Volume 2
Capítulo 127: Feridas Abertas
Após o breve susto que fez seu mundo balançar por um instante, Alaric finalmente conseguiu se estabilizar. A presença indesejada de Rancor o perturbou profundamente. As palavras ecoavam em sua mente, deixando-o inquieto. O que Rancor mencionara parecia estar relacionado à espada que Alaric carregava na alma. Era difícil confiar em qualquer sílaba que saísse da boca vil daquela alucinação, mas não havia outra explicação plausível para o que aconteceu.
Não havia também como negar que aquela lâmina era peculiar; até então, ela não revelara seu verdadeiro poder, algo esperado de uma arma marcada na alma. Além disso, a forma como fora encontrada no armazém do Xiong levantava suspeitas.
Antes que Alaric pudesse ponderar mais sobre isso, o imperador interrompeu seus devaneios.
— Meus competidores — chamou, capturando a atenção de todos. — Espero que a visão dos prêmios que poderão conquistar tenha despertado uma vontade intrínseca de lutar. Contudo, há algo importante que devo informar. Os vencedores serão recompensados com três prêmios valiosos: o Coração de Buda, uma substancial quantia em dinheiro e, é claro. — Ele puxou sua filha mais velha para perto, exibindo-a como um troféu. — A mão da minha filha mais velha.
Alaric fixou os olhos na jovem, notando que seu semblante austero não se alterava por um segundo sequer. Mei Fang parecia alheia ao fato de seu pai estar praticamente leiloando sua liberdade e direito de escolha como se fossem mercadorias triviais. A serenidade em seu rosto era tão imperturbável que poderia ser confundida com desinteresse, apesar do olhar severo, mas Alaric sabia que havia mais por trás daquela máscara de tranquilidade.
Wei Fang, sua irmã, por outro lado, não conseguia esconder sua indignação. A expressão dela se contorcia em um misto de raiva e desapontamento diante das palavras do pai. Seus olhos faiscavam enquanto observava a cena, seu corpo inteiro tensionado em um protesto silencioso. Lançou um olhar de soslaio para Mei Fang, na esperança de ver algum sinal de relutância, algum indício de resistência, buscando desesperadamente por isso.
No entanto, nada disso se materializou. A impassibilidade de Mei Fang apenas serviu para aumentar a frustração da outra. Gradualmente, a expressão de Wei Fang relaxou, a raiva se dissolvendo em resignação diante da ausência de reação da irmã. Era como se a conformidade de Mei Fang fosse uma barreira intransponível que a mantinha cativa em sua própria determinação.
Alaric continuava a observar atentamente as reações dos competidores ao redor. Nenhum deles parecia demonstrar sentimentos maliciosos, mas também não havia sinais de repúdio. Seus olhares eram neutros, exceto por Xu Ying e Jie Ming. Xu Ying, com seu semblante contorcido, franzia a testa levemente, sinalizando sua desaprovação. Alaric sabia que a reação de Xu Ying se dava por sua bondade intrínseca, uma alma que não suportava injustiças, embora ele não soubesse se essa reprovação também era fruto de experiências pessoais com a privação de liberdade.
Por outro lado, Jie Ming, um monge devoto seguidor de Buda, mantinha um olhar firme e desaprovador. Para ele, qualquer forma de opressão era inaceitável, mesmo que feita dessa forma velada e disfarçada de tradição. Seu rosto sereno refletia uma calma resoluta esperada, mas seus olhos traíam uma intensa desaprovação que Alaric pôde captar.
Por fim, ninguém também pareceu ter dúvidas sobre o que aconteceria se uma das mulheres ganhassem.
— Mas, além desses prêmios garantidos… — Ele reforçou o olhar velho, abrindo um sorriso calculado, que parecia esconder segredos ancestrais. — Vocês terão o direito de escolher dois prêmios desta sala.
A sala ficou em silêncio por um momento antes de ser preenchida por murmúrios de surpresa e excitação. Todos arregalaram os olhos, pelo menos aqueles que entendiam a magnitude da oferta. Os prêmios diante deles não eram meras recompensas; eram artefatos de valor inestimável, cada um com uma história antiga e poderosa.
Mas Graug, por exemplo, parecia estar escutando em outra língua, alheio até mesmo ao ar que passava por ele. Seus olhos vazios refletiam uma mente perdida em pensamentos distantes ou vazia como um deserto seco, incapaz de compreender a grandiosidade do momento. O restante, no entanto, trocava olhares ansiosos e sussurrava conjecturas sobre quais tesouros escolheriam.
— E, o último dos agrados ao vencedor, o direito de consultar o Equitiliun! — A menção ao Equitiliun causou uma reação imediata. O ar parecia vibrar com a tensão e a curiosidade.
O Equitiliun era uma relíquia mística, um livro de conhecimento antigo e futuro, cuja as informações que continha era dita ser capaz de alterar o curso de reinos inteiros. Poucos haviam tido a honra de consultá-lo, e menos ainda haviam saído os mesmos após a experiência. Os olhos dos presentes brilhavam com uma mistura de temor e reverência.
Após as revelações dos prêmios, os competidores foram convidados, ou melhor, obrigados a se retirar da câmara. A atmosfera estava carregada de tensão e expectativas não realizadas, como um céu prestes a desabar em tempestade. Alaric, junto a Xu Ying, caminhavam em direção à saída, seus passos ecoando no chão de mármore polido.
Passando em frente a uma bola de cristal que brilhava com uma luz própria, quase etérea, Alaric notou o olhar fixo de Xu Ying no objeto. Seus olhos refletiam o brilho da esfera, parecendo constelações cintilantes. Ele podia ver o fascínio estampado no rosto dela, uma expressão de curiosidade misturada com uma espécie de reverência silenciosa.
— Gostou do globo? — indagou ele, tentando quebrar o encantamento momentâneo.
— Hm? — Ela se virou para ele, seus olhos grandes e brilhantes encontrando os claros e monótonos dele. Percebendo o quanto estava absorta, suas bochechas coraram ligeiramente. — S-sim! É… Sinto uma proximidade estranha com ele… Como se me chamasse. É estranho isso?
Alaric podia muito bem responder secamente que sim, era estranho, mas ele mesmo havia sentido algo semelhante quando estava próximo do Equitiliun. Não seria justo julgar ou zombar dela. Enquanto ponderava sobre como responder, Patrick, um rapaz de cabelos vermelhos que lembravam os de Alaric, passou apressado entre os dois, esbarrando no ombro do jovem e empurrando Xu Ying com força, fazendo-a vacilar.
— Apressem esses passos, aqui não é lugar de namorinho. — resmungou Patrick, com uma rispidez que parecia carregar um ressentimento pessoal, embora nunca tivesse cruzado olhares com eles antes.
Xu Ying sentiu como se tivesse sido atingida por um cavalo, cambaleando antes de se apoiar na parede próxima. O impacto a fez ver estrelas, e a dor irradiou por seu corpo, trazendo lágrimas aos olhos. Alaric, tomado por uma mistura de raiva e impotência, segurou seu ombro para ajudá-la a se estabilizar, lançando um olhar de advertência a Patrick.
— Se tem pressa, dê a volta — retorquiu com uma voz firme, tingida de desaprovação. Seus olhos claros faiscaram com uma mistura de indignação e irritação. — Não esbarre nos outros assim. Não te deram educação?
No mesmo instante, Patrick travou os movimentos, virando-se vagarosamente para o jovem. As sobrancelhas arqueadas em um encontro furioso no centro da testa, seu olhar reduzido a fendas intensas de ódio.
— O que você disse, imbecil? — Já era possível ver as centelhas de fogo queimarem nos olhos olivas.
— O que você ouviu — Alaric não se intimidava com facilidade, os olhos apertando em uma raiva crescente. — Ou além de sem educação é surdo também?
Xu Ying, observando o desenrolar das coisas, tocou o ombro de Alaric, temerosa do pior.
— Alaric, tudo bem, não aconteceu nada...
— Hah! Escuta a namoradinha. — Ele abriu um sorriso distorcido, tão nojento quanto sua cara repugnante. — E vaza, antes que acabe mal para você.
Alaric levou a mão próxima à cintura, o brilho dourado surgindo timidamente, as coisas pareciam que iriam sair do controle. Mas, de repente, em meio ao turbilhão de pensamentos odiosos, uma mão conhecida tocou-lhe no outro ombro.
— Que foi, Alaric? Tem alguém te incomodando? — Era Galean, chegando com um sorriso irreverente. — Ouviu isso, Graug? Estão incomodando meu amigo aqui...
Ninguém havia ouvido errado, ele havia citado Graug. Os passos titânicos que sacudiam o solo atrás de Alaric confirmaram que o giganoide colossal estava se aproximando.
— Graug escutou. Amigo de Galean é amigo de Graug. — declarou com a voz grave, seus olhos estreitados irradiando uma intensidade que podia fazer até os mais corajosos tremerem. — E Graug não gosta que incomodem os amigos de Graug.
Patrick, ao se deparar com a imponente figura daquele ser, sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Aquele giganoide não era apenas uma massa de músculos e altura intimidadora; ele exalava uma aura de ameaça que fazia até os mais bravos hesitarem. Patrick, instintivamente, deu um passo para trás, sua bravata murchando tão rapidamente quanto surgira. Enfrentar Graug já seria uma tarefa árdua, mas o verdadeiro problema residia nos reforços que o acompanhavam.
Alaric, com sua postura imponente e olhar frio, parecia pronto para agir a qualquer momento. Galean, com sua presença elegante e enigmática, observava a cena com uma intensidade quase palpável. E Xu Ying, cuja serenidade escondia um poder formidável, encarava Patrick com uma expressão impenetrável, apesar de temerosa. A clara desvantagem era inegável, e o ar ao redor parecia carregado de tensão.
Sentindo-se encurralado, Patrick soltou um resmungo, sua expressão se fechando em uma máscara de irritação e impotência. Sem outra escolha, ele virou-se de má vontade e começou a se afastar.
Alaric observou Patrick se afastar com passos pesados.
— Eu não precisava de ajuda — afirmou ele, as palavras carregadas de frustração.
— Claro que não precisava… — respondeu Galean, num tom baixo e irônico.
— Mas então, desde quando?
Alaric lançou olhares na direção de Graug, esperando que Galean entendesse sua curiosidade. Desde quando Galean havia feito amizade com Graug? Era difícil conhecer alguém ali, todos pareciam se encontrar pela primeira vez, e o giganoide não parecia ser exatamente a pessoa mais acessível para fazer amizade.
Galean deu de ombros displicentemente, observando Alaric com uma expressão intrigada. Parecia que ele não tinha as respostas na ponta da língua, ou talvez não estivesse disposto a compartilhá-las tão facilmente.
— Seja como for — começou Alaric, exausto da conversa infrutífera. — Devemos partir antes que o imperador nos puna.
Galean assentiu e adiantou-se, seguido por Graug; os dois realmente pareciam ter desenvolvido uma amizade inesperada. Alaric tocou suavemente o topo da cabeça de Xu Ying, que permanecera em silêncio durante toda a discussão.
— Está machucada? Algum lugar está doendo?— perguntou com ternura.
Ela o encarou por um momento; às vezes era estranho vê-lo tão cuidadoso, longe do troglodita áspero que costumava ser. Um sorriso iluminou seu rosto, radiante. Ter acesso a esse lado gentil de Alaric era um privilégio raro, mas especial quando acontecia.
— Estou ótima, um empurrãozinho não me fere! — exclamou animada, mantendo aquele sorriso encantador nos lábios. — Não a grande Xu Ying!
— Grande Xu Ying? — Sua voz tremia, intercalada com risos suaves. — De onde você tirou isso?
As pupilas de Xu Ying dilataram, o fascínio tomando seu semblante, finalmente… finalmente testemunhava um sorriso, ou até mesmo uma risada, escapar dele. Alaric, que desde a perda de seu irmão nunca parecia verdadeiramente feliz, permitiu que um riso terno transformasse seu semblante e sua voz.
O jovem, cuja expressão havia sido sempre séria desde aquele trágico dia, finalmente deixou seus lábios se curvarem em um sorriso sincero, não era irônico ou sarcástico, era genuíno. Após tudo pelo que passaram, parecia que finalmente um raio de sol tinha iluminado aquele coração. Era um momento digno de ser eternizado na memória, onde as lágrimas brotavam timidamente no rosto de Xu Ying, enquanto um sorriso afável adornava seus lábios.
— Grande Xu Ying, essa foi boa — disse Alaric, começando a caminhar em direção à saída. — Vamos?
Ela concordou com um aceno, lutando para conter a emoção que transbordava dentro dela. Para Alaric, talvez aquele gesto tenha passado despercebido, mas para Xu Ying, aquele momento era eterno, algo que o Retentor da Paz Peng e o bartender Chen adorariam ter presenciado. Mais lágrimas escaparam de seus olhos, irreprimíveis.
A câmara se esvaziou gradualmente, cada figura saindo em silêncio, deixando para trás a aura de mistério que permeava aquele local. Finn, o conselheiro, ou talvez amigo íntimo do imperador, uma questão que Alaric ainda ponderava, foi o último a sair, fechando a pesada porta de carvalho com uma firmeza que ressoou pelo corredor. O som abafado das trancas ecoou do outro lado, metálico e intrusivo, como se os próprios segredos da sala estivessem sendo selados para sempre.
Alaric olhou para Finn, tentando decifrar a expressão no rosto do conselheiro, mas encontrou apenas uma máscara de serenidade. Finn virou-se lentamente, seus olhos brilhando à luz dos lustres que iluminavam o hall de entrada, combinada com a luz natural que entrava pelas janelas.
— Agora que receberam motivação o suficiente para darem tudo de si no torneio — começou o imperador, sua voz ressoando com autoridade no vasto salão. — Irei levá-los à arena, onde tudo ocorrerá.
Enquanto o imperador falava, Alaric notou o olhar intenso de Wei Fang sobre ele. A íris da moça refletia uma incógnita completa; embora parecesse gentil, havia um brilho travesso presente ali. Durante todo o tempo na câmara de tesouros, ela pareceu ter evitado olhar diretamente para ele, como se estivesse deliberadamente desviando a atenção. Alaric, por sua vez, também evitava olhar para ela, um reflexo de sua habilidade de ignorar os outros, um traço defeituoso de sua personalidade que ainda não havia conseguido superar. Mas às vezes podia ser dito como uma mão na roda, uma habilidade social útil. Afinal, ignorar os outros tinha suas vantagens, permitindo-lhe manter a compostura e evitar se envolver em situações que preferia evitar.
Logo outra vez, Mei Fang notou a interação peculiar entre os dois. Discreta e sutil, ela os repreendeu com um olhar firme, mas silencioso, que carregava a autoridade de anos de experiência, mesmo que não parecesse tão mais velha. Após esse breve momento, Jian lembrou a todos que era hora de levar os competidores à arena, o local onde todos os combates e o evento principal ocorreriam.
Atravessaram as imponentes portas frontais do palácio, suas dobradiças douradas reluzindo sob a luz do sol. Os corredores vastos e ornamentados davam lugar a uma ampla escadaria de mármore que conduzia à parte traseira do palácio. A cada passo, o som dos sapatos ecoava pelo ambiente, misturando-se com o murmúrio distante de servos e conselheiros ocupados com os preparativos.
Alaric, sempre atento aos detalhes ao seu redor, não deixou de notar as encaradas irritadiças de Patrick. O jovem de íris oliva ainda parecia remoer o incidente anterior, suas sobrancelhas franzidas e os punhos cerrados revelando a tempestade interna que o atormentava.
O que não podia se dizer de Alaric, se engana quem pensava que ele ainda se importava. Já havia rugido demais contra pessoas demais para adicionar mais um à soma. Para conseguir o ódio ou, pelo menos, a perturbação do jovem por um bom tempo, a pessoa precisaria fazer algo inimaginável, algo que realmente atingisse sua alma. Patrick, embora tenha despertado um pouquinho de raiva ao tratar Xu Ying daquela maneira, ainda não havia feito o suficiente para conquistar o rancor de Alaric.
Finalmente, chegaram ao local que o imperador chamava de arena. Era um espaço vasto, muito maior do que qualquer outro local de torneio que Alaric já tinha visto. Ao se aproximarem, a primeira visão que tiveram foi de uma imponente parede de mármore branco, adornada com detalhes requintados. Duas faixas douradas circundavam toda a estrutura, refletindo a luz do sol e conferindo um ar de magnificência. A parede erguia-se por vários metros, mas não terminava em um telhado, deixando o céu aberto para iluminar o espaço.
Ao redor da arena, a paisagem externa era de uma beleza estonteante, com árvores frondosas e uma variedade de plantas que criavam um ambiente sereno e acolhedor. O grupo seguiu até uma entrada imponente, onde uma porta maciça dava passagem para o interior.
Eles desembocaram na parte interna da construção, onde bancos dispostos em fileiras elegantes criavam uma atmosfera de expectativa. A estrutura precedia a grande arena, o palco onde os lutadores iriam se enfrentar em batalhas ferozes. As paredes eram decoradas com bandeiras coloridas e esculturas detalhadas de antigos campeões, conferindo um ar de grandeza e tradição ao local. Havia também uma área específica onde os apreciadores deveriam apresentar seus ingressos, evidenciando a exclusividade e a formalidade do evento.
Alaric se surpreendeu ao perceber que, para assistir das arquibancadas, os torcedores precisavam comprar ingressos, um detalhe que não esperava em um evento dessa natureza. O imperador explicou que, através de alguns corredores sinuosos dentro da estrutura, eles chegariam a salas preparadas individualmente para cada um deles. Essas salas eram ricamente decoradas e providas de todas as comodidades necessárias para garantir o conforto dos convidados. Havia também salas conjuntas, caso preferissem permanecer juntos, promovendo a camaradagem entre os presentes.
Depois de explorarem um pouco a estrutura interna, chegou o momento de conhecerem a arena propriamente dita, onde os guerreiros dariam seu máximo para derrotar seus adversários. Ao atravessarem o último corredor e adentrarem o espaço, foram recebidos por uma visão impressionante: a arena se desdobrava diante deles em uma vasta extensão, suas arquibancadas ascendendo em um grandioso semicírculo que parecia tocar o céu.
Cada degrau das arquibancadas, esculpidos com precisão, estava pronto para receber milhares de espectadores que viriam assistir aos combates. O burburinho das vozes já podia ser imaginado, crescendo em um crescente de emoção à medida que as lutas se desenrolassem. Acima dessas arquibancadas comuns, uma área elevada se destacava, seguindo a curva das arquibancadas inferiores, como uma coroa observando de cima. Esse espaço era reservado para a elite, adornado com luxuosos assentos e coberto por toldos ricamente bordados que protegiam os nobres dos raios solares.
Alguns dos nobres já estavam presentes, suas silhuetas majestosamente imponentes. Conversavam em murmúrios contidos, observando o espaço abaixo com olhares avaliativos, enquanto seus servos se moviam ao redor com agilidade e discrição, atendendo a cada capricho.
O chão da arena era coberto por uma areia fina e dourada, cuidadosamente nivelada. No centro, marcas circulares indicavam os pontos estratégicos onde as batalhas começariam.
— Aqui, as lutas ocorrerão — iniciou o imperador, sua voz ressoando pelo campo de areia. Seus olhos brilhavam com uma mistura de entusiasmo e gravidade, enquanto observava os competidores reunidos. — Acho que agora seria um bom momento para explicar como será o torneio. — Fez uma breve pausa, piscando uma vez. — Como os clãs já devem ter lhes explicado, vocês serão enviados para a Floresta da Dor, onde ganharão pontos conforme seus feitos e o nível dos monstros abatidos lá dentro.
O silêncio que se seguiu foi denso, carregado com a expectativa e a tensão palpável dos presentes. Lara, com seu semblante impassível e os braços cruzados, quebrou o silêncio com uma pergunta afiada.
— Para que servirão os pontos? — Sua voz era calma, mas firme, uma lâmina de aço envolta em seda.
O imperador esboçou um sorriso quase imperceptível, satisfeito com a pergunta que claramente esperava.
— Uma boa pergunta, Lara. — Seus olhos percorriam os rostos atentos ao redor. — Os pontos determinarão seu ranking, classificando-os conforme a pontuação obtida. Este ranking não apenas refletirá sua habilidade e coragem, mas também influenciará seu destino neste torneio.
— Ainda assim — começou Galean, erguendo uma sobrancelha com um ar de perplexidade e desafio. — Não explica exatamente o motivo por trás de um ranking.
O comentário gerou uma onda de confusão entre os competidores, que se entreolharam, sussurrando entre si, tentando compreender a lógica assim como Galean. Cada um deles estava absorto em seus próprios pensamentos, lutando para conciliar suas certezas com a nova dúvida levantada. O imperador, flanqueado por suas duas filhas, observava a cena com uma calma imperturbável. Ele colocou uma mão atrás das costas, parecendo ainda mais majestoso em sua postura serena, enquanto os lábios se curvavam num sorriso enigmático.
— Tem razão, Galean. — A voz do imperador soou firme e autoritária, preenchendo o espaço e exigindo a atenção de todos. — Mas, meus competidores, se olharem ao redor e contarem, existem dez de vocês... ou seja, se tivermos cinco lutas, nas quais vocês se enfrentarem, sobrarão cinco competidores. — Ele fez uma pausa deliberada, permitindo que a lógica de sua explicação se assentasse nas mentes dos ouvintes. — Um número ímpar, que fará um de vocês sobrar.
Alguns competidores franziram o cenho, enquanto outros assentiram lentamente, começando a entender a complexidade da situação. As duas filhas do imperador, de pé ao seu lado, mantinham uma postura graciosa e imponente, suas presenças reforçando a autoridade de seu pai.
— Por este motivo — As palavras do imperador cortaram a pequena comoção, e todos se voltaram para ele. Jian, com uma postura régia, continuou: — Planejamos um sistema eliminatório que ajudará a regular isso. Teremos duas lutas iniciais separadas, onde os vencedores dessas batalhas serão considerados dignos de avançar. Quem participará desses embates serão aqueles com as piores pontuações. Ou seja, os que tiverem menos pontos terão mais combates.
Ele fez uma pausa, permitindo que as palavras propagassem e fossem capturadas, prosseguindo:
— Além disso, os pontos decidirão os confrontos futuros. Aqueles com menos pontos enfrentarão os de melhor desempenho. — O imperador respirou fundo, tomando um ar por ter falado demais, e continuou: — Este sistema não só irá testar a força e habilidade dos combatentes, mas também sua resistência e capacidade estratégica. Além de tudo isso, a pontuação será importante para outro fator surpresa, do qual não posso inteirar.
Um murmúrio sutil começou a percorrer a arena enquanto os presentes digeriam a notícia. Alguns rostos mostravam determinação renovada, enquanto outros revelavam uma preocupação silenciosa. As regras agora estabelecidas pelo imperador iriam desafiar a todos, colocando-os à prova de maneiras que poucos poderiam prever.
Eram regras que, embora rigorosas, tinham uma lógica própria, destinadas a fomentar confrontos inesperados, mas emocionantes. O imperador não desejava apenas uma competição; ele almejava um espetáculo memorável, uma exibição de coragem e habilidade que ecoaria pelos corredores do palácio por anos.
Patrick, com os olhos fixos e intensos, não pôde conter sua ansiedade. Seu semblante austero refletia a urgência de sua pergunta, a voz carregada de uma autoridade inabalável:
— Quando seremos enviados para a floresta?
O imperador, imponente à sua frente, voltou o olhar para Patrick. Seus dedos grossos e calejados começaram a deslizar pela longa barba grisalha, um hábito que demonstrava tanto reflexão quanto poder. Após um breve momento de silêncio, seus lábios se curvaram em um sorriso audacioso, e a voz ressoou pela arena com um fervor incontestável:
— Amanhã! O torneio terá início amanhã! Preparem-se!
Cada campeão presente sentiu um arrepio de antecipação, um misto de medo e excitação, à medida que se preparavam para o que estava por vir.
Ninguém parecia realmente perplexo ou indignado com o fato de começar no dia seguinte. No fundo, todos já estavam prontos desde o momento em que aceitaram participar. Para eles, não fazia diferença se começassem em semanas ou naquele exato instante. Nenhum deles havia deixado suas casas, seus países, à toa. Cada um tinha um objetivo claro e inabalável, e estavam determinados a dar o máximo de si para alcançá-lo, custe o que custasse.
Do alto da arquibancada, na área reservada aos nobres, Zhi Fēng e Eian Liu observavam atentamente o imperador discursar para os competidores. Sentados lado a lado, seus olhares amistosos revelavam uma cumplicidade rara, forjada ao longo de anos de amizade e confiança mútua.
— Jovem Fēng — uma voz surgiu por trás, um tom que misturava surpresa e familiaridade. — Há quanto tempo não te vejo.
Zhi Fēng virou lentamente o pescoço na direção da voz, deparando-se com um homem de idade avançada, talvez na casa dos cinquenta. Seu olhar, carregado de uma falsa bondade, escondia um desdém que Zhi Fēng conhecia muito bem. O homem vestia um hanfu luxuoso, adornado com os símbolos do clã do fogo, cujas chamas bordadas pareciam arder com uma intensidade quase real.
— Senhor Huo… — respondeu Zhi Fēng, sentindo um leve desconforto se instalar. — Realmente, já faz algum tempo que os clãs não se encontram…
— Uma lástima, ao meu ver… — replicou o homem, assumindo uma expressão descontente por um breve momento, antes de retornar ao semblante amigável. — Bem, deixando isso de lado. Como vai? E seu pai?
Zhi Fēng percebeu a tensão crescente em seu peito. O sorriso de Huo era uma máscara que escondia intenções mais sombrias, e o jovem sabia que precisava escolher suas palavras com cuidado.
— Estamos bem, obrigado por perguntar — respondeu Zhi Fēng, mantendo a voz firme, ainda que seu coração batesse ligeiramente mais rápido. — Meu pai está ocupado com os assuntos do clã, como sempre. Minto... Na verdade, ele estava acompanhando o imperador em sua viagem para a reunião.
Huo ergueu uma sobrancelha, um leve sorriso se formando em seus lábios.
— Oh, é verdade... — Zhi Fēng sentiu uma pontada de inveja velada, uma perturbação que parecia crescer dentro do homem. — Ah, mas eu soube que você e seus irmãos cuidaram bem do clã durante a ausência dele.
Zhi Fēng comprimiu os lábios ligeiramente, notando a astúcia escondida nas palavras de Huo. O jovem sabia que Huo já estava ciente da ausência prolongada de seu pai; a pergunta não passava de um pretexto para tocar em um assunto mais delicado. O coração de Zhi Fēng começou a palpitar com força, como se uma mão invisível apertasse seu peito, trazendo à tona uma apreensão crescente, incontrolável. Ao seu lado, Eian Liu observava atentamente o nervosismo que começava a abater seu jovem mestre, mas permanecia em silêncio, ciente de que qualquer intervenção seria inadequada. Estavam diante de outro líder de clã, e Zhi Fēng precisava conquistar o respeito por seus próprios méritos.
— Sim, cuidamos... — respondeu Zhi Fēng, tentando manter a voz estável, mas a ânsia era inegável.
Huo inclinou-se ligeiramente para frente, seus olhos penetrantes fixos em Zhi Fēng.
— Ora, isso me lembra que, entre os líderes, seu pai provavelmente seja o mais velho. Se vocês cuidam tão bem do clã, por que ele não se aposenta e passa o bastão para um de vocês?
— Eu… É… — As palavras pareciam fugir dele, dissolvendo-se no ar antes de formar qualquer sentido lógico.
Huo deu um sorriso sarcástico, que mais parecia uma careta amarga.
— Seu pai sempre botou uma expectativa alta em você, apesar de te tratar daquele jeito… — Ele franziu o rosto, como se mordesse uma fruta azeda, lembrando-se de como aquele homem tratava o próprio filho. — Talvez esteja realmente na hora de você assumir as rédeas do clã, ou seus irmãos irão fazer isso… Seu pai não os iria contrariar, afinal, eles sempre foram legítimos.
A última frase atingiu Zhi Fēng como um golpe poderoso, fazendo-o titubear por um instante, prendendo o ar que tentava inspirar. O peso da expectativa e tudo o que o cercava sempre o feriam profundamente. Ser tratado de forma diferente pelos irmãos, não ser considerado legítimo... Era uma ferida aberta que doía a cada lembrança. Huo, neste momento, era como uma cobra venenosa, deslizando silenciosa e traiçoeiramente, pronta para injetar seu veneno. Ele queria adentrar a mente do jovem, talvez por diversão ou buscando algo mais, e no final, conseguiu.
— Opa, acho que falei demais. — Huo se endireitou, dando tapinhas no ombro de Zhi Fēng. — Tenho que ir agora… Dê um oi ao seu pai por mim… — Ele começou a andar, deixando o rapaz para trás, perdido em suas próprias inseguranças. — Isso se você conseguir olhar na cara dele…
Essa última parte foi quase um sussurro jogado ao vento, mas que foi facilmente captado por Zhi Fēng, fechando um caixão que já tinha muitos pregos. Zhi Fēng sentiu uma mistura de raiva e tristeza crescendo dentro de si. Aquelas palavras, ditas com tanta facilidade por Huo, reavivavam antigas fragilidades.
— Jovem Mestre… — Eian Liu levantou-se, colocando-se ao lado do jovem com firmeza e um olhar de proteção. — Não escute as palavras daquela serpente venenosa.
Zhi Fēng ergueu o olhar, seus olhos brilhando com lágrimas que ele lutava para conter. Cada gota refletia a tormenta emocional que o consumia, um turbilhão de sentimentos que ele mal conseguia controlar.
— Eu... — Sua voz saiu trêmula, carregada de dor e dúvida. — Eu realmente mereço liderar o clã? Realmente mereço esperar… ansiar pelo amor de meu pai? Eu, um filho considerado ilegítimo…
Eian Liu ergueu a mão lentamente, seus dedos calejados repousando com delicadeza no ombro de Zhi Fēng, como uma âncora de conforto em meio à tempestade interior que o jovem enfrentava. Através daquele simples toque, havia uma promessa silenciosa de proteção e apoio, como a de um pai consolando seu filho nos momentos mais sombrios.
— Jovem Mestre... — Sua voz era suave, mas carregada com o peso de anos de sabedoria e experiência. Cada palavra era um bálsamo para a alma ferida de Zhi Fēng. — Você nasceu da mesma mulher que seus irmãos. Isso te torna legítimo aos olhos dos deuses e do povo. Não dê importância às palavras daquele homem.
— E do que adianta ser legítimo no sangue, se a força que sempre prezaram na família, que torna meus irmãos amados, é inexistente em mim?... Por isso, meu pai sempre me tratou assim, sempre o fraco... E quando tive a chance de mostrar minha força, eu… — Zhi Fēng dirigiu a atenção para a própria mão sobre o colo, onde o hanfu não conseguia esconder a cicatriz em seu pulso. — Eu falhei... E ela... Eian, será que realmente mereço ser tratado como um lixo por isso?
— Jovem Mestre... — Eian ajoelhou-se ao seu lado, olhando-o com afeto e serenidade. Suas íris velhas e experientes transmitiam compaixão. — Aquilo aconteceu, já passou... Você não teve culpa, era apenas uma criança. O que podiam esperar de você? Não se culpe por isso.
— Como não me culpar, Eian? Se quando a única pessoa que sempre me tratou com carinho, que, diferente de todos, me enxergou além das minhas fragilidades, quando essa pessoa mais precisou de mim, eu... Eu falhei com ela... com ele, com meus irmãos... E por minha culpa, pela fraqueza que sempre existiu em mim... nós perdemos… Por isso que meu pai me despreza, não é?
Eian Liu manteve a mão firme no ombro de Zhi Fēng. Ele sabia que as cicatrizes físicas eram apenas uma pequena parte da dor que o jovem carregava. As feridas emocionais, invisíveis aos olhos, eram as que mais doíam e levavam mais tempo para curar.
— Zhi Fēng, a verdadeira força não está na ausência de falha, mas na capacidade de se levantar após cada queda — disse Eian, sua voz cheia de culpa, como se as experiências dolorosas se firmasse a cada sílaba. — Você é mais forte do que acredita. As cicatrizes que carrega são testemunho não da fraqueza, mas da sua resistência e da sua determinação em seguir adiante, em lutar e proteger. E quanto ao seu pai... — Eian fez uma pausa, seu olhar se tornando decidido. — Chegará o dia em que ele reconhecerá a sua verdadeira força... Este torneio é crucial para isso, não é?
Zhi Fēng piscou com força, tentando deixar para trás o peso das lembranças, tocado pelas palavras firmes de seu guardião. Em suas palavras, ele encontrou uma centelha de esperança. Eian estava certo em uma coisa: o jovem mostraria ao pai que podia ser tão competente quanto seus irmãos, não necessariamente na habilidade com a espada, mas como um líder, alguém digno de conduzir o clã com honra e inteligência.
“Que bom que os nobres, já foram embora ou estão distantes…” pensava Eian Liu olhando em volta, o medo de que a imagem pública de Zhi Fēng pudesse ser prejudicada caso alguém o surpreendesse naquele estado tão fragilizado. As consequências de tal exposição poderiam ser devastadoras, exacerbando ainda mais as dúvidas já existentes sobre suas habilidades e liderança. A mera ideia provocava um tumulto interior em Eian Liu, fazendo seu sangue borbulhar com uma mistura de proteção e indignação.
No crepúsculo melancólico do dia, cada um partia carregando consigo a promessa ansiosa de que o amanhã traria finalmente o início tão aguardado. Os passos ecoavam pelo caminho, impregnados de uma expectativa tangível, enquanto as sombras se estendiam sobre a paisagem, prenunciando o que estava por vir.