Volume 2

Capítulo 128: Melodia Afável

Após se reunirem com o imperador e serem apresentados aos prêmios e à grandiosa arena onde as batalhas ocorreriam, os competidores foram informados de que no dia seguinte seriam levados ao temido local conhecido como Flores da Dor, onde o torneio teria seu início. Após todas as revelações e apresentações, eles foram dispensados, livres para ocuparem o tempo restante conforme desejassem. 

Cada um deles, ciente da importância de estar bem preparado, optou por retornar aos seus respectivos clãs para descansar e se preparar para o início das competições. Entre eles, Alaric e Xu Ying também seguiram essa decisão. No entanto, Zhi Fēng, mais instável e preocupado do que o habitual ou não, pois Alaric vivia percebendo um nervosismo quase entrelaçado à personalidade do rapaz, sugeriu que não voltassem à residência do Clã do Vento.

Algo que deixou os jovens perplexos, sem compreender exatamente o porquê, foi quando Zhi Fēng explicou que seu pai havia chegado e que um encontro inesperado com Alaric poderia prejudicar sua concentração e foco. O que fazia sentido em certos aspectos, sendo rapidamente aceito pelos jovens. Mas, no fundo, Alaric sabia que era muito mais pelo receio do próprio Zhi Fēng de encontrar o próprio pai, do que qualquer outra coisa. 

Bem, não importava o motivo, no fim, por esse motivo, naquele dia decidiram que o melhor era se abrigar no Clã das Estrelas, um clã menor que havia aceitado Xu Ying como sua competidora. Normalmente, um clã relutaria em receber um membro tão importante de outro clã, como Zhi Fēng, sem aviso prévio e sem seguir as devidas formalidades. No entanto, sendo um clã menor, os membros do Clã das Estrelas aceitaram com grande entusiasmo, considerando uma honra hospedar alguém tão influente. Era evidente que a empolgação deles se dava por vislumbrarem nisso uma oportunidade de forjar laços valiosos com um dos herdeiros do Clã do Vento.

A atmosfera no Clã das Estrelas era de excitação contida, e os preparativos para a chegada dos hóspedes foram feitos rapidamente. As acomodações eram simples, mas acolhedoras, refletindo o esforço genuíno dos anfitriões em proporcionar o melhor dentro de suas possibilidades. A humildade do clã, aliada ao respeito e à admiração que demonstravam, criava um ambiente tranquilo, ideal para que Alaric, Xu Ying pudessem se preparar mental e fisicamente para os desafios que viriam.

Enquanto Zhi Fēng tentava se integrar às conversas sociais da maneira que conseguia, Eian Liu tinha uma responsabilidade crítica: informar o Clã Fēng sobre a localização atual do herdeiro. O fracasso nessa tarefa poderia desencadear um caos devastador, com potencial para violência em busca de Zhi Fēng. Tal coisa, por mais exagerada que fosse, se dava pois, embora não fosse valorizado por seu pai nem respeitado por seus irmãos, ele ainda era um herdeiro legítimo, admirado por algumas pessoas influentes. 

Antes de o guardião partir, Alaric trocou palavras significativas com ele. As palavras deixaram-o surpreso e, ao mesmo tempo, com uma determinação renovada. O jovem confiou-lhe não apenas sílabas, mas também um aviso crucial para ser entregue a Sofia na residência do clã. 

Era inusitado o jovem abrir-se assim, mas após algum tempo convivendo com Eian Liu, Alaric acabou por notar a honestidade do guardião, além de sua força, tanto externa quanto interna. Isso foi crucial para que ele desenvolvesse confiança em Eian, pelo menos envolvendo este assunto. 

E, embora relutante em revelar o que revelou, não via, ou sequer existia, outra alternativa, pelo menos não imediata. Além disso, sozinho, mesmo com a ajuda da empregada, jamais conseguiria realizar o que planejava. Tampouco achava Xu Ying ou Zhi Fēng fortes ou astutos o suficiente para ajudá-lo naquilo que precisava. Com isso, Eian Liu partiu para realizar suas tarefas. 

A noite avançava lentamente, o silêncio pontuado apenas pelo suave murmúrio do vento nas folhas das árvores. No quintal tranquilo da residência do clã das estrelas, Xu Ying caminhava inquieta, incapaz de encontrar o sono. Cada passo parecia apenas intensificar sua ansiedade, os pensamentos conflitantes giravam em torno do desafio iminente que os aguardava.

Enquanto vagava sob a luz prateada lunar, uma melodia etérea dançou até seus ouvidos, irresistivelmente bela e rica em profundidade. Intrigada, seguiu os sons até sua fonte, encontrando Alaric sentado sobre uma árvore, suas mãos habilmente guiando uma flauta que cantava noite adentro.

Xu Ying permaneceu imóvel, envolta pela música que fluía da flauta como um rio sereno em meio à noite. Cada nota era um fio de prata tecido com habilidade, desafiando o próprio tempo. A melodia penetrava não apenas seus ouvidos, mas também o coração e a alma, criando um espaço onde ela se perdia sem esforço no transe sonoro, relaxando. O mundo ao redor desaparecia gradualmente, deixando-a imersa na magia das harmonias que pareciam surgir de um lugar além do tempo e do espaço.

— Xu Ying? O que faz aqui? — Alaric parou de tocar por um instante, seus dedos ainda pressionando levemente as chaves da flauta enquanto observava a moça do alto. — Acordada…

A voz foi como uma faca afiada que cortou seu momento de devaneios, trazendo-a de volta à realidade. 

— O mesmo que você, eu acho... — respondeu, virando o rosto em direção ao solo com um movimento gracioso. — O sono simplesmente não vem... não sabendo que tudo começa amanhã…

Alaric a observou por mais alguns segundos. Na realidade, não estava nem um pouco nervoso; na verdade, sentia-se bastante tranquilo. Estava ali tocando a flauta porque nunca conseguia dormir bem em lugares estranhos, preferindo a vigília silenciosa.

Contudo, contendo-se, decidiu não comentar sobre como seus motivos para estar acordado eram diferentes dos dela. Ele aprendera a ser mais gentil em suas interações do dia.

— Ficar remoendo o que vai acontecer amanhã não vai te levar a lugar nenhum — aconselhou, sentindo a leve brisa noturna acariciar sua bochecha. — Só vai aumentar sua apreensão pelo que ainda não aconteceu.

Xu Ying fez um biquinho, seus olhos refletindo um misto de indignação e frustração.

— É fácil para você falar... — respondeu, cruzando os braços. — Você é forte, poderoso, não precisa se preocupar tanto. Já eu…

Alaric desviou o olhar para a flauta em sua mão, os dedos acariciando suavemente o instrumento. Um traço de pesar atravessou-lhe o rosto, deixando os olhos perdidos em lembranças antigas que ainda o assombravam. Recordou-se dos tempos em que suas dúvidas internas o assaltavam, questionando a própria força. Ainda hoje, essas incertezas persistiam, pois ele sabia que vencer certos inimigos não eliminava completamente sua desconfiança em relação ao próprio poder. Aceitar participar deste torneio foi uma tentativa de desafiar suas limitações, uma busca por superar sua sensação de fraqueza e fragilidade e, claro, o motivo principal: buscar mais poder. 

Ele só era bom em esconder essas inseguranças por trás de uma máscara fria e impassível. No fim, até Alaric, que parecia invencível aos olhos de muitos, era vulnerável às próprias dúvidas.

— Seu poder, já aprendeu a usar? — indagou ele, buscando desviar o foco de seus pensamentos sombrios.

Xu Ying soltou um suspiro pesado, os dedos nervosos coçando o próprio cabelo em gestos automáticos.

— Uma coisa ou outra... — murmurou, a insatisfação evidente em seu tom. — Não é como se meu poder fosse realmente útil em combate...

Ele a observou por um momento, ponderando suas palavras.

— Me mostre o que sabe fazer.

Pega de surpresa, fitou-o, buscando confirmar se não havia entendido errado. O aceno de cabeça dele deu-lhe a certeza de que cada palavra dita e captada estava correta. Sem nada a perder e precisando reunir forças, não via motivos para recusar. Esboçou um sorriso que tentava sobrepor o abatimento anterior e se preparou. Mas então, tudo desmoronou. Seus poderes não podiam ser exibidos; eram espirituais, não se tratava de invocar criaturas ou conjurar bolas de fogo.

Ela se perdeu na própria melancolia mais uma vez, sentindo a frustração consumi-la como um fogo abrasador. A mistura de apreensão pelo futuro, o sentimento de inadequação e a decepção por não conseguir nem demonstrar seus poderes trouxeram à tona memórias antigas e uma ansiedade esmagadora. O que antes era claro se tornou sombrio, como uma penumbra de preocupações tomando todo o seu campo de visão, sufocando-a, fazendo-a ofegar.

Foi então que, no meio do turbilhão asfixiante de insuficiência, uma nota poderosa alcançou seus ouvidos, acariciando os tímpanos e dissipando a escuridão opressiva que dominava a mente, como o céu que lentamente se limpa após uma tempestade. A segunda nota, tão bela quanto a primeira, ecoou suavemente, seguida pela terceira; assim, a melodia se fez, uma melodia que abraçava a alma e tocava o coração, resgatando-a do próprio âmbito. 

Com curiosidade e os belos olhos úmidos, desviou as pupilas para o alto e deparou-se com Alaric tocando a flauta com esmero. Seu coração, no mesmo instante, descompassou, ainda que confortado pela música. Vislumbrou as melodias mais intensas e belas que já havia escutado fluindo do instrumento que tocava os lábios úmidos dele, e o fazia dedilhar os dedos calejados com graciosidade. Cada toque, cada sopro nas chaves da flauta, era dotado de uma beleza intrínseca, de sentimentos não ditos que preenchiam o ar, contrastando com o canto dos grilos não muito longe.

Naquele momento, a vida parecia se tornar mais leve, e todas as dores da alma desapareceram, como se inibidas pela música. Um breve instante de sossego, uma serenidade abençoada pela luz prateada da lua no céu, se instalou. As notas a acolhiam, guiando-a pelo som. O mundo se tornou encantador; o ambiente estava carregado de harmonia, como se as notas tivessem tomado o espaço das preocupações, com sua regência sutil e ritmo afável.

Os olhos de Alaric estavam fechados, permitindo que o corpo sentisse cada nota com perfeição. Uma inquietação confortável o fez retomar alguns sentidos, levando-o a abrir lentamente as pálpebras, revelando olhos claros que brilhavam com a intensidade da lua cheia. Ao seu redor, como vagalumes, pequenas esferas flutuavam no ar, algumas com colorações diferentes do brilho etéreo comum.

Ele desviou o olhar para Xu Ying, percebendo que as esferas a cercavam, ela as atraia. O chão ao seu redor brilhava, como se emanasse uma luz própria.

— Então esse é seu poder? — indagou ele, surpreso ao perceber a aura vibrante ao redor dela.

— O que? — Xu Ying então notou todas aquelas cores a cercando, todo brilho, toda a magia no ar. — Espíritos… espera, você está os vendo?

— Sim, parece que seu poder tornou isso possível para mim — respondeu , com uma mistura de fascínio e curiosidade em seu olhar.

Xu Ying não conseguia precisar quando começara a ver esses espíritos menores ou até os mais poderosos; era muito pequena na época para ter certeza. Eles sempre estavam por toda parte, agindo como bem entendessem, apesar de não fazerem nada além de flutuar por aí. Para os habitantes da vila, ela era uma anomalia, um estorvo, ou simplesmente estranha por afirmar ver as "bolinhas brilhantes" ou as "Pessoas Flutuantes".

Era comum atribuírem a ela uma espécie de maldição, como se fosse um mau presságio ambulante; toda vez que algo ruim acontecia, fosse uma doença ou uma morte, alguns a culpavam por atrair essas desgraças. O isolamento da vila apenas alimentava essas crenças distorcidas, deixando uma marca profunda na criança.

A única pessoa que Xu Ying conheceu, além dela mesma, capaz de ver espíritos e garantir que não era apenas uma criança com problemas mentais, ou imaginação fértil foi sua avó, também uma médium. Durante sua infância, isso lhe proporcionou um mínimo de conforto, mesmo que ainda fosse frequentemente julgada e incompreendida pelos outros. Agora, Alaric também podia testemunhar isso; ela nem sabia que seu dom poderia capacitar outras pessoas a ver espíritos.

Enquanto Alaric observava as esferas etéreas dançando pelo ar ao ritmo da flauta, ele não podia deixar de admirar sua beleza. Parecia que os próprios espíritos eram atraídos pela música, envoltos na atmosfera mágica. Os pequenos globos de luz pareciam dançar como se fossem guiados por uma vontade própria. 

Xu Ying, tomada pela intensidade do momento, ergueu os braços com uma expressão de pura maravilha. Ela sentiu uma leve pressão sob seus pés, braços e outras partes do corpo, como se mãos invisíveis a segurassem, permitindo que seu corpo leve flutuasse graciosamente no ar. 

Ela estava livre, livre de julgamentos alheios, livre de pensamentos ruins, livre de força ou fragilidade, livre de tudo. Tudo nela, desde os pensamentos até as ações, reações e a própria alma, fluía sem impedimentos por aquele breve momento, como o ar no qual ela pairava agora.

"O uso livre dos espíritos... Eu não entendo bem como funciona, ou o que pode fazer com eles... Mas tenho a sensação de que essa garota será muito forte..." Alaric continava a tocar sua flauta com delicadeza, observando Xu Ying flutuar pelo céu com um sorriso que, poucos minutos antes, ele não acreditaria possível. Ele não compreendia completamente o que eram os espíritos, como surgiam ou como poderiam ser usados por pessoas como Xu Ying, mas algo dentro dele, um instinto inabalável, que pouco errava, lhe dizia que essa garota se tornaria alguém formidável, talvez até uma figura transcendental. Isso o assustava e, ao mesmo tempo, enchia-o de um orgulho que ele próprio não entendia completamente.

— Obrigada, Alaric... — murmurou com ternura, os olhos fixos no céu noturno, onde estrelas pontilhavam a escuridão. — Obrigada por me apoiar, mesmo que à sua maneira...

O jovem não ouviu suas palavras, imerso na música que parecia fluir com sua alma. Alaric podia ser distante às vezes, com sua expressão fechada e frases ásperas que às vezes soavam como brincadeiras de mau gosto. Mas Xu Ying sabia, no fundo, que ele era gentil, uma alma sensível que havia aprendido a se proteger após tantas experiências difíceis.

"Mas eu não vou desistir", ela se comprometeu com firmeza, decidida a não permitir que ele se isolasse. Estaria lá por ele, mesmo que ele próprio preferisse a solidão, perdido em seu próprio mundo ou em nenhum, apenas existindo. Era um pensamento, como sempre, apesar de tudo que passou, muito inocente de Xu Ying, mas que tinha sua intrínseca beleza.

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Não muito longe de onde os jovens se encontravam, mais precisamente no topo da arena onde os competidores iriam lutar, um homem observava em silêncio. No momento em que se encontrava, os competidores ainda não haviam chegado ao palácio para se apresentar ao imperador; na verdade, faltavam alguns dias para que o evento se iniciasse. Seus cabelos negros caíam em ondas suaves até os ombros, refletindo a luz lunar que banhava a arena com um brilho prateado. A túnica azul que adornava seu corpo, não muito atlético, mas ainda assim saudável, ondulava levemente com a brisa noturna. Ele parecia absorver cada detalhe do local, como se cada grão de areia contivesse uma história a ser desvendada.

— Então é aqui que as batalhas ocorrerão — comentou, a voz baixa e pensativa. — É um belo local.

Ao seu lado, uma garota, sentada na posição de cócoras, suspirava de tédio. Seus cabelos, que nasciam pretos e gradualmente assumiam um tom rosado, balançavam ao sabor do vento. Os olhos, de um rosa pálido, refletiam um desinteresse profundo enquanto observava a arena abaixo.

— Vai ser tãoooo chaaatoo — respondeu, alongando as palavras como se o próprio ato de falar fosse um esforço desnecessário.

O homem desviou o olhar para ela, surpreso pela resposta desanimada. Seus olhos castanhos, profundos e inquisitivos, buscavam compreender a fonte de tal desdém.

— Por que diz isso?

A garota levantou os olhos, encontrando o olhar do homem. Havia uma fadiga na íris dela, uma exaustão que parecia ir além do simples tédio. 

— Porque as batalhas serão limitadas, não haverá mortes — uma voz grave ecoou por trás de Dalian, como se a escuridão ao redor tivesse ganhado forma e som. — Você deve ser o Dalian, de quem Annabeth tanto fala...

Dalian se virou lentamente, seus olhos ajustando-se à penumbra até focarem no imponente homem que se aproximava. Ele era um gigante em comparação à jovem ao seu lado. Annabeth, apesar de não ser tão pequena, parecia uma criança diante da imensidão do indivíduo. Seus músculos robustos delineavam-se sob a pele, cada movimento era uma exibição de força controlada. Os olhos alaranjados, com um brilho intenso, fixaram-se em Dalian com uma curiosidade calculada, misturada com uma leve desconfiança. Seus cabelos, da mesma tonalidade que os olhos, eram curtos e arrepiados, conferindo-lhe um ar selvagem. 

— Andrew! — Annabeth exclamou com alegria, levantando-se num pulo e correndo em direção ao homem.

Andrew abriu os braços musculosos e a acolheu com um sorriso genuíno, levantando-a do chão, a girando no ar com facilidade. Parecia até que havia se esquecido da presença de Dalian a sua frente.

— Você demorou tanto... — disse ela, encostando a cabeça no ombro largo dele, sentindo a familiaridade e segurança do abraço.

— A missão levou mais tempo do que eu esperava, e Xiong não ajudou a acelerar as coisas... Depois, o chefe ainda aumentou minhas tarefas — explicou, dando tapinhas amigáveis nas costas dela. — Você sabe como eles são, mas agora estou aqui.

— Simmm! — Annabeth parecia extasiada, apertando os braços ao redor do pescoço de Andrew, como se não quisesse soltá-lo nunca mais. — Ei, agora que você chegou, vamos comer alguma coisa! Ou melhor, vamos jogar um pouco! Não, espera! Que tal irmos massacrar alguma vila? Isso! É o melhor modo de comemorar sua volta!

Dalian observava o reencontro em silêncio, consciente de que não havia muito a ser dito ou a necessidade de se intrometer. Afinal, ele mal conhecia Andrew. O homem musculoso, que até então parecia absorto na alegria do reencontro, finalmente se relembrou da presença de Dalian. Ao direcionar o olhar para ele, a fagulha de felicidade se apagou, dando lugar a uma expressão cautelosa e intensa.

— Você deve ser Andrew Minors — disse Dalian, com um tom moderado, mas carregado de uma autoridade calma, característica dele. — Para vir ao meu encontro, imagino que foi por ordem do seu chefe.

Annabeth percebeu a mudança no ambiente. O ar leve e alegre do reencontro rapidamente se transformou em uma atmosfera densa e carregada de desconfiança. Os músculos robustos de Andrew se enrijeceram levemente, uma resposta corporal à tensão crescente entre os dois.

— Sim, foi um pedido do chefe — confirmou Andrew, fazendo o alaranjado de seu olhar ficar mais intenso, como se analisasse o homem à sua frente com uma perspicácia quase tangível. — Mas também foi uma vontade pessoal da minha parte. Queria ver quem era o homem de quem Annabeth não parava de falar.

Dalian escutou aquilo e observou a garota um tanto perplexo. Não imaginava que ela falava tanto dele assim, não era como se tivessem se encontrado muitas vezes. Annabeth, ao ouvir aquelas palavras comprometedoras e sentir o olhar inquisitivo do outro sobre si, não conseguiu conter o rubor que subiu às bochechas, não sabendo onde enfiar a cara.

— Não é assim também! — exclamou ela, quase deixando o pobre Andrew surdo com o grito. Talvez esse fosse seu objetivo. — Eu apenas contei sobre suas proezas para ele… e como tínhamos, bem, massacrado um vilarejo juntos. Apenas isso! Nada mais!

— Ora, você me superestima demais — respondeu Dalian, tentando parecer modesto, humilde, com um sorriso calculado que escondia muito bem a maldade e prepotência por trás. — No entanto, se ela contou tudo isso sobre mim, o que exatamente você queria verificar?

Andrew, ainda com o ouvido zunindo por causa do grito, levantou Annabeth e a colocou sentada em seu ombro. De lá, Annabeth podia ver tudo: a arena vazia, a cidade que brilhava com tochas e luminárias mágicas. Estar no alto sempre foi fascinante e especial para ela, que sempre se sentiu tão baixa comparada a todos. Sempre que Andrew a elevava assim, era impossível conter o sorriso amplo que curvava seus lábios de forma tão graciosa.

— Apenas queria saber exatamente como era este homem, que contava com tantos feitos incríveis — retribuiu Andrew, num tom que ainda carecia de certeza sobre tudo que ouvira. — Agora que vi, tenho uma ideia de como fez tudo isso...

Dalian não alterou a expressão, mas por dentro estava surpreso. Quando viu Andrew pela primeira vez alguns minutos atrás, imaginou que ele fosse apenas um troglodita com músculos, mas sem cérebro. No entanto, parecia estar enganado. Andrew era astuto, inteligente. Não era só força; havia mente ali também.

— Espero que suas conclusões tenham sido boas — comentou Dalian, semicerrando levemente os olhos, sua expressão irradiando uma combinação de gentileza e alegria. Virou-se em seguida para a arena. — Pois saiba que minhas conclusões sobre você são acima do esperado...

Andrew observava as costas daquele homem, tentando decifrar o verdadeiro significado de suas palavras. A inquietude crescia em seu peito. Uma coisa era certa: Dalian era perigoso. Ele não era um homem que se podia deixar sem supervisão, mesmo que suas palavras não revelassem muito. Andrew reconhecia aquele jeito de falar, os maneirismos sutis, as escolhas precisas de gestos, tons e palavras.

“Como um nobre arrogante... ou um manipulador habilidoso...” Pensou Andrew, familiarizado com aquele tipo de pessoa. Ele não se deixaria enganar facilmente. O que não podia se dizer de Annabeth, no seu ombro, parecendo mais entretida com a vista e a sensação de altura, do que qualquer outra coisa. Ela poderia ser facilmente manipulada por ele 

“Vou protegê-la,” pensou ele, com determinação renovada. “Assim como sempre fiz…”

— Seja como for, devo fazer o que me foi pedido — iniciou Andrew, mudando o foco dos pensamentos. — Vou te levar ao nosso esconderijo, ao encontro do nosso chefe.

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Depois de conhecer Andrew, Dalian foi conduzido pelo rapaz até a base de operações da tríade da qual fazia parte. Passaram por áreas movimentadas da cidade, que pulsavam de vida mesmo sob o manto da noite. As luzes do distrito comercial brilhavam intensamente, refletindo nos rostos das pessoas que transitavam por ali, apressadas e envoltas em conversas animadas. O mago observou que a guarda estava reforçada, e não parecia ser apenas pela quantidade alta de pessoas. As suspeitas sobre as tríades estavam exacerbadas, e o governo já tomava medidas para conter qualquer ameaça. 

Ao deixarem as ruas principais, mergulharam nos sinuosos becos escuros, onde a opulência da cidade dava lugar à decadência. Cruzaram por pilhas de lixo e pessoas maltrapilhas com olhares desconfiados e mal-intencionados. Dalian, arrogante e nada humilde, torcia o rosto em desagrado ao encarar aquela miséria, um nojo evidente. A lua cheia derramava sua luz pálida sobre as vielas, mas suas tentativas de iluminar o caminho eram frustradas pelas sombras densas que dominavam o lugar.

Após caminhar por um labirinto de escuridão e sujeira, chegaram ao suposto esconderijo da tríade. O local parecia ser o fundo de um estabelecimento qualquer. De fora, o prédio não chamava atenção, exceto pelo seu tamanho ligeiramente maior que os demais. Uma porta de aço escuro se destacava à frente, com uma pequena abertura deslizante na altura dos olhos, sugerindo a presença de um vigia.

— Esperem aqui — disse Andrew, dirigindo-se a Dalian e Annabeth.

Annabeth, com um ar de desdém infantil, mostrou a língua e cruzou os braços. Dalian, impassível, apenas fez um gesto de concordância. Andrew avançou em direção à porta com a confiança de quem já havia repetido aquele ritual inúmeras vezes. Elevou a mão cerrada e deu dois toques firmes na porta, aguardou alguns segundos e deu mais três toques, estabelecendo um ritmo que Dalian deduziu ser um código. A pequena abertura deslizante se abriu, revelando um par de olhos que os observavam atentamente.

— A usurpação se faz presente — proferiu Andrew, como uma senha.

— E uma revolta se faz necessária — retrucou o homem, e fechou a pequena abertura pela qual trocara palavras. Em seguida, sons metálicos de trancas sendo abertas ecoaram, ressoando por dentro da estrutura. A porta rangeu em protesto ao ser aberta, revelando uma figura com o que parecia ser um uniforme. — Bem-vindo de volta, senhor Andrew.

O rapaz assentiu e dirigiu a atenção para os dois logo atrás dele, chamando-os para entrar. Dalian não perdeu tempo e avançou, seguido por Annabeth, que já conhecia bem o lugar. Ao pôr um pé depois da soleira, o mago deparou-se com o que imaginara: um estabelecimento. Mesas e mesas espalhavam-se por todos os lados, organizadas em sequências, cada uma coberta por tecidos variados em cores e tamanhos. Diante delas, trabalhadores sentados em cadeiras de madeira, que não pareciam proporcionar mais do que um pequeno conforto, costuravam com habilidade. Os homens e mulheres presentes usavam agulhas para transformar os tecidos em roupas e outros inúmeros produtos, demonstrando destreza com os mais diversos tipos de panos.

— Uma estrutura com não mais do que o cheiro pungente de tinta fresca e o som rítmico das costuras — disse Andrew, mantendo os olhos fixos à frente. A cada palavra, seus dedos corriam pelo tecido fino, sentindo a textura sob sua pele, enquanto continuava a andar. — Quem poderia imaginar que algo mais poderia existir aqui?

Dalian com um sorriso enigmático, refletiu que, de fato, era uma ótima fachada. Qualquer um que olhasse de fora ou entrasse pensaria que era apenas um estabelecimento comum de costura. Mas, claro, sempre havia algo mais. Inúmeros homens iam de um lado a outro, e embora usassem uniformes que pareciam de supervisores comuns, um olhar atento perceberia a robustez das vestimentas, que claramente tinham camadas de proteção. Para um desavisado ou desatento, isso passaria despercebido, tornando fácil o engano. 

Contudo, ali não era o local procurado por Andrew; o lugar que ele buscava situava-se abaixo. Enquanto avançava, seguindo o rapaz, Dalian notou um par de olhos sobre ele. Dirigindo a atenção para a sensação, percebeu uma mulher observando-o do alto, de onde parecia ser o escritório dos gerentes. Era uma jovem de cabelos dourados como raios de sol e olhos âmbar, que brilhavam com um tom quente e enigmático. Ela usava uma máscara intrincada, ornamentada com padrões elaborados que se entrelaçavam, cobrindo seu rosto e deixando apenas aqueles olhos brilhantes à mostra. O mago não se deu ao trabalho de continuar com a atenção fixa nela.

O ambiente, conforme Andrew mencionou, exalava um cheiro peculiar de tecidos novos e tintas, criando uma sinfonia sensorial com o som constante das máquinas de costura e o murmúrio dos trabalhadores. As paredes, adornadas com padrões elaborados, traziam uma frieza subjacente, como se a vida naquele local fosse meticulosamente controlada e cada detalhe estivesse sob vigilância constante.

Annabeth caminhava logo atrás de Dalian, com passos confiantes e às vezes dando pequenos pulinhos, demonstrando uma familiaridade íntima com cada canto daquele lugar. Seus movimentos eram leves e decididos, como se ela se alimentasse da energia vibrante ao redor. Chegaram a uma porta discreta em um canto da estrutura, que Andrew empurrou com firmeza, revelando uma escadaria que descia para além. Sem hesitação, começaram a descida.

À medida que desciam, a iluminação diminuía gradualmente, criando sombras alongadas que dançavam nas paredes ao ritmo de seus passos. O som das máquinas e das vozes dos trabalhadores lentamente se desvanecia, substituído por um silêncio tenso e palpável. A atmosfera mudava, tornando-se mais opressiva, como se cada degrau os levasse para longe do mundo exterior e mais fundo em um segredo oculto.

Finalmente, após o que pareceram intermináveis segundos ou talvez minutos de descida, perder a noção do tempo tornou-se inevitável ao passarem por tantos degraus. Diante deles, surgiu um guarda, este mais bem equipado do que os que estavam acima. Atrás dele, uma porta, que o homem parecia proteger com a própria vida. Mesmo com seu rosto familiar, Andrew, frequentemente chamado de "senhor" por alguns, teve de pronunciar a senha. Ao confirmar a veracidade, o guarda abriu a porta, permitindo a passagem.

Conforme a porta se abria, a luz intensa do interior vazava para o corredor, criando um contraste ofuscante. Dalian, com os olhos arregalados de surpresa, vislumbrou aquele local que mais parecia uma visão majestosa. Era um galpão vasto, onde homens e mais homens transitavam de um lado a outro, carregando caixas de madeiras e diversos objetos. O murmúrio de conversas e risadas estridentes ecoava de todos os cantos, criando uma sinfonia caótica. Nos cantos das paredes, refletores, alimentados por energia mágica e comuns apenas em Aldemere, iluminavam todo o local com uma clareza impressionante, banhando cada detalhe com uma luz quase etérea. 

Haviam caixas e caixotes acumulados em alguns cantos. O ambiente estava repleto de uma atividade frenética, com homens musculosos indo e vindo, pegando as caixas e levando-as até carroças que esperavam na entrada de um túnel imenso. Esse túnel, iluminado por tochas presas nas paredes, parecia se estender infinitamente, levando a algum lugar na superfície, onde o brilho da luz do dia se insinuava.

— Dalian, não é? — Uma voz ressoou no ar, suave mas cheia de autoridade. Um homem de aparência pomposa, vestindo roupas luxuosas adornadas com bordados dourados, se aproximou sorrateiramente do mago. — Bem-vindo à tríade mais poderosa da região, Xuè Lián.

Dalian se afastou suavemente, e com um giro calculado, ficou cara a cara com o homem. Observou os cabelos negros e sedosos de homem, que brilhavam sob a luz dos refletores mágicos, criando um halo quase etéreo ao seu redor. Seus olhos, igualmente escuros, mas com tons mais suaves, encaravam-no sem hesitar, transmitindo uma mistura de curiosidade, mas com pitadas tangíveis de serenidade.

— E você deve ser Duo Chuan — respondeu Dalian, deixando seus lábios se curvarem em um sorriso enigmático. — Líder, ou melhor, chefe da tríade… É um prazer conhecê-lo pessoalmente, devo dizer.



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