Volume 2

Capítulo 124: Buscando, Procurando

Depois do pedido de Dalian para que Bleu, o demônio primordial, encontrasse e trasesse Dorni, para a mansão nas terras desconhecidas, Bleu seguiu até Valmont, uma cidade próxima à fronteira do Reino Elandor, no país de Danterion. O demônio desceu pelas terras montanhosas desconhecidas, um verdadeiro teste de sobrevivência. Atravessou penhascos íngremes e desfiladeiros profundos, enfrentando um terreno traiçoeiro que mais se assemelhava a um labirinto inescapável. 

A jornada foi ainda mais desafiadora devido às criaturas monstruosas e sanguinárias que habitavam aquelas regiões. Bleu, um demônio primordial que já havia visitado a terra em outras ocasiões, nunca tinha encontrado seres tão aterradores. Enfraquecido, precisou se esconder e passar despercebido por muitos desses monstros, ciente de que, em seu estado atual, um confronto direto poderia significar sua morte. A presença humana ou de qualquer outro ser com consciência era inexistente, como se aquelas terras não permitissem a entrada de seres pensantes.

Finalmente, após dias de esforços árduos, Bleu conseguiu sair da área montanhosa, deixando para trás os horrores que quase o derrotaram. Agora, ele se encontrava no topo de uma montanha, observando uma terra ainda gelada, mas onde o gelo já não dominava completamente. À distância, avistou uma cidade estranha, cujos padrões não se assemelhavam aos humanos. A cidade, construída na encosta da montanha, parecia minerar as pedras do local.

Ao ouvir passos logo abaixo, Bleu percebeu o motivo das construções não parecerem humanas: os seres que passavam tinham orelhas pontudas, eram elfos. Mesmo fraco, o demônio desceu e confrontou os elfos. Como não eram guerreiros e não possuíam habilidades de combate, foi fácil subjugar-los. Bleu soube, então, que estava em Elandor, um reino élfico comandado por Elyroi, localizado mais a oeste e fazendo fronteira com vários países, como Lidenfel, Ciantenfel, Danterion e Astot, além dos outros reinos élficos.

Assim que obteve as informações necessárias, os elfos não tinham mais serventia. Bleu deu um fim às suas vidas inúteis, consumindo suas almas para se fortificar. Após sua "refeição", o demônio decidiu se disfarçar de elfo, para evitar suspeitas, assumindo a aparência de um dos mortos por meio de sua habilidade de transmorfação.

Com sua nova aparência, Bleu atravessou algumas cidades, coberto por um capuz preto que ocultava todo o seu corpo. Cada passo que dava era meticulosamente calculado para não atrair atenção. Sua jornada até Danterion foi rápida e decidida. Ele acreditava que era o lugar mais provável para Dorni estar se escondendo, devido à proximidade com Aldemere e os reinos nórdicos, territórios com os quais Dorni já tinha familiaridade.

No caminho, o demônio continuou sua rotina sombria, devorando almas inocentes e azaradas que cruzavam seu caminho. Cada nova vítima não só aumentava seu poder, mas também lhe permitia assumir novas formas, aprimorando ainda mais sua capacidade de se disfarçar, assumindo outras aparências.

Ao chegar nas terras de Danterion, Bleu utilizou sua astúcia para obter informações. Pessoas mal-intencionadas, facilmente corrompidas por promessas financeiras ou intimidadas por ameaças, foram suas fontes. Através delas, descobriu que indivíduos estranhos estavam habitando Valmont, e que um jovem giganoide parecia liderar esse grupo.

Com essas informações, Bleu partiu imediatamente para Valmont. Ao avistar as terras planas da região, sentiu um raro alívio. O horizonte amplo e desimpedido oferecia uma sensação de controle e segurança, uma pausa momentânea na sua incessante caçada.

No coração da cidade movimentada, onde a multidão de pessoas cruzava as ruas como formigas em um formigueiro, o som incessante de vozes e passos ecoava pelas vielas estreitas. As construções imponentes, feitas de concreto e vidro, exibiam fachadas adornadas com letreiros e placas chamativas, cada uma tentando capturar a atenção dos passantes com suas promessas de produtos e serviços indispensáveis.

O aroma irresistível de comida de rua, desde pães assados até carnes grelhadas, misturava-se com o cheiro pungente dos cavalos que puxavam carroças pesadas. A atmosfera era densa e quase sufocante, uma cacofonia de cheiros e sons que pulsavam em um ritmo frenético. As coisas eram assimétricas, mas Bleu não tinha forças e muito o que fazer quanto a isso.

Bleu, com seu capuz puxado para baixo, ocultando parcialmente seu rosto, estava encostado em um barril próximo a uma viela estreita e mal iluminada. Seus olhos atentos observavam o movimento incessante das pessoas entrando e saindo da loja à sua frente, enquanto esperava, paciente.

De repente, uma voz emergiu das sombras da viela.

— Você que tem as informações? — A voz era grave, quase um sussurro, carregada de desconfiança.

Bleu não se deu ao trabalho de virar para olhar, mantendo a postura relaxada, mas alerta.

— Tenho, mas só posso passá-las pessoalmente — respondeu com firmeza, sem desviar o olhar das portas da loja que se abriam e fechavam constantemente. — Me leve ao seu líder.

O silêncio se estendeu por um momento, apenas quebrado pelo ruído distante da cidade. A figura nas sombras pareceu ponderar, o peso da decisão refletido em seu suspiro hesitante.

— Hmmm... — A indecisão era palpável em sua voz. Após um breve instante, o tom mudou para resignação. — Tudo bem, acho que não temos muita escolha. Me acompanhe.

Bleu se afastou do barril com um movimento suave e calculado, ajustando o capuz para garantir que seu rosto permanecesse parcialmente escondido. Ele seguiu a figura que emergia das sombras, entrando na viela escura onde a luz do sol dificilmente penetrava. Seus passos eram silenciosos, cada movimento cuidadosamente medido, enquanto a cidade continuava sua rotina frenética ao redor, alheia ao encontro clandestino que se desenrolava em suas entranhas.  

O homem à frente do demônio usava um capuz negro que também obscurecia suas roupas e escondia seu rosto nas sombras. Sua figura projetava um ar de mistério e perigo, combinando perfeitamente com o ambiente sombrio e úmido dos becos e vielas por onde passavam. Cada passo parecia deliberado e calculado, como se estivesse familiarizado com cada pedra e cada curva daquele labirinto urbano. Para ele, talvez conduzir Bleu por aqueles caminhos tortuosos era tão rotineiro quanto respirar.

Tão rápido quanto um demônio poderia imaginar, eles chegaram ao provável esconderijo de Dorni. O guia apontou para uma entrada sombria, oculta logo abaixo de uma escadaria estreita e desgastada pelo tempo. 

O primordial, sem hesitar, desceu os degraus íngremes, sentindo cada passo ecoar nas paredes de pedra. O receio que antes o assombrava havia se dissipado, substituído por uma sensação de poder crescente, fruto das almas que havia consumido durante a jornada. A força do demônio agora estava num nível considerável, permitindo-lhe lutar ou fugir, se necessário.

Ao alcançar a porta, Bleu sentiu a fria maçaneta na palma da mão. Com um movimento decidido, abaixou-a, empurrando a porta que rangeu dolorosamente, como se não tivesse sido aberta em décadas. A luz do sol invadiu o local esquecido pelo tempo, dissipando a penumbra e revelando um cenário desolador. 

As paredes estavam desgastadas e cobertas de musgo, iluminadas apenas pelas tochas presas nos suportes enferrujados e pelas velas derretidas espalhadas pelos cantos úmidos. O ar era denso, carregado de umidade e poeira, trazendo à tona a sensação de abandono e decadência. Cada detalhe parecia contar uma história de abandono e esquecimento, como se o tempo houvesse parado naquele lugar.

Ao cruzar o limiar do cômodo, sentiu os olhares cravarem-se nele como flechas afiadas. Pelos cantos, numerosos homens estavam sentados, alguns com sinais evidentes de desnutrição. Seus rostos macilentos e corpos esqueléticos revelavam uma luta constante contra a fome e o desespero. Outros pareciam mais mortos do que vivos, largados no chão, segurando suas espadas com a mesma tenacidade com que se agarravam à vida. Todo estavam claramente à beira do colapso, com às forças no limite do suportável.

Bleu respirou fundo, e o cheiro pungente de mofo invadiu-lhe os pulmões, despertando um arrepio em sua espinha. O guia, com passos rápidos, o ultrapassou, liderando o caminho. Ao passarem pelos homens, não houve qualquer reação; apenas observaram-os com olhos cheios de uma curiosidade sombria, quase apagada.

Caminharam até um cômodo nos fundos, onde o guia abriu a porta, revelando um espaço austero. No centro, uma mesa de escritório desgastada pelo tempo e pela falta de cuidados dominava a cena. Atrás dela, sentado numa cadeira que outrora fora imponente, estava Dorni. Seus olhos fundos e a expressão abatida denunciavam a exaustão que o consumia. Cada linha do rosto jovial parecia contar uma história de cansaço e resistência.

Bleu parou, observando Dorni por um momento. Era possível sentir o peso da responsabilidade, da luta silenciosa que emanava do jovem. A sala estava mergulhada em uma penumbra opressiva, quebrada apenas pela fraca luz que as velas tentavam emitir.

Dorni levantou os olhos lentamente, encontrando a íris azulada de Bleu. Havia um cansaço profundo, mas também uma chama de determinação que ainda brilhava, apesar de tudo.

— Ele é o informante, Jarvan? — indagou Dorni, seu olhar cravado no homem ao lado de Bleu, sua voz carregada de expectativa e desconfiança.

— Sim, senhor Dorni — confirmou o homem, o tom vacilante enquanto retirava o capuz que ocultava seu rosto. Ao fazê-lo, seus cabelos loiros caíram soltos, refletindo a luz fraca da sala. — Ele disse que só poderia passar as informações diretamente ao senhor. Espero não ter cometido nenhuma bobagem.

Dorni observou Jarvan por um longo momento, os olhos analisando cada detalhe de sua expressão. Finalmente, com um suspiro profundo, ele ergueu a mão em um gesto de apaziguação.

— Não, fez bem — disse, sua voz agora mais suave. Ele abanou a mão, um gesto calculado para transmitir calma. — Prefiro ficar sabendo por mim mesmo.

Jarvan relaxou perceptivelmente, os ombros se soltando um pouco. Dorni desviou o olhar para Bleu, um breve aceno de cabeça indicando que a reunião estava prestes a começar.

— Então, o que você tem para nos dizer? — perguntou, voltando a assumir um tom mais sério e focado.

— Bem, você desejava saber o que houve na redenominação de Reven, não é? — Ele franziu um pouco o olhar, a confiança transparecendo em cada traço de seu rosto. — Ou melhor, queria saber especificamente sobre Dalian, estou correto?

Dorni arregalou os olhos, a surpresa estampada na face séria. Ele nunca havia mencionado Dalian diretamente a ninguém, mas agora alguém estava o citando assim, deduzindo sua ligação com o mago. O coração começou a bater mais rápido, uma onda de adrenalina percorreu seu corpo. Instintivamente, levou a mão ao cabo da espada na bainha, os músculos tensionando-se enquanto seus olhos, antes arregalados, estreitaram-se em suspeita e desconfiança.

— Me diga quem você é! — exigiu Dorni, sua voz carregada de urgência. — E como sabe sobre minha ligação com Dalian!?

Jarvan notou os sinais de tensão no ar e, com um movimento rápido e decidido, levou a mão ao cabo da espada. Seus olhos varriam o ambiente, prontos para qualquer ameaça. Ao seu lado, Bleu sentiu a mudança na atmosfera e desviou a pupila de soslaio para ele, um sorriso confiante brotando nos lábios.

— Acalmem-se, senhores. Não desejo lutar. Na verdade... — A voz de Bleu começou a se distorcer enquanto ele falava, e uma transformação macabra se iniciou. Sua pele pálida começou a derreter, revelando um tom vermelho sinistro por baixo. Os traços humanos desapareceram, dando lugar à verdadeira forma de um demônio. — Vim a pedido do próprio Dalian, para levá-los comigo.

— Por que não estou surpreso daquele mago arrogante se meter com demônios?

Dorni parecia mais calmo do que o esperado. Soltou o cabo da espada e se recostou na cadeira, deixando escapar um suspiro pesado. O brilho em seus olhos revelava uma frieza calculada, como se já tivesse enfrentado situações piores.

— Senhor...? — Jarvan, por outro lado, era um contraste absoluto. O medo era visível em seu olhar, refletido na mão trêmula que tentava, sem sucesso, segurar o cabo da espada com firmeza. Seu rosto estava pálido, os lábios apertados em uma linha fina de tensão.

Ao seu lado, erguia-se um verdadeiro demônio. Muitas pessoas passavam a vida ouvindo histórias sobre esses seres, como eram cruéis, ávidos por sangue e sem qualquer respeito pela vida. As histórias eram sempre macabras, projetando imagens aterrorizantes na mente das crianças, que carregavam esse medo até a vida adulta. Sabiam que essas criaturas se escondiam na sociedade, disfarçadas de humanos ou outros seres, mas raramente alguém tinha a desgraça de encontrar um face a face.

Agora, ao lado de um demônio em carne e osso, que emanava uma aura aterrorizante como o primordial Bleu, o pavor de Jarvan era visível. O demônio exalava um poder sombrio, uma presença tão opressiva que parecia sugar a coragem de qualquer um ao redor. O ar ao redor parecia mais frio, e até mesmo a luz parecia evitar sua presença. Jarvan, experimentando essa proximidade horrível pela primeira vez, sentia suas pernas fraquejarem, um suor frio escorrendo pela testa. O medo o paralisava, enquanto a presença do demônio parecia se alimentar desse terror, tornando-se ainda mais intimidante.

— Acalme-se, Jarvan. Ele não vai nos machucar, nem tem a intenção de tal ato — tentou tranquilizar Dorni, desviando a atenção para Bleu, que permanecia imóvel, sorrindo com confiança. 

Jarvan ainda encurvado, agarrado ao cabo da espada na bainha, não conseguia nem falar sem gaguejar:

— Ma-mas, senhor, como sabe…?

Dorni respirou fundo, buscando as palavras certas para acalmar seu subordinado:

— Pelas cores, aura e presença, você já deve imaginar quem ele seja ou o que ele seja, Jarvan. — Ele abaixou as pálpebras levemente, como se aquilo doesse ou ferisse seu ego. — Você realmente acha que se ele quisesse nos matar, estaria parado?

Jarvan hesitou, olhando Bleu com os olhos ainda arregalados. Dorni piscou ligeiramente, e abanou a mão no ar.

— Vai, saia daqui. Respire um ar para tentar se acalmar.

Jarvan deu um passo para trás, ainda relutante, antes de finalmente se virar e sair do cômodo. Dorni observou-o se afastar, a tensão ainda evidente em seus ombros rígidos. Ele então voltou sua atenção para Bleu, cujo sorriso não havia vacilado nem por um segundo. 

— Agora que seu subordinado nos deu espaço, podemos conversar — disse Bleu, seus olhos azuis brilhando com uma intensidade quase hipnotizante. Dorni assentiu, recostando-se na cadeira, os cotovelos firmemente apoiados na mesa de carvalho enquanto entrelaçava os dedos sob o queixo, em uma postura de atenção plena. — Pois bem, Dalian acabou parando num lugar...

Bleu começou a narrar os eventos, sua voz grave e melodiosa ecoando pela sala silenciosa. Ele descreveu como, no meio da invasão de Reven, Dalian se deparou com o imponente exército de Aldemere. A batalha parecia inevitável. No entanto, em um instante de pura magia, Dalian foi abruptamente teleportado para um local desconhecido. Frente a uma mansão abandonada, situada no meio do nada, ele descobriu que havia sido Mani quem o transportara, juntamente com seu irmão, para aquele local misterioso.

Dentro da mansão, envolta por uma atmosfera de mistério e abandono, Dalian encontrou Bleu. Juntos, firmaram um acordo de cooperação. Bleu, com um olhar enigmático, não entrou em detalhes sobre os termos deste acordo, e Dorni, percebendo a delicadeza do assunto, não insistiu. A tensão entre eles era quase tangível, uma dança silenciosa de poder e segredos.

Bleu continuou, revelando que Dalian havia solicitado que ele encontrasse o jovem e o levasse para a mansão. Seus olhos cintilavam com um brilho peculiar enquanto falava, sugerindo que havia mais naquela história do que ele estava disposto a compartilhar. E isso era tudo, segundo o demônio. Dorni, embora curioso, aceitou a narrativa sem questionar, sentindo que havia muito mais por trás das palavras cuidadosas de Bleu.

— Tudo isso é muito a cara daquele mago — afirmou Dorni, abaixando o olhar, refletindo sobre as palavras. — Mas como poderemos viajar até esse lugar, se for tão isolado e longe, como você diz? Meus homens, como você deve ter percebido, não estão nas melhores condições. A fome nos atingiu de maneira intensa… E além disso, e depois? Como vamos nos manter naquele local?

Bleu cruzou os braços atrás das costas, seus olhos brilhando com uma mistura de mistério e antecipação.

— Dalian me pediu para lhe dizer mais isso — comentou Bleu, sua voz suave e enigmática, ressoando como um sussurro sedutor nas sombras. — Recite: Portaun Isvict… Acho melhor ficar de pé.

Dorni olhou para Bleu, claramente confuso, suas sobrancelhas franzidas em descrença. O demônio, por outro lado, observava cada reação com uma satisfação quase perversa, um sorriso tênue dançando nos lábios. Lentamente, Dorni se levantou e caminhou ao redor da mesa, parando em frente a Bleu, sua respiração se tornando pesada e carregada de expectativa.

— Tsc… Portaun Isvict.

Por um breve instante, o silêncio absoluto preencheu o ambiente. Então, de repente, o pescoço de Dorni começou a arder como se estivesse em chamas, a dor intensa arrancando um grito de surpresa de seus lábios. Ele cambaleou, tentando se apoiar na mesa, os olhos arregalados de dor e confusão.

— Que merda é essa!?

Ele levou a mão ao pescoço, desesperado para aliviar a ardência, mas não era necessário, pois a dor começou a diminuir gradualmente. Onde antes sua pele estava limpa, agora havia uma tatuagem intricada, representando duas cobras devorando-se em um ciclo infinito. A mesma imagem se materializou em tamanho real, no meio dos dois. No centro das cobras, um brilho tênue começou a se intensificar, até que se abriu em um deslumbrante portal azul.

Dorni examinou aquilo com cuidado, ainda incrédulo, suas mãos trêmulas estendidas em direção à luz.

— Isso é o que estou pensando? — indagou ele, a voz um sussurro de espanto, seus olhos fixos na visão surreal à frente.

— Um portal — respondeu Bleu, igualmente surpreso, mas mantendo a compostura. — Dalian realmente estava preparado. Um humano com muitas surpresas…

Dorni tocou o pescoço, ainda sentindo o calor residual da tatuagem, seus dedos traçando o contorno das cobras entrelaçadas.

— Isso deve levar ao local que você mencionou… — Ele fitou Bleu, os olhos estreitados, a desconfiança evidente em seu rosto. — Mas fala sério, quando aquele mago fez isso em mim?

Bleu deu de ombros, um gesto casual que contrastava com a seriedade da situação, seu sorriso enigmático nunca desaparecendo. Sem mais opções, Dorni chamou seus homens, exaustos e famintos, suas figuras abatidas se moviam com relutância. Um a um, eles atravessaram o portal, emergindo na mansão abandonada e fria que Dalian adotara como base.

Antes de seguir, Bleu jogou uma pedra brilhante no chão, seu sorriso confiante era a última coisa que se viu antes de ele passar pela passagem azul. O portal se fechou com um brilho final, deixando para trás apenas um eco de poder antigo e magia, enquanto a sala voltava ao seu estado sombrio e silencioso, cheia de mistério e suspense.

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Nas terras de temperaturas amenas, às vezes úmidas do oriente, havia um quarto grande de aparência nobre, onde uma cama de casal tomava boa parte do espaço. O cômodo exalava uma aura de serenidade e luxo, com cortinas de seda ondulando levemente ao sabor de uma brisa suave que entrava pela janela entreaberta. 

Xu Ying, de pé diante de um espelho imponente, cuidava de seus longos cabelos castanhos. Com movimentos graciosos, separava as mechas e passava o pente com esmero, cada passada realçando o brilho sedoso de seus fios. Um sorriso radiante adornava seus lábios, refletindo uma felicidade interior que parecia iluminar todo o quarto.

Sentada na beira da cama, Julie, a criança que Alaric resgatara na vila, observava cada movimento com atenção. Seus olhinhos brilhavam de curiosidade, enquanto suas perninhas balançavam para frente e para trás, ritmicamente. A expressão de fascínio no rosto da menina era quase palpável.

— Ei, irmãzona, por que desse sorrisão? — A animação em sua voz tornava a pergunta ainda mais fofa, seu tom inocente enchendo o ambiente de uma alegria contagiante.

Xu Ying parou por um momento, ainda segurando o pente, e olhou para Julie pelo espelho. O sorriso em seus lábios ampliou-se, tornando-se mais caloroso.

— Hã? Ah, eu recebi boas notícias — respondeu, voltando a escovar uma mecha com delicadeza.

Julie inclinou a cabeça, seus cabelos avermelhados caindo sobre os ombros. Ela levou um dedo fino à bochecha, afundando-o levemente em um gesto pensativo.

— Ooh… Essas boas notícias têm a ver com o irmão Alaric? — perguntou, sua voz transbordando curiosidade.

A pergunta pairou no ar, enquanto Xu Ying continuava a pentear a mecha de cabelo. Suas bochechas tingiram-se de um rosa intenso, e as sobrancelhas se arquearam, traindo um misto de vergonha e constrangimento.

— De onde você tirou isso? É... até tem... e sair com ele é divertido, mas bem... é... — Ela se enrolou nas próprias palavras, a voz fraquejando. Soltou o ar dos pulmões em um suspiro pesado, os ombros caindo ligeiramente. — Ahh... Sim, tem a ver com ele, mas não é nada do que você está pensando... isso é, se você pensou em algo...

Julie a observou atentamente, a expressão confusa enquanto Xu Ying voltava a pentear o cabelo, os movimentos mecânicos traindo seu nervosismo.

— Ah! Não importa, contanto que a irmãzona fique feliz, tanto faz! — Julie abriu um sorriso meigo, balançando as perninhas com energia infantil. — Ainda mais depois de tanto tempo sem sorrir...

Xu Ying desviou o olhar para a garotinha através do espelho, contemplando sua face delicada com ternura. Um sorriso suave brincou em seus lábios enquanto ela depositava a escova de cabelo na penteadeira, virando-se lentamente para se aproximar da menina.

— Julie, minha querida? — Xu Ying chamou com voz suave, vendo a confusão nos olhos da criança enquanto ela segurava a beira da cama.

Sem proferir mais uma palavra, Xu Ying se inclinou delicadamente, ficando na altura da menina com um olhar gentil.

— Você é um encanto, sabia? — Ela abriu os braços carinhosamente e envolveu Julia num abraço caloroso, apertando-a ternamente contra si. — Quando eu voltar, trarei algo especial para você, combinado?

Os olhos de Julie se iluminaram com alegria.

— Simmm!! — exclamou animadamente.

Nesse momento, o quarto pareceu preenchido não apenas pelo afeto entre as duas, mas também pela promessa de um retorno cheio de carinho e cuidado por parte de Xu Ying.

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Xu Ying terminava de se arrumar meticulosamente em seus aposentos, ajustando cada detalhe de seu traje diante do espelho. Enquanto isso, em seu próprio quarto, Alaric também se preparava para sair, concentrado na tarefa diante do espelho. A empregada Sofía estava atrás dele, repetindo a cena do outro quarto. Ela sentou-se na beira da cama, acariciando o cachorro Anthon, que descansava tranquilamente ao seus pés.

— O que aconteceu na residência durante minha ausência? — Alaric perguntou, os olhar fixo no próprio reflexo no espelho.

Sofía teve um leve espasmo, como se a pergunta a tivesse pego de surpresa. Ela hesitou por um momento, respirando fundo algumas vezes antes de responder:

— Não aconteceu muita coisa... — Sua voz era hesitante, revelando uma cautela perceptível até para o maior dos tolos. — Mas o clima na casa parece um tanto estranho, e os irmãos de Zhi Fēng parecem mais inquietos do que o normal…

— Essa inquietação está ligada a ausência do Patriarca? — indagou o jovem, meticuloso ao ajustar a gola do hanfu, arqueando levemente uma sobrancelha.

Ele desviou a pupila para ela pelo espelho, observando-a enquanto a própria cessava as carícias que fazia no cachorro. O silêncio que se seguiu à sua pergunta ecoava no quarto, refletindo a perturbação inconfundível nos tremores leves que perpassavam Sofía.

— Como você sabe da ausência do Patriarca...? — Sua voz vacilou, e o simples ato de mencionar o termo "patriarca" pareceu exigir um esforço sobre-humano dela. 

Alaric percebeu então o impacto mental que aquele homem, desconhecido para ele até então, havia causado nela. Iria mentir se dissesse que não sentia uma certa revolta. Com um pesar perceptível em seus olhos claros, voltou-se para seu próprio reflexo, continuando a arrumar as mangas do hanfu com zelo, mantendo um semblante impassível, apesar da pequena revolta.

— Eu percebi — respondeu finalmente, sua voz firme contrastando com a tensão no ar. — Até porque, desde que cheguei, ele não solicitou minha presença em nenhum momento, o que seria esperado dado o meu papel aqui.

Com a resposta e a lambida reconfortante que recebeu de Anthon, Sofía voltou à realidade, seu olhar suave encontrando o cachorro com um sorriso caloroso. Com ternura, acariciou novamente a cabeça do animal.

— Sim, a ausência dele tem sua parcela de culpa nesse clima estranho — murmurou, deixando suas palavras pairarem no ar, enquanto sua outra mão segurava o avental sujo com receio. — Mas, na verdade, o verdadeiro motivo para esse clima estranho é o seu retorno...

O jovem parou de ajustar seu hanfu por um momento, as sobrancelhas foram franzindo levemente enquanto processava as palavras de Sofía. Uma expressão de perplexidade começou a se formar em seu rosto.

— Hmmmm... E onde ele estava?

— Ele estava acompanhando o imperador na reunião dos países mais importantes do continente — revelou, os dedos machucados de tanto trabalhar apertando o avental com força, numa tentativa falha de aliviar sua apreensão.

Alaric parecia satisfeito com as informações, ajustando meticulosamente as últimas partes de sua vestimenta. Seus olhos novamente encontraram a jovem pelo espelho, cuja pele estava pálida, com a cabeça baixa e a mão agarrada ao avental, tremendo ligeiramente. Ver uma pessoa em tal estado era de apertar o coração, até o de um jovem como Alaric. 

— Eu vou te ajudar, como prometi. — Ela pareceu despertar de seus devaneios, erguendo a cabeça na direção dele. Alaric permaneceu impassível, com o tom sereno tentando infundir calma na moça enquanto lhe dava conselhos: — Contudo, você precisa me ajudar a te ajudar. Tente não demonstrar tanto nervosismo diante das outras pessoas, especialmente diante do patriarca e seus filhos, para evitar ao máximo qualquer suspeita.

— Eu… eu vou tentar! — afirmou com firmeza, semicerrando os olhos em determinação.

Alaric terminou de ajustar sua roupa, endireitando os ombros como se estivesse se preparando para uma batalha. Então virou-se lentamente para ela. Seus olhos, profundos e atentos, encontraram os dela, que ainda encaravam-o com uma firmeza quase desafiante. Ele começou a se aproximar, os passos ressoando pesadamente no piso de madeira polida da sala.

— Vou ajudá-la a descobrir o que aconteceu com as outras empregadas, suas amigas — reiterou, sem vacilar, a voz baixa e controlada, cada palavra carregada de uma promessa solene. Ele avançava com cuidado, a íris fixa, mas suave, como se temesse que um movimento brusco pudesse espantá-la. — Mas você precisa colaborar comigo.

O olhar dela, que até então o encarava com determinação, pareceu vacilar, a firmeza dando lugar a uma sombra de dúvida. A jovem hesitava, e não era difícil entender seu medo; era completamente justificável. Suas duas amigas desapareceram sob circunstâncias sinistras, e tudo indicava que foram vítimas de assassinatos cruéis, ordenados pelo próprio patriarca do clã Fēng, onde eles se encontravam naquele exato momento, onde ela trabalhava dia e noite. Qualquer erro, qualquer deslize, poderia colocar suas vidas em risco. Alaric observou a relutância estampada no rosto da moça, um misto de temor e tremor leve nas mãos. Ele parou no meio do aposento, suspirando pesado.

— Eu não vou forçá-la a nada. Você tem total liberdade para decidir como quer conduzir sua vida — falou com voz calma, decidido a não repetir os erros do passado, onde suas decisões impostas resultaram apenas em tragédia.

Seus olhos claros e suaves fixaram-se no rosto dela enquanto permanecia imóvel, buscando as palavras certas para encorajá-la.

— No entanto, peço que reflita cuidadosamente sobre tudo isso. Você realmente deseja deixar lá aquelas que foram importantes para você? — Alaric indagou, franzindo o cenho numa expressão séria. — Ou encontrará forças para honrar suas memórias e desvendar os mistérios que as cercam? Terá o ímpeto de se levantar e enfrentar os próprios medos? Irá dar sentido às suas mortes e botar os desgraçados que fizeram tais atrocidades atrás das grades, ou irá se acovardar e deixar que fiquem impunes? Vamos, reflita e decida!

As palavras dele atingiram Sofía como pedras, fazendo-a ponderar profundamente. Sua testa se franziu enquanto lutava internamente com suas próprias emoções e escolhas.

Finalmente, com determinação, Sofía ergueu-se da cama e encarou Alaric diretamente, sem medo, sem hesitação, apenas com a coragem que havia buscado com tanto afinco.

— O que devo fazer?



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