amiga do pai dele. Por isso se encontravam com frequência, e as coisas evoluíram naturalmente. Nunca havia namorado antes, mas já havia ficado com outras garotas. Para Maeve, ele foi o primeiro em tudo. Agora, estavam prestes a completar um ano juntos no próximo mês.

— Kiel! Você não vem?

A voz dela veio do banheiro, tímida.

O garoto bufou diante do espelho. Encarou-se de novo e sorriu de leve.

“Já passou...”

...

Ezkiel saiu do banho arrumado para a escola. Maeve vinha logo atrás, ajeitando o cabelo molhado enquanto procurava um casaco de algum jogo MMO que ele não fazia ideia de qual fosse. Apenas sabia que ela preferia a Horda.

Os pais já estavam na mesa de centro. O homem alto, pesado e forte enchia o bigode de café. A mãe, baixinha, com os cabelos presos em coque rápido, preparava panquecas e bacon.

— Vocês dois vão se atrasar se não comerem logo! Daniel, vai levar vocês!

Disse Margareth, equilibrando-se nos sapatos altos com a frigideira na mão.

O pai apenas bufou de leve e abriu um sorriso amarelado pelos anos de fumante. Os cabelos castanhos escuros estavam mal penteados para trás, com tufos soltos nas laterais.

— Dormiram bem?

A voz calma e serena contrastava com a aparência de lenhador.

— Ezkiel teve um pesadelo! Acordou todo assustado!

Maeve afirmou antes que ele pudesse responder. A expressão de culpa era sincera.

O pai bebeu o café, encarando-o com um sorriso malicioso.

— Foi nada demais... Estou bem!

Ezkiel se sentou, colocando um pedaço grande de queijo na boca. Maeve sentou-se ao lado dele, enquanto Margareth distribuía panquecas.

— Ezkiel nunca teve pesadelos antes... Estranho! — Ela parou e encarou Maeve. — Ah, sua mãe não atendeu as ligações ontem. Seu pai disse que queria falar com você. Bem, ela deve ter os motivos dela.

Maeve abaixou a cabeça em silêncio. Ezkiel sabia que a relação dela com o pai era conturbada. Ele vivia em uma cidade grande havia quase doze anos. Viagens anuais eram tudo que tinham. Mesmo assim, o homem sempre ligava, preocupado com os filhos, à sua maneira.

— Obrigada. Eu vou ligar para ele.

Maeve olhou para Ezkiel, nervosa, precisando da companhia dele para a ligação. Ele apenas confirmou com a cabeça, mastigando panqueca.

O garoto estava com mais fome do que o normal. O corpo ainda doía horrores, mas fingia bem, usando apenas o braço esquerdo.

— Animado para a volta às aulas? É seu último ano! Tem que estar animado.

O pai se enrolava nas palavras. Nunca fora estudioso, mas apoiava o filho. Dono de uma pequena loja de artifícios de pesca e caça. Na idade de Ezkiel, conhecera a esposa enquanto fazia bicos em fazendas próximas, ela já veterinária.

— Sim. Só estou cansado e com fome!

Ezkiel devorava tudo pela frente.

— Sei como é!

O pai lançou um sorriso malicioso ao filho, enquanto bebia café.

Margareth passou atrás dele e lhe deu um cascudo com o cotovelo.

— Sem palhaçada, Daniel!

— O quê? Eu não fiz nada! O garoto é que se cansou a noite toda!

Ele riu baixo.

A mulher o fuzilou com o olhar.

— Deve ser por causa do pesadelo!

Maeve com o olhar ingênuo emitiu um sorriso falso

Daniel não resistiu e riu o mais alto que pode. Margareth bateu a panela no fogão em aviso, e, conhecedor da esposa como era, ele parou na hora. Levantou-se, pegou o chapéu.

— Vamos, crianças! Eu tenho horário, vocês têm horário e sua mãe têm horário!

Fugia rápido da bronca que levaria.

Ezkiel se levantou depressa. Pegou a mochila do chão, colocou nas costas, depois pegou a de Maeve no braço esquerdo. O choque percorreu o corpo, mas fingiu estar bem, embora quase não conseguisse.

“Maldito sonho do caralho! Parece que esse talento de Torturado está se tornando real mesmo!”

No instante, o filtro de sonhos se abriu diante dele, como no sonho, mostrando os detalhes do talento.

 

Torturado

Talento para os que se acalentam na dor como ancora para se manterem vivos. Pois o único sentimento que resta na vida de um torturado é a dor que lhe mantem são.

Função: Toda a dor causada lhe torna mais resiliente.

 

As mãos de Ezkiel começaram a tremer ao analisar a aba. Os pés pararam, o mundo se turvou. A cabeça rodou contra o eixo, o enjoo persistiu. Ele não conseguia pensar em uma frase sequer, apenas as palavras do filtro de sonhos ecoavam no crânio.

A vontade de desmaiar o dominava. Ainda assim, resistia à vertigem e ao desespero. O fator torturante o mantinha em um estado de desconforto absurdo: a mente parava de processar, enquanto a consciência sentia tudo, agarrando-se ao máximo para mantê-lo ativo.

Ezkiel sabia que, se tentasse, conseguiria mover o corpo, não importando o desconforto. Mas não teve coragem de usar esse bote salva-vidas. Aceitou o desespero enquanto ouvia os pais e Maeve gritarem por ele ao fundo. Não focou nos sentidos, porque ouvi-los só causaria mais ansiedade. Precisava apenas se acalmar. E isso era quase impossível depois de compreender que talvez estivesse ficando louco, e que o mundo dos sonhos podia ser real.

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