Volume 2

Capítulo 140: Desprezo Familiar

Depois que Alaric partiu para a Floresta da Dor, Zhi Fēng e Eian Liu se despediram dos membros do clã das Estrelas que os haviam acolhido e retornaram ao seu próprio clã. O caminho de volta foi tranquilo, com a viagem de carruagem pelas ruas bem planejadas e seguras do distrito nobre oferecendo um certo conforto. A suavidade do percurso contrastava com o turbilhão interno de Zhi Fēng. 

Durante a viagem, o jovem permanecia em silêncio, com os olhos fixos nas paisagens que passavam pelas janelas. O guardião, curioso, ocasionalmente olhava para fora, tentando discernir o que capturava tanto a atenção do rapaz, mas só via casas imponentes e passantes esporádicos. A aparente falta de ânimo de Zhi Fēng tornava o ambiente pesado, e a apreensão mantinha-o calado. 

O Eian Liu logo compreendeu a razão do silêncio de Zhi Fēng. Conhecia bem o jovem mestre e sabia o peso que os recentes eventos e as complexas relações familiares tinham sobre ele. O guardião optou por respeitar o espaço do garoto, mantendo um silêncio respeitoso e permitindo que Zhi Fēng refletisse em sua própria companhia.

Não demorou muito para que a carruagem freasse diante da residência do clã do Vento. O coração do jovem pulsou acelerado com o som das rodas diminuindo e o último trote dos cavalos se apagando. O momento era carregado de expectativa e tensão.

Eian Liu foi o primeiro a se levantar e sair da carruagem, descendo com uma postura firme e uma dignidade que contrastava com o ambiente carregado. Zhi Fēng, ainda visivelmente nervoso, ergueu-se com esforço, e com a assistência do outro, também desceu da carruagem.

— Eian... Acha que meu pai vai querer me dizer algo? — indagou o jovem, a angústia estampada no rosto, evidenciado pela mandíbula tensa. — Afinal, praticamente escondi Alaric em outro clã, e fiquei lá com ele. Há também outras coisas... Eu...

— Acalma-se, jovem mestre — respondeu, com um sorriso acolhedor, em meio a uma expressão de apoio. — Um passo de cada vez. Não se preocupe com o que ainda não aconteceu. Tudo ficará bem, certo?

Zhi Fēng olhou para o guardião, com as pupilas ainda tremendo de nervosismo e as mãos inquietas. No entanto, ao encontrar o semblante paternal e tranquilizador de Eian Liu, respirou profundamente, tentando afastar os pensamentos inquietantes que o atormentavam. A presença serena do guardião ofereceu um alívio momentâneo, permitindo que o rapaz se preparasse para o que estava por vir com um pouco mais de calma.

Com um aceno de cabeça, depois de reunir um pouco de coragem, avançou em direção aos portões da residência. Os guardas, de postura rígida e expressão impassível, abriram as portas pesadas com um rangido baixo, saudando-o brevemente com um olhar de alívio. A presença do jovem parecia trazer um sopro de normalidade para o local, e os guardas relaxaram um pouco, talvez aliviados por vê-lo retornar em segurança.

Enquanto cruzavam o quintal, o olhar de Zhi Fēng percorreu o cenário familiar da mansão, observando as folhas secas que cobriam o chão e os arbustos bem podados. Um jovem, que estava ocupado em rastelar as folhas espalhadas, ergueu os olhos ao notar a aproximação dos visitantes. Seus cabelos dourados brilhavam sob a luz do sol e balançavam suavemente ao ritmo da brisa, enquanto ele acenava com entusiasmo.

— Verdinho! Velhote! Que saudades de vocês! — exclamou Lucian, sempre irreverente e animado. Ele se aproximou com passos rápidos e desajeitados, a energia pulsando em cada movimento. — Demoraram um tempão… Graças aos deuses! Porque, nossa, caramba, esse lugar é um porre sem ninguém com um rosto minimamente amigável…

Zhi Fēng, como de costume, não sabia bem como reagir ao estilo exuberante do rapaz. Então, apenas sorriu de maneira forçada, coçando a nuca e tentando não parecer tão desconfortável. Eian Liu, por outro lado, já estava acostumado com pessoas como Lucian. Observava a cena com um olhar resignado, murmurando uma prece silenciosa para que os deuses lhe concedessem paciência.

— Lucian, que bom que nossa volta te alegra de tal forma… — respondeu o jovem, ainda um tanto desconcertado. — Estávamos preocupados com como você iria se sair aqui, com todos que realmente conhecia fora…

— Ahh… Relaxa, relaxa, me saí melhor do que poderia esperar! Eu acho… Não! Tenho certeza — Lucian colocou a mão no queixo, como se estivesse ponderando profundamente. — É, até porque ninguém me xingou… ou seja, não devo ter feito nada de errado. Ou, se fiz, não viram. Mas se for esse o caso, que continue assim, não é?

O entusiasmo de Lucian, apesar de um pouco perturbador, trouxe uma leveza ao ambiente que contrastava com a tensão que Zhi Fēng sentia. Mesmo com suas peculiaridades, a maneira despreocupada daquele rapaz, e a sensação de familiaridade proporcionaram um alívio momentâneo ao retorno do jovem à sua casa, como um breve sopro de ar fresco em meio a um cenário tão pesado quanto bigornas.

— Não é muito sensato dizer essas coisas aos seus superiores, Lucian — advertiu Eian Liu, posicionando-se logo atrás de Zhi Fēng. Seu semblante era amigável, mas carregava uma seriedade firme, como a de um bom amigo preocupado com o bem-estar do outro ou um pai aconselhando o filho.

Realmente, era de fato, um erro imprudente sugerir que talvez tivesse cometido erros, mesmo que ninguém os tivesse notado, na presença de seus superiores diretos. Lucian torceu o rosto ao perceber a bobagem que havia dito e começou a dar passos para trás, recuando lentamente com um olhar constrangido.

— É… Realmente, mas tipo, não é como se eu reealmeente — Ele enfatizou a última palavra de forma cômica, enquanto tentava desviar do assunto e acelerava os passos para trás. — Tivesse feito algo errado, foi apenas uma singela e irrisória sugestão mal colocada… e… então, ééé… adeus!

Com um movimento abrupto, virou-se e correu para voltar ao trabalho, afastando-se rapidamente para uma direção onde não pudesse ser visto. Lucian não queria nem imaginar a reação de Alaric caso descobrisse que ele havia se metido em problemas por falar demais no momento errado e acabado se entregando assim. Melhor era sumir antes que a situação se complicasse ainda mais.

— Aquele jovem…

Eian Liu começou a rir, e Zhi Fēng, confuso com a reação exagerada de Lucian, observou seu guardião se divertir e não pôde conter a risada também. No fim, não era como se fossem demitir o garoto por um deslize tão trivial. A situação, apesar da tensão inicial, acabou sendo uma fonte inesperada de alívio e diversão para os dois.

— Não assuste os outros assim, Eian… — A voz de Zhi Fēng tremia de tanto rir. — Não é legal… O coitado vai acabar traumatizado. Não quero nem imaginar a reação de Alaric se ele ficar sabendo do que fez…

— Não, é bom que ele aprenda logo — respondeu Eian Liu, começando a adotar um tom mais sério. — Você pode ser uma pessoa benevolente que nunca daria importância a palavras como aquelas. — Seus olhos se estreitaram, transmitindo uma severidade inesperada. — Mas não posso dizer o mesmo de seus irmãos… Se aquele garoto tivesse dito o que disse na frente deles, certamente seria demitido na hora, ou pior…

Eian Liu então suavizou a expressão, voltando a um tom mais tranquilo e compreensivo.

— E quanto a Alaric, você já o conhece bem. Sabe que ele seria o primeiro a reagir da forma como eu fiz, ou até pior. É melhor que o rapaz aprenda a se cuidar e a pensar antes de falar, para evitar situações como essas no futuro.

Era uma verdade incontestável: se as palavras de Lucian chegassem aos ouvidos arrogantes de seus irmãos, o rapaz não só perderia o emprego como, em circunstâncias extremas, poderia até mesmo correr risco de vida. Zhi Fēng suspirou, concordando com a observação de Eian Liu, mas estava visivelmente incomodado pelo comportamento extremo de seus irmãos, tão implacáveis quanto seu pai.

Dando um último olhar para o jardim, ele se dirigiu à porta principal da residência e adentrou a mansão. A presença encorajadora de Eian Liu e a conversa com Lucian, apesar dos inconvenientes, haviam proporcionado um alívio temporário. No entanto, essa leveza desapareceu imediatamente ao cruzar a soleira da porta, quando avistou dois rapazes com cabelos que lembravam os seus. Pior ainda, eles pararam ao notar sua chegada.

— Olha quem resolveu aparecer… — disse Eyang Fēng, um dos irmãos, com um tom de desdém que deixava claro o desagrado em revê-lo após um período de ausência. — Já estava começando a gostar da sua falta… Era ótimo não ver sua carinha patética perambulando por aí.

— Eyang… Fico feliz em te ver também… — respondeu Zhi Fēng, abaixando a cabeça em um gesto de resignação, enquanto sentia a animação desaparecer por completo. — E você também, Andong…

Suas últimas palavras foram direcionadas ao rapaz ao lado de Eyang Fēng, um jovem que se destacava por seus cabelos verdes-claros, quase brancos, uma característica marcante da família. Ele era um pouco mais alto que Eyang e possuía músculos significativamente mais robustos. Seu olhar, penetrante e inabalável, contrastava fortemente com o sarcasmo maligno de seu irmão.

A íris de Andong era severa e impassível, uma íris de aço que parecia atravessar a alma de quem ousasse cruzar seu caminho. 

— Abandonar o clã e suas responsabilidades dessa forma — começou Andong, com uma voz grave que reverberava pelo ambiente, carregada de uma autoridade que não admitia desaforos. — É totalmente inaceitável para um herdeiro direto, Zhi Fēng. Especialmente quando você se refugia em um clã de tão baixo prestígio como aquele em que esteve. Sua posição não comporta tais ações sem que haja consequências…

O impacto das palavras de Andong fez com que Zhi Fēng erguesse a cabeça abruptamente, surpreso e inquieto. A menção da palavra "consequências" acionou um alarme interno perturbador, e ele se viu questionando o verdadeiro significado daquela ameaça implícita. Desviou a atenção para o outro irmão, mas o olhar para Eyang não trouxe alívio; pelo contrário, afundou ainda mais o coração do jovem ao perceber o sorriso escarninho do próprio irmão, que exibia uma maldade clara.

As mãos de Zhi Fēng, um reflexo de nervosismo, tremiam levemente, e suas pupilas se dilataram, revelando a tensão que o dominava. Eian Liu, que estava logo atrás, observava a cena com uma sensação crescente de impotência. Ele sabia que nada poderia fazer para intervir, especialmente quando se tratava dos irmãos de Zhi Fēng, que eram, na prática, seus superiores.

— O que quer dizer com “consequências”? — Zhi Fēng estava atônito, com sua mente turvada pela confusão e pela falta de uma resposta lógica. — Eu não fiz nada de errado! Minhas obrigações eram com nosso campeão… meu campeão, Alaric! E eu cumpri com êxito até agora. Não venham me falar de consequências!

— Ora! Vejo que alguém aprendeu a se impor — comentou Eyang Fēng, seu olhar agora estreito e o sorriso sarcástico acentuava ainda mais seu semblante sinistro. — Mas saiba de uma coisa: é inútil, pois nosso irmão está certo. Você pode gritar como um cãozinho frágil que é… Ou espernear como um bêbado patético, mas, contudo, não escapará de enfrentar as consequências pelo que fez, irmãozinho.

Eyang começou a se aproximar lentamente, cada passo calculado parecia carregado de uma ameaça inquietante. O coração de Zhi Fēng acelerou com a aproximação, e seu corpo enrijeceu, como se tentasse se preparar para o que estava por virAndong Fēng observava, impassível e sem expressão, como uma rocha fria e imperturbável. Não havia um sorriso, uma palavra, ou qualquer reação que pudesse oferecer um alívio ao jovem.

— E, bem, acho que podemos começar a aplicar as punições agora mesmo! — Eyang Fēng disse, com uma maldade evidente em sua voz, enquanto estendia a mão em direção ao irmão.

Zhi Fēng, paralisado pelo medo, prendeu a respiração e aguardou por um contato que nunca chegou.

— Eita… Foi mal, minha mão acabou escorregando e acabou segurando a sua… — disse o recém-chegado, Shin Kensuke, interrompendo o avanço de Eyang Fēng. O tom de desculpas apressadas e a expressão desajeitada de Kensuke contrastavam fortemente com a situação tensa. — Mas, né… Como falei, foi mal, foi mal…

— Estrangeiro maldito… Que nojo, me solte! — Eyang Fēng exigiu, com uma raiva explosiva, tentando puxar o braço, mas sem sucesso. A força de Kensuke, seu braço robusto e imponente, era um bloqueio intransponível para o irmão de Zhi Fēng. — O que pensa que está fazendo, seu desgraçado? Sou seu superior aqui! Me solte! Antes que eu te mande de volta para aquele reduto que você chama de nação, em caixas separadas!

Shin ignorou o chilique de Eyang, mantendo um aperto firme enquanto desviava sua atenção para Zhi Fēng, que estava em estado de choque absoluto, paralisado. À frente do jovem, Eian Liu havia se posicionado de forma protetora, desafiando as normas e regras que o impediriam de intervir diretamente. Apesar dos riscos, ele estava preparado para enfrentar qualquer consequência para proteger seu mestre, embora a situação ainda não tivesse escalado a esse ponto.

Com uma expressão impassível, Shin focou seu olhar em Zhi Fēng, tentando transmitir um senso de calma e controle em meio ao caos.

— Solte meu irmão — ordenou Andong, com um tom ameaçador e monótono, como se não houvesse margem para recusa.

Ao ouvir a voz fria e autoritária de Andong, Shin estremeceu levemente e imediatamente liberou o braço de Eyang. Seus olhos se encontraram com o rosto impassível de Andong, que parecia não se perturbar com o que acabara de ocorrer. A ausência de qualquer reação visível do irmão, tão imperturbável, só acentuava a tensão no ambiente.

— Eu vou! — Eyang tentou se mover, mas antes que pudesse dar um passo, uma mão pesada pousou sobre seu ombro, impedindo-o de avançar. — Que foi?

— Aquiete-se, deixe isso para lá. Nosso irmão… Zhi Fēng enfrentará as consequências de qualquer maneira — respondeu Andong, com uma firmeza que não admitia discussão. Ele deu um último aperto no ombro de Eyang com uma decisão quase tangível e, sem mais palavras, virou-se e começou a se afastar. — Nosso pai o espera em seu escritório, Zhi Fēng. Não o faça esperar demais.

— Esse seu ato insubordinado será perdoado por hoje, estrangeiro maldito, mas só por hoje — Eyang Fēng lançou um último olhar de desprezo para Shin Kensuke antes de se virar e começar a seguir seu irmão. Não antes de fazer um gesto de repulsa, cheirando o próprio braço onde sentira o aperto. — Que beleza… Agora estou fedendo a aquele estrangeiro… Inferno..

As palavras anteriores de Andong fizeram a respiração de Zhi Fēng travar por um breve instante. Sua visão turvou-se, e ele perdeu o equilíbrio, quase caindo. Eian Liu foi ágil em seu movimento, sustentando-o com firmeza para evitar uma queda iminente.

— Jovem Mestre! Está tudo bem? — indagou Eian, sua voz carregada de preocupação enquanto mantinha Zhi Fēng estável.

— Que gentinha mal encarada… Contudo, é... Vixi... Agora a situação complicou — murmurou Shin Kensuke, passando a mão pela testa e fazendo uma careta de desagrado. — Queria dizer nada, mas ferrou... ferrou...

Eian Liu lançou um olhar severo para Shin, suas sobrancelhas se cerrando em irritação. Não era o momento para comentários impróprios; Zhi Fēng já enfrentava o suficiente sem que Shin ampliasse a pressão. Percebendo a intensidade do olhar do velho homem, Shin desviou as pupilas, mordendo o lábio em uma expressão desconfortável e um pouquinho envergonhada.

— Desculpe, desculpe... só que, ahhh... — Shin retirou a mão da testa, soltando um suspiro frustrado. Ele então voltou seu olhar para Zhi Fēng, ainda visivelmente abalado. — Olha, Zhi Fēng, não dê importância ao que seus irmãos dizem. Não sofra antecipadamente pelo que ainda não aconteceu. Não tenha medo daquele... do seu pai. Vá até ele e fale com sinceridade. Responda a todas as perguntas dele com honestidade; fugir não vai adiantar. Eu sei que enfrentar a realidade e confrontar nossos medos pode ser difícil, mas não há onde se esconder.

— Meu olhar não foi feito para que você dissesse tudo isso… Mas, haha! Eu continuo a me surpreender com essas palavras tão eloquentes — observou Eian Liu, esboçando um sorriso cético. Em seguida, ajustou a postura de Zhi Fēng, retirando a mão que o sustentava com um gesto cuidadoso. — Como ele disse, jovem mestre, não há para onde correr ou se esconder. Apenas aja como sempre agiu e dialogue com honestidade.

— Elo… O que? — indagou Shin, com um semblante confuso. Aquele velho sempre usava palavras complicadas demais. 

Agora um pouco mais estável, Zhi Fēng engoliu em seco, como se estivesse engolindo todo o medo que o dominara momentos antes. Com esforço, controlou as batidas desordenadas de seu coração e balançou a cabeça em sinal de aceitação, demonstrando que compreendia e estava pronto para enfrentar o que viria.

— Farei como disseram... — Zhi Fēng agradeceu, colocando a mão no ombro de Shin, que era um pouco mais alto que ele. — E Shin, obrigado por tudo o que disse. Sei que sua situação aqui não é fácil. Ouvir palavras como as do meu irmão não é agradável nem para mim, quanto mais para você, que é o alvo direto… Infelizmente, aqui, neste lugar maldito, ainda enfrentam grandes preconceitos por onde nasceu. Mas saiba que, para mim, você não é apenas um estrangeiro; é um verdadeiro companheiro de clã e, mais importante, um grande amigo pessoal.

Shin sentiu um calor reconfortante ao ouvir as palavras de Zhi Fēng. A sinceridade e o reconhecimento do jovem mestre proporcionaram um alívio bem-vindo, uma pausa temporária na pressão constante que enfrentava. Seus olhos brilharam com um brilho sincero, e seu semblante se suavizou, mostrando a gratidão e lealdade que sentia.

— Caramba, Eian, esse tempo que ele passa com você realmente ensinou-o a usar bem as palavras... — comentou Shin, enquanto um sorriso radiante se formava em seu rosto. Embora não fosse o tipo de pessoa que choraria por elogios, sentiu uma leve emoção que quase o fez querer deixar as lágrimas caírem. — Bom, façam o que têm que fazer. Vou me retirar agora; preciso realizar meus treinamentos matinais e me preparar para o que está por vir.

Shin deu um breve aceno de cabeça para os dois, o sorriso ainda iluminando seu rosto enquanto se afastava com uma determinação renovada. Embora demonstrasse uma atitude destemida em relação ao preconceito que enfrentava por ser um estrangeiro, as piadas, olhares estranhos e ofensas diretas frequentemente o incomodavam mais do que admitia. Para o mundo, ele mostrava indiferença e um espírito resiliente, mas, no fundo, ser julgado e menosprezado por simplesmente vir de um país rival era amargo, como um chá azedo.

No entanto, o apoio e a amizade de pessoas como Zhi Fēng e Eian Liu tinham o poder de suavizar esse amargor e aquecer seu coração. A sensação de ser aceito e reconhecido era um bálsamo para as feridas invisíveis que carregava. Shin segurava as lágrimas que ameaçavam surgir, mas o sorriso largo e sincero permanecia, refletindo a gratidão e o calor que sentia por ter encontrado camaradas que realmente compreendiam e valorizavam sua presença.

— Vamos, jovem mestre? — chamou Eian Liu, ao que Zhi Fēng respondeu com um aceno firme, demonstrando que estava pronto para enfrentar o que viria a seguir. 

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Já um pouco distante do local onde haviam tido a breve e tensa troca com Zhi Fēng, Andong e Eyang caminhavam com tranquilidade. 

— Aquele estrangeiro repugnante… Quem ele pensa que é para me tocar dessa forma? — Eyang resmungava, o ódio e a indignação fervendo sob a superfície, seus punhos cerrados como se estivessem prestes a estourar. — Andong! Por que não me deixou aplicar um merecido corretivo naquele imundo?

Andong, à frente, seguia com sua habitual serenidade imperturbável. Seus passos eram calmos e calculados, sem a menor alteração em sua postura. A falta de expressão em seu rosto tornava difícil discernir qualquer emoção, mas sua resposta foi fria e direta:

— Evitei que você sofresse as consequências de tais atos — afirmou ele, sem desviar o olhar do corredor à frente, como se absorvesse o ambiente sem esforço.

— Hã? O que quer dizer com isso? — Eyang estreitou os olhos, sua expressão carregada de descontentamento. — Está sugerindo que aquele estrangeiro poderia, ou até mesmo teria a capacidade de, revidar e me ferir?

Andong cessou o caminhar por um instante, voltando-se para o irmão. Os olhos do rapaz estavam voltados para Eyang; impassíveis e profundos, pareciam atravessá-lo com uma intensidade inimaginável. O silêncio que se seguiu era denso, e o jovem sentiu seus passos vacilarem, travando, com os músculos tremendo sob o peso daquele olhar penetrante.

— Não sei quem sairia vencedor de um combate direto entre vocês dois — revelou Andong, sua voz grave e calculada. — Poderia simplesmente dizer que, por ser herdeiro direto, você venceria sem dificuldades… Mas, sinceramente, tenho minhas dúvidas.

A dúvida no tom de Andong era enigmática, levantando questões sobre se ele estava sendo humildade, evitando conclusões arrogantes, ou se simplesmente estava mostrando desprezo por seu irmão. Eyang, fervendo de raiva, estava prestes a retorquir quando Andong continuou com um tom de indiferença calculada:

— No entanto, não foi por força ou poder que mencionei as consequências.

— Então, por que? — Eyang se inclinou levemente para frente, o orgulho e a bravura estampados em seu rosto. — Diga de uma vez!

O jovem observou o gesto de Eyang, um movimento que, normalmente, indicava uma tentativa de intimidação, uma aproximação estratégica para exercer pressão de alguma forma… Patético, um sutil desdém cruzou o rosto de Andong; esse tipo de atitude não o afetava. Com um suspiro resignado, ele se virou e retomou sua caminhada.

— Às vezes, parece que sua prepotência o impede de enxergar o que realmente acontece nesta casa — disse, lançando um olhar de desprezo por cima do ombro para o irmão. Eyang não compreendeu totalmente o significado das palavras, mas decidiu ouvir, continuando a segui-lo. — Às vezes, você é mais irritante e sonso do que nosso frágil irmãozinho. Reflita melhor… Kensuke Shin, um estrangeiro que, por algum motivo, foi aceito em um dos clãs mais renomados de Donfang e, além disso, se tornou um dos nossos instrutores mais influentes e um dos favoritos de nosso pai.

— Hmph! — Bufou com desdém. — Fala como se ele fosse respeitado por todos aqui. Pode até ser um instrutor, mas ninguém quer treinar com ele. Por que acha que o dojo dele está sempre vazio? Hu!Hu! É até patético pensar nisso.

— Nossos subordinados podem até não respeitá-lo, assim como nós dois. É compreensível, dado que ele é apenas um estrangeiro asqueroso daquele reino podre — disse, erguendo o olhar para o teto, como se ponderasse profundamente sobre suas palavras. — Mas é exatamente por ser tão compreensível que falo tudo isso. Ou nunca reparou em como nosso pai o trata? Ele não o despreza como faz com o próprio filho, nosso irmão. Na verdade, mantém sempre uma postura amigável e acolhedora quando está perto dele. O patriarca, nosso pai, demonstra respeito e até mesmo aprecia aquele estrangeiro.

Eyang parou por um momento, refletindo sobre as vezes em que viu seu pai ao lado de Shin Kensuke. De fato, nunca presenciou o patriarca demonstrando qualquer desprezo pelo homem que, o jovem considerava imundo. Na verdade, era o contrário: o respeito e a consideração que o pai mostrava a Shin eram notáveis, algo que Eyang não via ser concedido nem mesmo a Zhi Fēng. O jovem ficou dividido entre torcer o rosto em repulsa ou sorrir em escárnio pela situação absurda em que seu irmão parecia se encontrar. 

— Zhi Fēng é realmente um zero à esquerda dentro da própria casa! — comentou com um tom de satisfação cruel. A ideia de que o irmão fosse uma decepção total para a família trouxe-lhe um prazer sórdido. — Entendi o seu ponto agora. Se nosso pai dá mais valor a aquele estrangeiro do que a Zhi Fēng, qualquer ato meu que prejudique o hipotético protegido poderia, teoricamente, resultar em consequências para mim.

— Exatamente — confirmou Andong, soltando um suspiro de frustração contida. — Portanto, é mais sensato mantermos uma relação fria e neutra com aquele homem, evitando qualquer ação que possa afetá-lo diretamente. Embora eu ache isso extremamente irritante, é mais prudente que mantenhamos a ira, o desdém e o descontentamento de nosso pai concentrados no inútil do nosso irmãozinho. Concorda?

— Haha! Sem dúvida! Na verdade, isso é perfeito... Sabe, nosso pai já se envergonhou e desapontou tanto com aquele fracassado que parece estar realmente considerando facilitar a competição entre nós dois pelo cargo de líder do clã. Deixando o idiota em uma situação realmente de merda.

Pela primeira vez em muito tempo, Eyang viu Andong exibir um sorriso confiante e, acima de tudo, arrogante, enquanto soltava um risinho de desdém. 

— Quem diria, o mais velho se tornando o mais indigno de herdar qualquer coisa. É irônico, mas não deixa de ser hilário — Andong continuou a rir, acompanhando o tom sarcástico do irmão.

Os dois continuaram a caminhar pelos corredores da mansão, suas risadas ecoando com um desdém cru. A atmosfera ao redor deles parecia quase palpável em seu desprezo, com cada risada e comentário desdenhoso deixando um rastro de ressentimento e descontentamento enquanto se perdiam na vastidão da mansão.



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