Volume 2

Capítulo 131: Ambições de um Mago

Dalian estava sendo conduzido à sala de reuniões da Tríade pelo próprio chefe, Duo Chuan, que viera pessoalmente encontrá-lo. O ambiente por onde caminhavam era um grande galpão, movimentado e repleto de trabalhadores que carregavam pesadas caixas de madeira de um lado para o outro, formando um balé desorganizado de suor e esforço. A luz branca, projetada pelos refletores mágicos nas paredes, criavam sombras dançantes nas paredes e no chão, enquanto o som constante de passos e conversas baixas preenchia o ar.

— O que tanto carregam nestas caixas? — indagou o mago, seus olhos percorrendo o cenário à sua volta com curiosidade e uma ponta de desconfiança. Ele mantinha o passo firme, acompanhando Duo Chuan.

— Tudo — respondeu Duo Chuan, com uma voz carregada de autoridade e uma pitada de orgulho, enquanto guiava Dalian por entre o emaranhado de caixas e homens. Ele fez um gesto amplo com a mão, indicando o conteúdo variado das caixas à volta. — Desde alimentos e tecidos até armas. Mas isso não é tudo. — Ele fez uma pausa, e continuou: — Também transportamos pessoas e criaturas, normais ou raras… Tudo que pode ser traficado, é traficado aqui. 

O mago escutou tudo aquilo com um misto de admiração e cautela. Ele estava entrando em um mundo completamente novo. Não que na nobreza não existissem coisas assim ou piores; não era raro ouvir sobre humanos ou outros seres sequestrados e depois vendidos. Nobres compravam tais seres ou pessoas e os mantinham como propriedade em sigilo, pois isso era considerado crime em países como Aldemere e outros. Ainda assim, sentia que a cada passo que dava, era como afundar em piche, sendo cada vez mais consumido por aquele líquido viscoso.

— É uma linha bem ampla, atendem todos os públicos e necessidades — comentou ele, mantendo uma expressão neutra. Seu olhar vagou pelo galpão à procura das pessoas ou criaturas, mas falhou em encontrá-las. — E onde essas pessoas estão?

— Em outro lugar, mais seguro e menos aberto, se é que me entende… — respondeu, com um sorriso enigmático. — Ora, realmente achou que deixaríamos uma mercadoria igual a esta exposta assim? — Ele adquiriu um olhar frio, quase indescritível, como se estivesse testando Dalian ou tentando entendê-lo. — Mas pelo que vejo, você não parece se importar com tais pessoas, não é?

O mago deu de ombros. De fato, não se importava com essas vidas. Como não se importava com nenhuma outra. Por isso, mesmo sentindo-se afundar em um líquido viscoso como piche, caminhava com serenidade. Se nunca ligou para isso na nobreza, não seria em uma organização criminosa como aquela que iria dar alguma importância.

As paredes de concreto puro e bruto eram opressivas, imponentes, como se o próprio peso delas esmagasse os espíritos que ali residiam. Embora risadas estridentes ecoassem pelo espaço e conversas animadas se entrelaçassem no ar, a atmosfera carregava uma tensão tangível, como era esperado de um lugar onde o ilícito dominava e vidas eram tratadas como mercadoria. Junto, havia um medo subjacente presente em cada canto, como se um controle invisível pairasse sobre todos, uma presença inescapável reforçada pelos numerosos guardas que patrulhavam incessantemente. Eles vagavam de um lado para o outro, sem a menor intenção de esconder as espadas presas em suas cinturas; pelo contrário, exibiam-nas com um orgulho ameaçador, um aviso silencioso de que qualquer deslize seria severamente punido.

Atravessaram uma parte do galpão, seus passos ecoando de forma metálica no chão de concreto, até chegarem a uma porta de aço massiva, fortemente protegida. Dois guardas postados ali, ao avistarem o líder, abriram passagem sem hesitação, uma deferência que denotava respeito e talvez um toque de temor. 

Andrew e Annabeth já haviam ficado para trás há algum tempo. “Tinham que cuidar de outros assuntos”, foram o que disseram. Dalian, no entanto, suspeitava que a garota tinha ido matar alguém para se distrair. O mago até se considerava alguém vil, sem qualquer pudor. Mas aquela jovem conseguia ser pior, muito pior, com uma sede de sangue sem igual.

Dalian e o líder passaram pelas portas que se fecharam atrás deles com um baque surdo. À frente, um túnel extenso se estendia, contrastando com a luz projetada por refletores mágicos do galpão. A iluminação do túnel era proporcionada por candelabros elaborados pendurados no teto,  lançando sombras dançantes pelas paredes pintadas de azul, com detalhes amarelos. O líder avançou decididamente, e Dalian o seguiu de perto, passando por várias portas ao longo do caminho.

Inclusive, Dalian pode ouvir gritos abafados ecoando, gemidos agonizantes e outros ruídos indecifráveis vindo de uma dessas portas, mas decidiu ignorá-los; não era da sua alçada interferir ali. Pelas paredes, inúmeros quadros adornavam o ambiente, alguns dos quais o mago lembrava ter ouvido terem sido roubados. Guardas passavam ocasionalmente por eles, patrulhando cada canto do corredor. Duo Chuan parou bruscamente, indicando que haviam chegado à porta desejada. Ele a abriu, cedendo espaço para que Dalian fizesse o mesmo.

Dentro da sala, a opulência dominava. Logo ao lado da porta, um sofá vermelho luxuoso ocupava o espaço central, ladeado por mais dois de igual requinte. No meio dos sofás, um tapete cujo valor parecia rivalizar com o PIB de alguns pequenos países, estendia-se pelo chão. À frente do primeiro sofá, no final da sala, uma mesa de carvalho opulenta estava coberta por papéis meticulosamente organizados. Pendurado no teto, um lustre de cristal lançava seu brilho suave sobre o ambiente, iluminando cada detalhe com um toque de elegância majestosa.

Dalian observou o ambiente ao seu redor, absorvendo cada detalhe minucioso enquanto Duo Chuan tomava a dianteira, pronto para iniciar uma reunião que prometia revelações significativas.

— Sente-se aqui — indicou Duo Chuan, apontando para uma cadeira luxuosa, revestida de veludo vermelho e adornada com detalhes em ouro. Dalian seguiu a orientação, cada passo ressoando suavemente no chão de mármore, enquanto Duo Chuan se dirigia à outra cadeira, atrás da imponente mesa. — Fiquei sabendo que tem interesse em trabalhar comigo, é verdade?

Duo Chuan puxou sua cadeira, pronto para sentar. Dalian chegou ao seu assento, mas antes de se acomodar, parou, encarando o outro com um sorriso confiante que iluminava seus olhos. O brilho em seu olhar sugeria uma determinação e superestima inabalável, uma chama que ardia com intensidade silenciosa, revelando sua soberba.

— Hum… Bem, não há nem um grama de erro, realmente desejo cooperar com sua organização. — Seus dedos tocaram o couro da cadeira, tamborilando sutilmente enquanto ele falava. — Afinal, não existiria outro motivo para eu vir até este local, creio eu.

— Hah! Justo — respondeu Duo Chuan, apertando os olhos enquanto um sorriso de canto se formava em seu rosto, exibindo um misto de simpatia e astúcia. Finalmente, acomodou-se no assento, ajustando-se ao estofado macio. — Posso saber o motivo dessa vontade?

Dalian também se sentou, sentindo o acolhimento do estofado que parecia moldar-se ao seu corpo, oferecendo um conforto quase luxuriante. O olhar sereno vagou antes de responder, buscando as palavras certas.

— Acho que tudo pelo que passamos lá fora até chegar aqui responde a sua pergunta.

Dalian referia-se à organização como um todo, a tudo que haviam testemunhado no galpão anterior: caixas abarrotadas dos mais diversos materiais fruto do tráfico, a estrutura criminosa imponente. A tríade era respeitada e influente, e era essa aliança poderosa que Dalian desejava para suas futuras empreitadas. Duo Chuan não era tolo; compreendia claramente o subtexto nas palavras de Dalian. Ele repousou uma mão sobre a mesa, seus dedos longos e elegantes destacando-se contra a madeira escura.

— De fato, dispomos de uma grande estrutura criminosa. O tráfico nos rende quantias inestimáveis de dinheiro e outros materiais. Nossa influência cresce a cada dia, e nosso poderio já é capaz de derrubar países menores — admitiu Duo Chuan, com uma franqueza quase brutal. A verdade era incontestável: sua organização estava além do alcance imaginado pelos governantes. Contudo, uma dúvida persistente ainda corroía sua mente, uma inquietação sutil que o fez estreitar o olhar inquisitivamente. — Mas me diga, Dalian, por que deseja tudo isso? O que realmente está planejando?

A sala silenciou-se, como se até mesmo as paredes esperassem a resposta de Dalian. Ele inclinou-se levemente para a frente, o olhar fixo nos olhos de Duo Chuan, refletindo a intensidade de suas ambições.

— Hum… Meu plano, Duo Chuan, é simples: transformar potencial em poder. Você já ouviu falar de mim, eu sei disso… — começou Dalian, a voz carregada de uma confiança quase palpável. Duo Chuan intensificou o olhar, embora mantivesse uma serenidade quase estoica. A luz tremeluzente de uma vela no candelabro lançava sombras dançantes sobre o rosto de Dalian, acentuando suas expressões cautelosas e calculadas. — O que eu desejo é ter este mundo na palma da minha mão. Quero derrubar reinos, tomá-los como meus, destruir aqueles que se opuserem, alcançar patamares que ninguém jamais imaginou. 

Ele fez uma pausa dramática, permitindo que suas palavras reverberassem no ambiente. Com uma confiança que transcendia o mero orgulho humano, como se ele fosse um deus que descesse dos altos céus para proferir uma verdade eterna, ele retomou a fala:

— Pode parecer insanidade, mas desejo superar deuses e demônios, conquistar uma força incomparável e silenciar todos que duvidaram de mim. E, não se engane, Duo Chuan, levarei comigo apenas aqueles que acreditarem na minha visão, me apoiarem. Juntos, faremos o mundo se ajoelhar aos nossos pés. Mas… Para isso, preciso de uma aliança sólida, capaz de me apoiar nas águas turbulentas que se aproximam. Seu apoio pode ser a diferença entre o sucesso e o fracasso das minhas empreitadas.

Dalian não era um novato no intrincado jogo de poder; ele compreendia profundamente o valor das palavras certas e a necessidade de uma transparência calculada. O que havia dito não era mentira, mas, longe de ser um ato de imprudência, era um movimento estratégico perfeitamente orquestrado. Cada palavra, cada pausa, cada nuance de seu discurso havia sido cuidadosamente elaborado para capturar a atenção de Duo Chuan e envolvê-lo em uma teia de palavras que oscilavam entre o plausível e o absurdamente audacioso.

Dalian sabia que convencer Duo Chuan era crucial para o sucesso de seus planos. Por isso, ele não hesitou em tocar nas cordas mais sensíveis da mente de seu interlocutor, apresentando ideias que desafiavam a lógica e ultrapassavam os limites da razão. Com uma habilidade refinada e quase intuitiva, ele conseguiu criar um cenário onde Duo Chuan não tinha outra opção senão se perder na complexidade do discurso.

O silêncio que se seguiu foi quase tangível. O chefe ficou em silêncio, absorvendo o discurso de Dalian, que beirava a insanidade. Cada palavra pronunciada pelo mago parecia se impregnar no ar, como um feitiço que prendia Duo Chuan em seus pensamentos. Ele tinha ouvido falar sobre Dalian, um homem sem escrúpulos, alguém que sonhava alto e não via limites para alcançar seus objetivos, mesmo que isso significasse destruir reinos, enganar pessoas, enfrentar demônios ou desafiar deuses.

Após alguns momentos de contemplação, Duo Chuan deixou escapar um leve riso, um som profundo que reverberou pela sala. Ele oscilou levemente a cabeça antes de recostar-se na cadeira, ainda maravilhado e incrédulo com aquele discurso. Suas mãos se entrelaçaram sobre o peito, os dedos tamborilando suavemente no ritmo de seus pensamentos.

— Esse discurso... ultrapassa os níveis pressupostos de insanidade — disse Duo Chuan, seus lábios se curvando em um sorriso amplo. — Mas é exatamente de pessoas insanas que precisamos. São essas pessoas que fazem o que é necessário por suas ambições, por nossas ambições. — Seus olhos se fixaram em Dalian, cujo sorriso transbordava uma mistura de arrogância e vilania. Era um sorriso que, ao invés de inspirar confiança, enviava um calafrio pelo corpo de qualquer um que o visse, exceto o próprio Duo Chuan. — Está bem, vou te conceder todo o apoio necessário. A partir de hoje, você é um colaborador da Xuè Lián.

Ele fez uma pausa, refletindo por um instante antes de prosseguir:

— Mas me diga, Dalian, qual é o limite de suas ambições? 

Dalian, satisfeito, se jogou na cadeira, os olhos brilhando com uma determinação cruel. Ele inclinou a cabeça levemente, observando Duo Chuan com uma curiosidade calculada.

— E ambições têm limites? — respondeu, a voz gotejando uma confiança inabalável, uma prepotência sem fim.

O ambiente pareceu prender a respiração, cada objeto na sala testemunhando o nascimento de uma aliança que poderia mudar o destino de muitos. A chama da vela no candelabro tremulou novamente, como se até mesmo ela sentisse o peso da promessa e do futuro incerto que Dalian e Duo Chuan estavam prestes a criar.

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A noite avançava lentamente, e a lua, majestosa em sua jornada pelo céu, aproximava-se de seu auge. Sua luz prateada derramava-se sobre o palácio imperial, fazendo com que os blocos de pedra reluzissem com um brilho etéreo que realçava os detalhes dourados das fachadas. O silêncio da noite era interrompido apenas pelo sussurro do vento que passava pelas colunas esculpidas e pelos jardins meticulosamente cuidados.

No alto da grandiosa estrutura, em um dos inúmeros quartos do imenso palácio, duas princesas estavam imersas em uma conversa aparentemente tensa. A sala, rica em tapestries intricados e móveis luxuosos, estava banhada pela luz suave que emanava de um candelabro de cristal. As expressões das irmãs revelavam claramente que o diálogo estava longe de ser pacífico.

— O que está acontecendo entre você e aquele campeão? — perguntou Mei Fang, com um tom de voz que carregava uma mistura de preocupação e reprovação. — Há ou houve algo entre vocês dois?

Wei Fang estava sentada na beira da cama, a postura tensa contrastando com a delicadeza dos lençóis de seda que a rodeavam. Ela inclinou a cabeça ligeiramente, seus olhos fixos em sua irmã. O semblante de Mei Fang, imerso em uma seriedade incomum, transmitia a gravidade da situação. 

— E por que haveria? Não tem nada, ué... Apenas achei ele muito bonito, nada demais. — Wei Fang falou com uma indiferença calculada, sem piscar, enquanto sua hesitação era evidente, apesar de sua tentativa de desviar o foco. — Há algum problema nisso?

— Aham... Você não me engana, Wei. O jeito como trocaram olhares foi extremamente suspeito, e não há como dizer o contrário — respondeu Mei Fang com uma severidade cortante. Seu olhar penetrante parecia atravessar cada palavra como um açoite afiado. — Hmmmm, espera... Será que seu sumiço tem alguma conexão com ele?

Wei Fang engoliu em seco, os olhos se arregalaram em um misto de surpresa e apreensão. Ela desviou o olhar para o chão, como se o piso polido pudesse esconder seus segredos. O silêncio pairou entre elas, denso e carregado, enquanto Wei Fang lutava para encontrar uma resposta que não a comprometesse ainda mais. Seus pensamentos giravam freneticamente, ciente de que qualquer palavra errada poderia provocar uma tempestade ainda maior. Mei Fang não era do tipo que deixava passar insignificâncias; era uma princesa com um senso de dever rígido e preocupações pesadas.

Após alguns momentos de reflexão, Wei Fang optou por uma estratégia que conhecia bem para desviar das acusações da irmã.

— Sério que você está insistindo nisso? Insinuando coisas assim? — Ele dirigiu um olhar carregado de indignação para Mei Fang. A voz preenchida com uma ofensa calculada, como se a própria sugestão de uma relação romântica nesse contexto fosse um ataque pessoal. — Minha carruagem foi assaltada, e eu me escondi por alguns dias. Quantas vezes vou ter que repetir isso?

— Oh, mas se me lembro bem, tudo isso começou porque você fugiu do palácio — Mei Fang manteve-se firme, seus olhos reluzindo com uma seriedade implacável. A voz dela não vacilou, mostrando um controle absoluto. — Sempre achei estranho que uma princesa, que raramente deixa as muralhas do palácio, tenha conseguido sobreviver sozinha por tanto tempo e, além disso, retornado em segurança.

— Grrr… Esse seu jeito desconfiado é tão irritante… Claro que não posso sair do palácio. Nunca pude sair. — Seus ombros caíram, e a cabeça se inclinou para frente, fazendo os cabelos negros deslizarem suavemente sobre seu rosto. — Estou presa aqui neste inferno, como uma prisioneira… Com cada passo da minha vida controlado como se eu fosse uma marionete.

Mei Fang inspirou profundamente, seu olhar se carregando de um pesar silencioso. Observava a irmã com uma compaixão que raramente revelava. Embora fosse conhecida como a “Princesa de Ferro”, envolta em autoridade e firmeza, era evidente que sua dureza não se estendia à própria irmã. “Ela está desviando o assunto… Nunca muda, não é, Wei?”

— Ahh… É para seu próprio bem, sabe disso. Você é uma princesa de um dos maiores impérios, afinal — Mei Fang respondeu com uma rigidez que contrastava com a empatia subjacente na voz. — Não pode simplesmente sair por aí. Além disso, são ordens de nosso pai.

— Nhg… Ordens de papai. Sempre a mesma história, nunca muda… — Os olhos da irmã, ainda fixos no chão, brilhavam com uma desaprovação crua. — Virei prisioneira de nosso próprio palácio, tudo por causa das ordens de papai. Fomos impedidas de ir ao enterro da mamãe, porque era uma ordem do papai. Agora, ele coloca a própria vida da filha em jogo, impedindo-a de decidir até com quem se casaria, tudo por causa de um torneio absurdo. E adivinha? Isso também é uma ordem idiota dele… — Ela expirou com força, o ar que soltou parecia carregado de uma revolta latente. — Já estou exausta disso, dessas ordens, desse modo de agir dele… como se fosse um deus.

As palavras dela eram como espinhos cortantes, carregadas de uma indignação que parecia tocável no ar. Mei Fang, por sua habilidade em manter a calma e desviar de provocações, afrontas e espinhos conseguiu não se deixar afetar profundamente. Contudo, mencionar a mãe foi um golpe direto e doloroso. Com uma expressão que misturava seriedade e afeto, ela colocou a mão no ombro da irmã, um gesto de carinho que contrastava com a rigidez de sua postura.

— Ele não age como um deus, mas sim como rei. No fim, são realmente ordens dele. Afinal, ele é o imperador. Tudo o que faz é para o bem do império, para nosso próprio bem.

A irmã virou a cabeça lentamente, seus olhos, carregados de fúria e inquietação, fixando-se com intensidade em Mei Fang. Sua voz, cortante e cheia de ressentimento, reverberou na sala:

— Me diga, realmente ouve o que está dizendo? Bem de quem exatamente? Onde, em sã consciência, me prender neste inferno pode ser considerado algo positivo para alguém, a não ser para ele mesmo? E obrigar sua própria filha a se casar com qualquer um, apenas porque venceu um torneio ridículo... Nhg, nem consigo encontrar palavras para expressar o nojo que sinto por isso, só de falar enjoa… — Ela torceu o rosto em repulsa, antes de endireitar o semblante novamente. — E aí, então me diga, como isso pode beneficiar o povo? Onde está o bem para nós, para você, Mei Fang? Consegue me explicar exatamente?

A irmã retirou a mão do ombro tensionado da outra com um gesto brusco, e deu dois passos lentos para trás, como se quisesse distância não apenas física, mas emocional. A atmosfera ao redor parecia tangível, o ar estava carregado de uma tensão tão densa que quase se podia sentir a temperatura aumentar, tornando o ambiente sufocante. A luz prateada da lua, filtrada através das janelas, projetava uma sombra alongada e desolada da jovem, que se estendia até os pés de Wei Fang. Era uma sombra que parecia impregnada com o peso da tristeza e da frustração.

— Do que adianta ficar reclamando? Chorando pelos cantos? — Mei Fang falou com um tom de voz que, embora ainda carregasse um resquício da severidade habitual, estava agora tingida de uma vulnerabilidade inesperada. A frieza que antes caracterizava suas palavras havia se dissipado, revelando uma preocupação e um cansaço profundos. — Não podemos fazer nada, apenas obedecer as ordens dele... 

Wei Fang, com o rosto contorcido em um misto de raiva e uma revolta intensa, levantou-se da cama com um movimento brusco. A cama rangeu sob o impacto, e ela se aproximou de Mei Fang com uma intensidade que quase parecia elétrica.

— Hah! Não podemos? Ou você nunca tentou? — A voz dela estava carregada de indignação, uma tempestade de emoções prestes a eclodir. — Já fez isso? Disse a ele o que pensa? Revelou que se opõe a ele decidir sobre sua vida como se você fosse apenas uma peça descartável em um jogo de xadrez imbecil? 

Mei Fang deu um passo para trás, o olhar fixo no chão, suas mãos trêmulas tentando segurar os fragmentos dispersos de seus pensamentos. A confusão em sua mente estava se transformando em um turbilhão, e ela respondeu com um tom de ceticismo, tingido de uma tristeza resignada que parecia penetrar cada palavra:

— E funcionaria? Me diga, Wei, realmente acredita que isso traria algum resultado? Que a consequência de contrariar algo que ele decidiu, seria diferente de receber um castigo ou ouvir palavras doloridas, como sempre aconteceu? — A pergunta pairou no ar, carregada de uma desesperança silenciosa, como uma ferida aberta que se recusa a cicatrizar. Seu olhar distante e a tensão em sua postura revelavam o peso esmagador da resignação. — Eu não acredito nisso. Não vejo o mundo com a mesma inocência que você…

Agora, o papel das irmãs estava invertido. A jovem que antes parecia estar encurralada, sem saída, agora tomava a dianteira, com seu controle recém-descoberto fazendo Wei Fang recuar. Era a dinâmica própria entre elas, como um jogo de espelhos: Mei Fang, com sua natureza rígida e impiedosa como uma princesa resoluta, deixava transparecer uma vulnerabilidade quando se tratava de sua irmã.

— É… tem razão, não adiantaria nada — concordou Wei Fang, sua voz carregada de um misto de frustração e vergonha. Ela tentava domar o turbilhão de emoções que ainda a consumia, percebendo o impacto devastador de suas palavras na irmã. A culpa começava a pesar, como uma âncora que a afundava mais a cada instante. — Me desculpe por ter perdido o controle assim… Só que ver ele tratando nossas vidas, sua vida, como se fosse um mero objeto que ele pode mover como quiser, me… Me indigna completamente, eu não consigo conter a raiva.

— Não, tudo bem… — Mei Fang começou a se afastar, seus passos hesitantes e quase imperceptíveis enquanto caminhava em direção à porta. — Vou para o meu quarto descansar um pouco…

— Mei Fang… — ela tentou falar, mas a culpa e o arrependimento pelo tom áspero que usara eram evidentes na voz trêmula. — Eu…

Mei Fang não olhou para trás, seu semblante marcado pela tristeza e pela determinação enquanto chegava à porta e a abria. Antes de sair, lançou uma última olhada para a irmã e completou:

— Descanse também. Amanhã começa o torneio… Eu não sei o que você tem com aquele rapaz, mas imagino que vai querer torcer por ele. Mas não se engane, eu vou descobrir o que está acontecendo entre vocês dois, e você vai levar uma bela bronca — Seu sorriso frágil tinha uma doçura amarga. — Te amo, minha irmã…

A porta se fechou com um leve baque, o som de seu fechamento ecoou até os ouvidos de Wei Fang, ressoando em sua mente. O peso das palavras e da situação a atingiu com força, assim, deu alguns passos pesados até sentir a cama atrás das pernas. Deixou-se cair sobre ela com um suspiro cansado. A luz da lua invadiu o quarto, lançando uma luz suave sobre o rosto da moça, onde uma lágrima solitária escorreu pelo seu rosto, refletindo o tormento interno.

“Eu sou uma idiota mesmo…” A consciência do erro e o pesar sobre a discussão tornavam o ambiente ao redor dela ainda mais pesado, e o som silencioso da noite parecia ser o único consolo em meio à sua angústia.



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