Volume 2

Capítulo 97: Novo Fragmento

Alaric estava imerso em um mundo distinto, como se estivesse em uma realidade paralela. Não importava para onde olhasse, apenas enxergava névoas escuras e um ponto brilhante no céu. Diante dele, o Rancor o aguardava com uma expressão séria, indicando que havia assuntos urgentes a tratar com o jovem.

— Urgente? Vindo de você, tenho até medo do que isso possa significar... — comentou Alaric, com um ar de desconfiança.

— Quando você me insulta — começou Rancor, abrindo um sorriso irônico. — está tecnicamente insultando a si mesmo.

— Eu sei. 

A resposta fez Rancor perder o sorriso irônico, substituindo-o por uma expressão julgadora. Percebendo que não adiantaria tentar ser sarcástico, suspirou e continuou:

— Ah, que seja. Temos, de fato, um assunto urgente… 

Alaric envolveu os braços ao redor de si, sentindo o leve tremor do frio. Apesar do local isolado, uma brisa gélida parecia cortar o ar, evocando lembranças do norte em dias mais amenos. Enquanto tentava resistir ao frio, observava o rosto contorcido por diversas emoções negativas do Rancor e aguardava pacientemente que o ser continuasse sua fala. 

No entanto, o silêncio se estendeu, prolongando-se por segundos que pareciam minutos, enquanto o olhar do outro permanecia fixo, quase idiotizado. A paciência de Alaric, por fim, se esgotou, manifestando-se em um estalido de língua impaciente.

— Então, qual é o assunto?

— Pensei que nunca iria perguntar... — Com um sorriso satisfeito, começou a examinar os arredores. — De qualquer forma, acho melhor mostrar do que falar.

O jovem ficou confuso com o significado daquelas palavras, mas antes que pudesse formular qualquer pergunta, Rancor inclinou a cabeça para o céu e, abrindo os braços de forma ampla, começou a rodopiar como a um pião.

Alaric chegou a abrir a boca, mas as sílabas foram travadas pelo choque ao testemunhar a transformação do ambiente. Pois, o vasto vazio nevoso de repente se tornou uma extensa área de terra. Da terra, surgiram brotos que cresceram até se tornarem imensos e finos pinheiros.

Rancor girava em meio a essa metamorfose, parecendo estar em êxtase, transcendendo para outra dimensão enquanto observava o céu. O céu, que antes era apenas um vasto vazio com um ponto brilhante se transformou em um belo azul, adornado por um sol radiante. As nuvens se formaram e, delas, a neve começou a cair. Em instantes, o vazio de névoa se metamorfoseou em uma floresta semelhante às do norte.

— E então? Gostou? — Ele ainda mantinha os braços abertos, fitando o céu. Alaric não respondeu; parecia incrédulo demais para articular qualquer frase. Rancor abaixou apenas os olhos, percebendo a magnitude do impacto. — Foi demais para o seu cérebro? Que seja, não me responda. Apenas olhe para trás.

Sem dizer uma palavra, o jovem virou-se, e o que viu fez seu coração disparar e Rancor sorrir satisfeito. A alucinação fechou os braços e começou a caminhar em direção ao jovem. Cada passo que dava no solo provocava sons que antes não existiam: o som das folhas sendo amassadas, o estalar dos pequenos galhos quebrando sob seus pés.

Rancor passou pelo jovem paralisado e colocou as mãos nos bolsos.

— Venha, você conhece bem este lugar.

Diante de Alaric, que permanecia como uma estátua, erguia-se uma cabana de madeira, perfeitamente idêntica à de Aldebaram. Um local onde passou meses de sua vida, um dos últimos locais que pôde chamar de lar, um local que despertava enormes sentimentos e o mais profundo apreço, um lugar que já não existia mais. 

No mesmo instante, uma onda de memórias os envolveu, como se as imagens ganhassem vida diante de seus olhos: Astrid, Dolbrian, Aldebaram... Gideon. Ele revivia os momentos compartilhados com cada um deles neste local, sejam breves ou prolongados, carregados de emoções ou simplesmente triviais.

Mas desviar o foco do que realmente importava naquele momento não parecia uma boa ideia, em especial quando se tratava de Rancor, alguém que, infelizmente, Alaric ainda não compreendia totalmente. Por isso, balançou a cabeça com determinação, fazendo as imagens tão queridas desaparecerem em partículas levadas pelo vento, e seguiu a alucinação que já se encontrava na porta. 

Ao se aproximar, Rancor observou Alaric e, com um sorriso, empurrou a porta que rangeu levemente, adentrando a cabana, seguido pelo jovem. Dentro da morada, os olhos de Alaric foram acariciados pelo local que tanto viveu.

Ele avançou com cautela, deixando os dedos serem beijados pela textura das cadeiras e da mesa. Era incrível, como se estivesse mergulhando em uma realidade paralela onde até mesmo o tato se tornava vívido.

— Então, fez tudo isso para me impressionar? — indagou Alaric, mantendo uma expressão séria, embora uma suave onda de nostalgia o envolvesse. No fundo, sua curiosidade clamava por desvendar o propósito por trás das ações de Rancor. — Desembucha logo.

— Como eu disse anteriormente, optei por mostrar, não contar. Então, observe... — Ele indicou um canto da cabana. — Tire suas próprias conclusões antes de me questionar.

O jovem seguiu a direção apontada por Rancor e vislumbrou uma figura encolhida no canto, abraçando as próprias pernas, com o olhar perdido na parede. Parecia ser um rapaz de cabelos vermelhos, cujo corpo aparentava tremer sem parar.

— O que...? — Rancor deu de ombros. Alaric, percebendo que não obteria esclarecimentos daquela alucinação, aproximou-se do rapaz. — Ei...

À medida que se aproximava, os soluços da figura chorosa se tornavam mais audíveis. Alaric abaixou-se e tocou as costas do rapaz, percebendo a vibração trêmula sob os dedos.

— Quem é você...? — Uma sensação de estranheza envolveu Alaric ao tocar na figura, uma melancolia palpável. No fim, mesmo perguntando, não recebeu resposta. — Rancor, o que está acontecendo? Quem é ele? Como pode estar em minha mente? Responda!

— Você faz perguntas demais, sabia? — Suspirou, e aproximou-se, observando o rapaz chorando de cima. — Ele provavelmente é como eu, uma parte de sua psique.

Alaric engasgou-se com a informação, retrocedendo alguns passos, perturbado, enquanto Rancor o observava de perfil.

— Sua mente está em frangalhos, de fato... — Rancor abaixou-se e tocou levemente o ombro do rapaz choroso, que continuava a tremer. — Se eu represento o Rancor, ele seria a personificação da Melancolia?

— Melancolia!? — Alaric estava cada vez mais tenso. — Desde quando ele está na minha mente!?

— Hmmmm... Ele surgiu por aqui há cerca de um dia, talvez? Logo após a morte de seu amigo na vila…

— Espera! Você consegue observar tudo o que acontece!? — Alaric questionou, mas logo percebeu que a pergunta não era tão relevante para aquele momento. Então, suspirou profundamente e reformulou a questão: — Ele age de alguma forma? Isso vai me afetar de alguma maneira?

— Afetar? Acredito que não, nem eu tenho essa capacidade... — Ainda agachado, lançou um olhar desdenhoso para Melancolia antes de voltar a atenção para Alaric. — E ele parece ser alguém capaz de fazer algo que o influencie? Sinceramente, duvido muito.

O jovem relaxou um pouco, suavizando a expressão, ao perceber um certo sentido nas palavras de Rancor. Observando Melancolia atentamente, era evidente que ele não tinha a capacidade de agir de forma significativa. Na verdade, Alaric mal conseguia definir o que significaria esse "agir", já que até aquele momento, Rancor também não havia feito nada além de "invocá-lo" para aquele mundo de névoa.

— Sei que não confia em mim, mas peço que deixe isso de lado... — Rancor ergueu-se e aproximou-se de Alaric, tocando-lhe o ombro com firmeza. — Você está avançando para satisfazer meus desejos de vingança, nossos desejos de vingança. Não permitirei que ninguém interfira nisso...

O rapaz engoliu em seco, sentindo uma ameaça clara naquelas palavras tanto para possíveis novas personalidades quanto para ele próprio. No pior dos cenários, Rancor puderia tomar-lhe controle do corpo caso não cumprisse o que lhe era pedido.

— Entendo...

— Ótimo. — Colocou as mãos na cintura, exibindo um sorriso satisfeito, e prosseguiu: — Bem, bem, acho que nossos assuntos se encerram aqui, então... Adeus.

— E-espera!

Antes que Alaric pudesse dizer mais alguma coisa, sua visão começou a escurecer, reduzindo-se a um círculo no centro. O corpo não parecia mais ter qualquer apoio firme, era como se estivesse em queda livre, mergulhando em um abismo sem fim. 

Os gritos não mais ecoavam, os membros não mais se debatiam, e não havia vento para indicar a queda iminente; era um vazio completo, um vazio existencial. 

Tudo o que ele podia fazer era observar, observar Rancor no centro do círculo que se fechava gradualmente. Quando restava apenas a boca sorridente no centro, a alucinação proferiu suas últimas palavras:

— Ah, e lembre-se: sou uma parte de sua mente. Posso ver tudo, escutar tudo e conhecer todos os seus pensamentos… Até mais.

 

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O confortável escuro oferecido pelo fechar dos olhos foi perturbado por uma fonte de luz externa, levando-o a abri-los vagarosamente e coçá-los, ainda confuso. Foi apenas ao analisar seu entorno que a confusão deu uma breve pausa: ele estava em um dos quartos disponibilizados por Zhi Fēng.

Ao virar a cabeça, notou que a luz incômoda provinha da janela ao lado, que permanecia despida de cortinas, permitindo a entrada plena da luz solar.

Ele passou as mãos pelos cabelos vermelhos enquanto refletia sobre tudo o que havia acontecido. Parecia tanto um sonho, mas ele sabia, melhor do que ninguém, que não era um sonho; era a mais pura realidade, de forma distorcida.

No final, ele percebeu que remoer os acontecimentos não levaria a lugar algum. Restava apenas esperar e ver como as coisas se desenrolariam. Assim, ele abriu os braços amplamente, espreguiçando-se, e não pôde deixar de notar o quão confortável era a cama.

"Isso é para hóspedes?" Se fosse mesmo, estavam de parabéns, pois Alaric nunca havia deitado em uma cama tão macia na vida. Isso só servia para reforçar o quão poderoso financeiramente era aquele clã.

Toc. Toc.

As batidas ressoaram na porta, interrompendo seu momento de contemplação, incitando-o a se levantar, vestir uma calça e uma camisa, quase esbarrando em Anthon, que se agitava freneticamente ao vê-lo erguer-se, antes de finalmente alcançar a porta.

Com um suave arrastar, abriu-a em apenas uma fresta, espiando para fora. Reconheceu a mesma empregada do dia anterior, cujo sorriso radiante era tão fulgurante quanto o sol no céu.

— Sr. Alaric, como passou a noite? Espero que tenha desfrutado de um sono reparador — indagou, exibindo uma animação incomum para aquela hora do dia. — E, é claro, que tenha apreciado nossa refeição.

Após ser bombardeado por tantas palavras, considerando o horário e o fato de ter acabado de acordar, levou alguns segundos para processar tudo o que havia sido dito. Então, ainda sem expressar muito, respondeu:

— Bem, bem... Cama confortável, comida saborosa — Foi a primeira e única resposta breve e direta que seu cérebro sonolento conseguiu articular.

— Que ótimo! Fico imensamente feliz... — Ela inclinou a cabeça de forma gentil, corando levemente. — Se precisar de mim... quero dizer, se precisar de algo mais, é só chamar!

Alaric estava tão desconectado devido ao horário que mal conseguiu compreender o que ela havia dito. Apenas concordou com um aceno de cabeça, o que pareceu fazê-la sonhar acordada. Após alguns segundos passado, notou que ela não se afastava, então indagou:

— Então, em que posso ajudá-la?

— Ah! Me perdoe, estou parada aqui como uma idiota haha… — Ela gesticulava abundantemente enquanto falava. — Vim para arrumar o quarto e recolher os utensílios utilizados ontem.

— Hmmmm... entendo. Bom... — Ele abriu a porta completamente e passou a mão pelos cabelos, bocejando. — Entre.

— Obrigada. — Ela avançou, passando pelo jovem que ainda se coçava. Ao notar a cama desarrumada e as roupas espalhadas, tirou às próprias conclusões. — Desculpe a pergunta, mas acabou de acordar?

O jovem fechou a porta, ficando um pouco sem jeito diante da pergunta direta. Não sabia bem como responder, embora fosse bastante evidente que acabara de se levantar. Mas e se fosse um teste? Uma forma de verificar se ele era preguiçoso ou se estava alerta. Então, virando-se para ela, quando estava prestes a inventar uma desculpa, reconsiderou.

— Ahh... Sim... o dia de ontem foi cansativo — Mentir não seria útil; era óbvio que ele acabara de acordar.

— Oh! Por acaso te atrapalhei? Te acordei? — Ela parecia estranhamente nervosa, desviando o olhar.

O rapaz estranhou aquele comportamento. Não era como se importasse muito. Já que de qualquer forma, teria que levantar-se mais cedo ou mais tarde.

— Não se preocupe, não foi nada demais — Ele avançou até a beira da cama e sentou-se, acariciando Anthon que estava aos seus pés. — E, além disso, é o seu trabalho.

— Por favor! — implorou, lançando-se de repente aos pés do jovem, sua voz trêmula ecoando no quarto. — Não conte ao patrão!

Alaric saltou de surpresa com a ação abrupta, os olhos se arregalando em incredulidade diante da cena inesperada. Inicialmente pensou ainda ser um sonho, mas a imagem daqueles olhos alaranjados, suplicantes, era tão vívida que parecia transcender a realidade.

— O que está fazendo!? — A voz dele saiu mais alta do que pretendia, misturando-se com o eco do próprio coração acelerado.

— Se você contar... Eu... Eu… — Ela mal conseguia articular as palavras, sua voz sufocada pelo peso do medo e da ansiedade.

— Acalme-se… — Alaric interrompeu, recuperando-se da surpresa inicial e tentando acalmar os ânimos. Ele estendeu a mão com cuidado, tomando-a pelo braço e guiando-a suavemente para se sentar ao seu lado na cama. — Explique calmamente, talvez eu possa ajudar…

— Se eu contar, eles... — sua voz vacilou, o medo pairando no ar como uma sombra.

— Não existe "eles" aqui, somos apenas eu, você e Anthon no quarto... — Ele tentou sorrir, embora o nervosismo se mostrasse nos vincos de sua expressão. — E duvido que ele vá sair por aí espalhando, não acha?

Um sorriso escapou dos lábios dela, aliviada pela tentativa de Alaric em amenizar a situação. No entanto, apesar da tensão inicial se dissipar, o peso no ar persistia, e o som do coração dela batendo forte ecoava no silêncio.

— Então, antes de mais nada, me diga seu nome... — Ele pediu, os olhos fixos nela.

— Que? Ah, claro… sou Sofía Leonard. — Ela notou o olhar desconfiado do jovem e compreendeu imediatamente o motivo. — Um nome um tanto incomum, não é? É porque não sou daqui, na verdade, venho de Aldemere...

Por um instante, Alaric sentiu como se o mundo ao seu redor congelasse, enquanto memórias da infância e adolescência em Aldemere inundavam sua mente. Como ele não havia considerado isso antes? Tudo nela denotava que não era nativa do oriente, desde os traços distintos dos demais da região.

Não se engane, ela era deslumbrante, uma das mulheres mais belas que Alaric já tinha visto. Tinha a beleza de uma nobre, com traços joviais e imaculados, um olhar suave, porém penetrante. Os cabelos alaranjados caíam em cascata até a altura da cintura, emoldurando o rosto com graciosidade. Mesmo vestida como uma simples empregada, ela irradiava um charme único.

— Ei… está aí?

— Hã? Ah! Sim, estou, estou... — Alaric havia se perdido na beleza dela, algo que lhe era bastante comum. — Bem, pode me chamar apenas de Alaric.

— Claro, Sr. Alaric.

— Sem “senhor”, por favor… — Ser chamado de "senhor" parecia estranho e deslocado para ele. — Está tudo bem para você?

— Sim... se assim deseja, Alaric... — Um sorriso sutil brincou em seus lábios. — É estranho, mas acho que vou me acostumar…

— Ótimo, agora me conte o que lhe preocupa...

As palavras do jovem foram delicadas, numa tentativa de não deixá-la nervosa. Mesmo assim, ele percebeu o corpo dela estremecer ao ouvir a pergunta, e seu olhar desviar para baixo. Seja lá o que fosse, parecia ser algo sério.

— Promete não contar isso para mais ninguém? — Sofía o encarou com seriedade, sem rodeios. — Promete por tudo que é sagrado para você?

— Prometo. — Alaric respondeu sem hesitação, sabendo que era algo que jamais quebraria. Ele levaria esse segredo para o túmulo, se necessário. — Agora, me conte.

— Acontece que... — A voz dela parecia relutante, como se estivesse lutando para não revelar o que a atormentava. — Que... como você é o convidado de honra, qualquer problema que você relatasse poderia resultar na minha demissão… 

Alaric arqueou uma sobrancelha, manifestando sua confusão com um olhar mais intenso.

— Por uma questão tão trivial? Não esperava que fossem tão... tão... rigorosos...

Ele teve uma quase vontade incontrolável de usar um adjetivo insultante, mas se conteve, principalmente por respeito à jovem ao seu lado, que levou a mão à boca, como se tentasse conter o riso.

— Aprecio seu cavalheirismo — zombou, num tom descontraído, trêmulo graças à risada contida. Depois de respirar fundo, ela se recompôs, colocando as mãos sobre as coxas. — Mas, sim... Eles são bastante inflexíveis, eles não... Ele…

— Por “ele”, você quer dizer o patriarca? O líder do clã?

Ao mencionar o "patriarca", Alaric pôde perceber uma tensão emanando dela, que assentiu com a cabeça sem encará-lo nos olhos. O jovem suspirou fundo, apoiando o cotovelo na perna e sustentando o queixo com a mão.

— E me diga, como sabe disso? — Ele virou o rosto na direção dela, ainda apoiado na mão. — Deve ter havido algum incidente para gerar tanto receio, imagino.

Um silêncio pairou após as palavras, enquanto ela evitava seu olhar, mantendo-o fixo no chão e apertando as mãos sobre a coxa. Alaric optou por não dizer mais nada, permitindo que Sofía falasse no seu próprio tempo, até que:

— Faz cerca de um ano, eu acho... — Ela quebrou o silêncio, sua voz saindo baixa e receosa. — Éramos três empregadas: eu, Anise e Flora. Como vínhamos todas do centro do continente, acabamos nos aproximando rapidamente. Era inevitável, dado que a cultura daqui é bem diferente em muitos aspectos...

Alaric concordou interiormente; ele mesmo havia enfrentado dificuldades para se adaptar a certos aspectos culturais do oriente. Ele continuou a encará-la em silêncio, sem querer interromper.

— Passamos meses trabalhando para ele... fazendo tudo o que nos pediam... Estávamos nos saindo bem. Anise até sonhava em se tornar uma espadachim do clã, enquanto Flora apenas queria juntar dinheiro para proporcionar uma vida melhor para o irmão, que fugiu da guerra com ela. — Alaric notou as mãos dela se apertando com força uma na outra. — Anise foi a primeira a...

— Vá com calma...

— Eu consigo, sei que consigo. — Sofía respirou fundo e ergueu a cabeça. — Anise foi a primeira a ser demitida... por ter sido pega treinando durante o horário de almoço... algo idiota, mas que custou o emprego...

— E o que aconteceu com ela? Onde está agora?

— ...Depois de recolher suas coisas e deixar as dependências do clã... Nunca mais a vi. Mas! Eu vi... eu vi, Alaric!

Ela se levantou repentinamente, com um olhar que misturava melancolia e seriedade. O jovem permaneceu sentado na cama, observando-a inquieta.

— O que você viu?

— Alguém... Não. Um membro do clã, a seguindo na surdina…

Alaric franziu o cenho e se ergueu. Se a situação fosse tão grave, era muito mais do que uma simples demissão. Sofía se assustou com a mudança repentina na expressão do rapaz e deu alguns passos para trás.

— E Flora? O que aconteceu com ela?

Ela parou após a pergunta, deixando a cabeça cair para baixo. Suas mãos pareciam ter perdido toda a força e suas pernas tremiam como folhas ao vento.

— O mesmo... Ela acabou "incomodando" um convidado... e então... então... — Os olhos baixos dela começaram a se umedecer, prestes a derramar lágrimas que haviam sido contidas por tanto tempo. — A mesma coisa aconteceu... Eu tentei segui-la... Eu tentei! Mas não consegui, me impediram de sair das dependências do clã...

— Isso é grave, muito grave... — Alaric, percebendo o quanto ela estava abalada, suavizou a expressão. — Agora compreendo seu medo...

Após ouvir tanto, ele compreendeu o medo dela; não se tratava apenas de perder o emprego, mas do que poderia acontecer depois. No entanto, mesmo que ela soubesse tanto, eram apenas palavras, não havia provas. Matar alguém tão poderoso sem provas, além de não soar legal, poderia ter muitas implicações.

— Por enquanto, saiba que não direi nada... — Ele estendeu a mão na direção dela. — Não posso prometer sua segurança, mas farei o que estiver ao meu alcance para ajudar.

Alaric não queria mais ser responsável por outras pessoas, não depois de tudo pelo que passara. Mas, se fosse para acalmar alguém tão apavorado quanto ela, ele tentaria pelo menos ser gentil com as palavras.

— Obrigada... — Ela aceitou o gesto dele, apertando-lhe a mão. — Muito obrigada…



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