Volume 1

Capítulo 18: Discussão (versão antiga)

 

No lugar em que Lucy havia sentido cheiro de sangue, dentro do buraco estavam os quatro singulares encostados nas paredes do local. Apesar de não ser um buraco muito profundo, tinha tanto sangue que formava uma poça que demoraria muito para secar, e junto disso estava a razão pela qual os ghouls não conseguiam se aproximar: corpos de pessoas com espuma na boca, outras com os membros retorcidos e até virados ao contrário, e uma delas com buracos perfeitamente esféricos no corpo.

Lucy só estava incomodada com a forma grotesca com que aquelas pessoas foram mortas. David e Mary estavam apenas fechando seus narizes por causa do cheiro horrível de carne apodrecendo aos poucos. Já Ethan estava praticamente hiperventilando, não só pelo odor, como também pelo nervosismo, pois agora tinha visto mais uma coisa que singulares eram capazes com seus poderes.

O menino se agarrava na camiseta de Mary e tentava se acalmar, não querendo olhar para a cena. Mary não sabia o que fazer naquele momento, Ethan parecia uma criança assustada que pedia conforto para a mãe, porém a albina não era isso, então o que ela poderia fazer? Mary se considerava fraca demais para afastar o garoto, então acaba apenas deixando ele se acalmar.

— Que lugarzinho hein. – David dizia com a mão fechando o nariz.

— Ah, desculpa que não é uma banheira de hidromassagem, meu bem, mas que tal você olhar para a verdadeira culpada dessa situação? Bem aí na sua frente. – Lucy apontava para a assassina de heróis, que olhava confusa, apesar de se manter sem expressão. Lucy ia se aproximando enquanto falava. – Não se faz de desentendida não, por sua brilhante ideia de trazer uma ghoul pro nosso esconderijo, agora nós temos que ficar numa fossa de cadáveres!

— Eu precisava de informações. – Mary retrucava, ficando de pé e se mantendo firme, Ethan se encolhia, ficando sentado, observando.

— Ah sim, descobrimos que ela foi uma conhecida do Ethan, que a transformação ghoul é irreversível, e que esse tal “Carniçal” é o responsável por isso e pretende transformar nossa vila em canibais. – Lucy dizia com um tom sarcástico na voz. — Oh, olha só, a informação foi pior ainda pro Ethan, e o restante a gente já tinha entendido! – a ruiva estava brava ao ponto de sair vapor por seu corpo, já que seu sangue estava fervendo.

— Sobre os Heróis. – Mary acrescentava. Lucy a olhava indignada e dava espaço para a albina ver os corpos naquele buraco.

— Mary, dá uma olhada, a gente descobriu mais sobre os Heróis caindo numa vala do que perguntando praquela ghoul. – Lucy apontava para a direção de onde vieram, em seguida ela se aproximava dos corpos, pegava um deles sem dó e mostrava o rosto com expressão vazia. – Tão vendo? Sem caninos enormes, ou seja, são humanos. Tem mais de um com os membros retorcidos, e tem esse com buracos esféricos, então parabéns. – ela então joga o cadáver no chão de novo. – Descobrimos que os Heróis estão atrás dos ghouls! E isso nos favoreceu em adivinha só, nada!

— Mas parou para se perguntar por que não atacaram então? – Mary perguntava, calma e sem perder a razão.

— Eu sei lá! Talvez estejam ocupados demais olhando pra gente e rindo da nossa incompetência, não é?! – Lucy olhava pro céu e gritava, esperando que a resposta caísse dele.

_________

Longe dali, Victor e Rebecca observavam, sentados no terraço de um estabelecimento. Apesar de obviamente saberem o posicionamento do grupo por causa de Lucy, não conseguiam ignorar o cheiro de cadáver. Naquele momento, seus olfatos aguçados eram mais um problema do que ajuda.

— Eles ainda têm força para gritar? – Victor questionava.

— Humanos são estranhos. – Rebecca dizia, encostando a cabeça no ombro do canibal ao seu lado e só esperando se alguma hora os quatro iriam sair daquele buraco.

— Rebecca... – o rapaz começava.

— Hm?

— Eu só quero que você saiba. Mesmo que eu tenha que ficar contra toda a família, eu vou ficar do seu lado. – Victor dizia, segurando a mão dela.

— Victor... – Rebecca suspirava e apertava um pouco as mãos que se entrelaçavam. – Me desculpa fazer você passar por tanto só por minha causa. Eu vou me desculpar com eles, eu prometo.

— Tá tudo bem, eu que escolhi fazer isso. – Victor respondia, beijando a mão da ghoul e voltando a olhar para frente. Rebecca olhava isso e lacrimejava um pouco enquanto percebia seus erros.

_________

David se aproximava de Lucy gentilmente.

— Ok, vocês duas tem que se acalmar. – ele encostava no ombro da ruiva, que se virava para ele, furiosa.

— Duas? Eu tô completamente calma! – Lucy retrucava, com vapor saindo de seu corpo de tão nervosa que estava. O rapaz ficava um pouco assustado e logo colocava lentamente sua mão congelada na direção do pescoço dela.

— É... Eu consigo ver. Lucy, nesse caso, por incrível que pareça, eu vou ter que dar um desconto para a Mary. Minha névoa não dura para sempre, não daria para eu dormir muito por exemplo. – quando ele encostava, conseguia sentir a pele de Lucy fervendo.

— Você tá de que lado afinal, David? – a ruiva questionava enquanto apontava o dedo praticamente na cara de Mary. Lucy rapidamente sentiu uma dor em sua mão e ouviu um som de algo quebrando, e, quando olhou para ela, seu indicador estava quebrado.

— Para de apontar pra mim. – Mary respondia. A singular olhava confusa e um pouco indignada para seu dedo, porém já estava se acalmando, graças a David.

— Urgh! Que seja. – ela resmungava enquanto colocava seu dedo de volta no lugar e ele se regenerava. Após isso, ela ia para o canto novamente. – Eu vou dormir, e vocês deviam fazer a mesma coisa se não quiserem virar janta.

David apenas olhava, pensando em como deveria consolar sua namorada. Mary não demonstrava reação e somente se virava, perguntando para Ethan.

— Algum sinal de ghoul próximo?

— N-não. – ele respondia, já havia parado de lacrimejar, mas ainda estava se abraçando encolhido.

Mary e David se olhavam, olhavam para Lucy e Ethan e a albina dizia:

— Ela é por sua conta. – disse antes de ir na direção de Ethan.

— Você é muito cara de pau. – David respondia, acenando negativamente e indo na direção de Lucy.

— E você é muito reclamão. – Mary respondia e se sentava ao lado de Ethan, que novamente começava a sentir muito cansaço e lentamente fechava mais e mais os olhos.

Neste caso, até mesmo Mary estava começando a sentir dificuldade de manter os olhos sempre abertos. Ela encostava na parede do buraco, e logo Ethan encostava em seu ombro, pois não estava aguentando equilibrar a própria cabeça.

David se aproximava e tentava conversar com Lucy, porém ela se abraçava e virava o rosto.

— Dorme, David, senão depois você reclama de insônia. – Lucy trazia um assunto particular à tona. – E não me venha dizer que não estou dando apoio suficiente para você.

— Achei que tivéssemos superado isso, Lucy, vai trazer assunto particular à tona? – ele parecia indignado.

— Vou. – Lucy respondia, impaciente, e voltando a virar o rosto.

— Beleza, espera só quando voltarmos. Espero que goste de relembrar, Maria Sangrenta. – David respondia e virava o rosto para o lado contrário.

— Ótimo! Aproveita pra expor mais! – a ruiva encerrava aquele bate-boca. Mary apenas observava tudo sem dizer nada.

________

Pouco tempo se passou, e, por mais que estivessem com sono, David e Lucy não conseguiam dormir, não aguentavam ficar brigados, eles jamais dormiriam nesse dia se aquilo perdurasse. Eles aos poucos começavam a se olhar e notar o olhar de arrependimento em cada um, até que os dois eventualmente se viravam e ficavam de frente um para o outro.

Apesar do chão duro e o cheiro de sangue apodrecendo a carne daqueles corpos, David e Lucy ficavam bem pertos um do outro novamente.

— Desculpa. – Lucy quem começava. Não conseguia nem mesmo olhar nos olhos dele por vergonha.

— Eu que me desculpo. Eu não sei onde tava com a cabeça em te lembrar daquilo... – David tentava calmamente aproximar sua mão da de Lucy, que acabava aceitando o gesto. – Sua mão sempre me aquece, sabia?

— E a sua sempre me acalma. – Lucy dava um sorriso sutil enquanto escondia sua vergonha.

Mary observava tudo isso como se fosse uma distração para não dormir. Com isso ela também aproveitava para teorizar a respeito do casal. Parecia que o relacionamento deles continha, além do básico, que era respeito e compreensão, talvez uma espécie de troca. David: um singular de gelo, o único capaz de acalmar Lucy, uma singular de sangue, a única capaz de fazer o coração de David bater mais forte.

Ela mesma acabava tendo uma vaga lembrança de uma pessoa por quem ela costumava sentir isso, sentir-se nervosa por algo bobo, sentir um calor no peito quando abraçada. Mary se perguntava onde atualmente estaria essa pessoa, por mais que ela tivesse feito uma decisão que não a agradou, ela não podia negar que ainda se preocupava.

— Lembra quando você ainda tinha problemas em controlar sua raiva? Você quase sempre desmaiava quando eu te esfriava. – David dizia, um misto de brincadeira com felicidade.

— Para... – Lucy ficava mais envergonhada e cobria seu rosto com a mão. – Bom, eu lembro quando você era uma pedra de gelo com qualquer um, menos comigo. Eu não me importaria de continuar assim, m—mas não é bom para a vila.

— É, eu acho que, se não fosse por você, eu provavelmente ainda seria frio daquele jeito. – David dizia, arrumando os cabelos de Lucy, mesmo que eles estivessem um pouco ruins de passar os dedos por causa do sangue.

— Mas você tem que parar de ser esquentadinho também. – Lucy adicionava esse ponto, sorrindo sarcasticamente.

— Ei, foi você quem decidiu me aquecer. – David sorria e encostava sua testa na de Lucy.

Após isso, os dois acabavam se lembrando de um detalhe e levantam um pouco, notando que Mary estava ali do outro lado do buraco, só olhando, sem falar nada. Com relação a Ethan, não sabiam se ele estava ou não dormindo já.

— Quê? – Mary perguntava, como se quisesse falar para fingirem que ela não estava ali.

Lucy olhava para David e sorria, logo depois se levantava e ia até o lado de Mary, sentando no chão, onde David acompanhou e ficou ao lado da ruiva.

— Mary. – Lucy a chama calmamente.

— Hm...? – a albina olhava de canto de olho para a ruiva, provavelmente por cansaço.

— Foi mal, às vezes eu acabo surtando. Ainda tô aprendendo a controlar melhor esse problema com meu poder. – Lucy abraçava suas pernas enquanto fala, David encostava a cabeça na parede atrás de si e aproveitava para tentar dormir, já que imaginava que as duas começariam a conversar.

— Esquece isso. Eu tô concentrada em verificar se os ghouls vão se aproximar. – Mary dizia, seu olhar cansado dizia muita coisa para Lucy. A ruiva olhava para Ethan, ao lado dela, lutando para se manter acordado. Mesmo que Mary já tivesse permitido ele dormir, o menino não queria.

— Mary, me diz... Foi muito difícil cuidar dele, ensinar ele a lutar? – Lucy perguntava. Talvez pelo sono, Mary não conseguia ter a frieza necessária para ignorar a pergunta, então ela chacoalha um pouco a cabeça e começa a falar depois de hesitar um pouco.

— Não vou negar. Principalmente no começo. Ainda é, na verdade. – disse Mary, olhando para frente ainda.

— Então por que não descansa? – voltou a perguntar Lucy.

— Não quero, e não posso.

— Não, você quer, só tá fingindo que não quer. Mary, se é para proteger o Ethan, por que não o deixou na casa? – Lucy perguntava e a albina demorava um pouco para responder.

— Eu não sou a mãe dele para determinar se ele vai ou não fazer algo. No final é ele quem decidiu vir, então... Eu não posso dormir. Eu o estive treinando, mas ainda não está totalmente pronto para esse mundo. – Mary respondia, sem perder a calma ou a compostura.

— Nem você tava pronta, Mary. Mas então,  já que não quer dormir, você já pensou em algum plano contra os ghouls? – perguntou. A albina coçava um pouco os olhos antes de continuar.

— Não consigo planejar direito, mas eu penso que, se nos separássemos em duas duplas, dispersaríamos as forças deles, e talvez assim conseguiremos eliminar boa parte da força de ataque dos ghouls. – detalhou Mary

— Separar? Não é arriscado isso? – perguntou David.

— Eu consigo lidar com vários, disso eu tenho certeza. Eu só estava correndo até agora porque queria garantir a segurança de Ethan. Fora que provavelmente, se enfrentássemos eles todos de frente, logo perceberiam a situação e chamariam esse tal de “Carniçal”. E sabe-se lá o que esse daí pode fazer, o mais arriscado seria enfrentar eles realmente de frente. – Mary respondia, suspirando e tentando ficar acordada.

— Bom, pensado dessa maneira faz sentido. Mas Mary, hora ou outra vamos ter que descobrir quem é esse tal “Carniçal” e dar um jeito nele. – disse David, ainda encostado na parede.

— Eu sei, não estou nervosa sobre isso, e sim pelos tais Heróis que podem estar por trás disso.  – Mary respondia, olhando para os corpos naquele buraco.

— Esquece isso por enquanto. Se quisessem atacar já teriam atacado, precisamos descansar, também aproveitando que parece que os ghouls se aquietaram. – Lucy dizia, tentando olhar as ruas.

— Não preciso, estou acostumada a dormir pouco. – a albina dizia.

— Pouco quanto? – perguntou a ruiva.

— Uma hora. – Mary respondia e deixava Lucy cansada só de ouvir.

— Vou ignorar o que você disse. Mary, dorme, senão você não vai conseguir proteger nem o Ethan cansada desse jeito.

— Besteira, eu devo ser exemplo para ele do que deve ser feito. – a assassina dizia, cruzando os braços.

— Besteira é você achar que isso é bom, ele tá praticamente dormindo já. – Lucy mostrava Ethan.

Com isso, as duas notavam um brilho estranho no horizonte. Era nada mais do que o Sol.

— Ah, fala sério. Tá amanhecendo e passamos a noite em claro. – reclamava o singular gélido, colocando a mão em seu rosto.

— Hm... O quê? – Ethan dizia com os pensamentos mais lentos que o restante.

— Isso não é problema, David. – Mary retrucava.

— Pra você talvez, mas eu nunca passei uma noite acordado. E se eu acabar dormindo e algo acontecer? E o pior é que algo SEMPRE acontece. – David parecia ansioso, forçando os olhos a ficarem arregalados para ver se não dormia.

— Se eles tentarem algo... Não é só nos movermos? – Ethan perguntava, com a voz bem fraquinha. Mary, notando isso, tira da mochila uma garrafa de água e faz o menino beber um pouco, gentilmente.

— Não podemos nos mover para sempre, Ethan. Temos que descansar alguma hora. – Lucy respondia.

— Não, este é o melhor momento para atacar. – Mary respondia, coçando os olhos novamente.

— Perdão? – questionou David, como se quisesse acreditar que aquela frase era brincadeira.

— Eles são preferencialmente noturnos. Durante o dia eles devem descansar, então esse deve ser o nosso melhor horário. – Mary acrescentava, deixando Lucy e David se perguntando o que deveriam fazer.

— Talvez... Esteja certa. – Lucy confirmava.

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Não haviam se passado nem cinco minutos. Ethan estava dormindo com a cabeça encostada no colo de Mary, que por sua vez estava encostada na parede, também em sono profundo. Por fim, David e Lucy estavam um apoiado no outro, sem sinais de estarem acordados.



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