Volume 2

Capítulo 122: Vitórias e Derrotas

Astrid estava caída no chão, a pequena faca que antes parecia tão inofensiva agora revelava sua verdadeira ameaça. A lâmina, que sempre causara estranheza por sua durabilidade, finalmente mostrava o perigo que deveria ter sido mais bem considerado. Amélia, com uma habilidade e destreza que Astrid desconhecia, executou uma série de truques rápidos, tornando a faca mortalmente eficaz. Em um movimento preciso e letal à distância, a lâmina viajou, sem impedimentos, chegando e penetrando a resistente pele da dragonoide.

A dor latejante e a sensação aguda de ter um objeto estranho encravado em seu corpo entorpeciam a mente já confusa da jovem. Sentia a lâmina como um invasor metálico, alojado em seu estômago, com o cabo ainda para fora. Sua incrível resistência natural havia impedido que a faca atravessasse seu corpo, mas a agonia era intensa e a realidade começava a se esvair em meio a uma névoa de dor. Contudo, algo a tirava dos devaneios causados pelo sofrimento, algo que chamava sua atenção de forma insistente: gritos distantes que chegavam a seus ouvidos como ecos.

— Astrid! — O brado desesperado vinha de Aldebaram, que observava a cena do alto, na área destinada à elite para assistir aos torneios. Seu rosto estava transtornado, e sua voz, carregada de desespero. — Já chega! Você já provou a todos sua força! Não precisa de mais!

Ao seu lado, Harald compartilhava da mesma angústia. Seus olhos estavam arregalados, e ele clamava com a mesma intensidade, a voz trêmula de preocupação e medo:

— Princesa! Escute seu pai, já chega!

A multidão ao redor estava em silêncio mortal, seus olhares fixos na jovem guerreira que desafiava os limites do próprio corpo. Os monarcas assistiam com expressões variadas: muitos demonstravam apatia, mas alguns, como Caz, deixavam escapar respingos de compaixão, apesar da face fria. O vento sussurrava através das arquibancadas, acariciando suavemente os cabelos de Astrid enquanto ela lutava para se manter consciente. Suas mãos tremiam levemente, e seus olhos, parcialmente enevoados, buscavam desesperadamente foco.

O silêncio era interrompido apenas pelo som abafado da respiração ofegante de Astrid, um lembrete constante de sua exaustão. Cada movimento seu parecia uma batalha interna, os músculos protestando contra o esforço contínuo. O suor escorria pela sua testa, misturando-se às lágrimas não derramadas que brilhavam em seus olhos.

Cada segundo parecia uma eternidade. A dor era uma companheira cruel, mas a voz de seu pai e de Harald ressoavam dentro de si como um apelo desesperado para que interrompesse seu sofrimento.

— Parar? Depois de chegar aqui? Depois de lutar e lutar? — Ela olhou para o céu, onde as nuvens pareciam formar rostos conhecidos. Seus olhos marejados refletiam a luz do entardecer, conferindo um brilho melancólico. — Conheço algumas pessoas que nunca iriam desistir, continuariam…

Nadine, Alaric, Gideon, Aldebaram, Fuxi... companheiros, amigos, família, pessoas e um animal que nunca, em hipótese alguma, desistiriam de uma luta. Mesmo que o fio tênue da vida estivesse prestes a se romper, mesmo que o sopro da morte estivesse próximo.

— Desista, garota. Acabou. Você e seu rei... nunca deveriam ter desrespeitado meu senhor — Amélia se aproximava, pronta a dar fim àquela batalha de uma vez por todas.

— Desistir, desistir, desistir... vocês não se cansam de falar disso? — Astrid, mesmo com as mãos trêmulas, levou uma ao cabo da faca, envolvendo os dedos com força até os nós ficarem brancos. — Ninguém que estava comigo antes aceitaria isso, por que eu deveria?

Amélia franziu as sobrancelhas, cada vez mais próxima, saltando de círculo mágico em círculo mágico no ar, que iam aparecendo conforme ela avançava. Seus movimentos eram fluidos e precisos, como uma dança mortal, os olhos brilhavam com determinação implacável.

— Escutem todos vocês, reis e rainhas! — A voz de Astrid ecoou pela arena, preenchendo cada canto com sua força. Se forçava a se pôr de pé, ofegante, apertando ainda mais o cabo da faca cravada em seu estômago. — Eu sou Astrid Sternberg, filha de Aldebaram Sternberg, princesa do norte, e vocês aprenderão a nos respeitar, seja por bem ou por mal!

Com um último grito de pura determinação, Astrid puxou a faca do estômago. O aço gélido, agora manchado de carmesim, brilhou à luz do sol alaranjado. A arena mergulhou em um silêncio sepulcral, o ar denso com choque e temor. Até os mais corajosos entre os presentes recuaram, os olhos arregalados de incredulidade. Aldebaram sentiu seus pelos se eriçarem enquanto assistia, dividido entre o medo e o orgulho. Uma certeza lhe tomava: sua filha era incrível.

Amélia, próxima o suficiente para agir, saltou do círculo em direção ao chão, onde o corpo da dragonoide jazia. No ar, sem poder recuar, ela ouviu o brado de e viu, com horror, a princesa arrancar a faca de seu estômago como uma fera indomável. Astrid, com a determinação de uma guerreira, levantou-se em segundos, firmando os pés no chão e batendo as asas com tanta força que criou uma tempestade de vento, alçando voo.

No ar, Astrid agarrou Amélia pela roupa, girando-a como uma boneca de pano, arremessando-a para cima. 

“Eu… O que…” Amélia mal teve tempo de processar o que estava acontecendo. Sentiu quando seu corpo, desamparado no ar, começou a cair, girando até ficar de barriga para baixo. 

Astrid preparou o golpe final. Quando Amélia estava próxima o suficiente, desferiu um soco para cima, estendendo o braço com toda a força que possuía. O impacto atingiu em cheio o estômago de Amélia, que se curvou inteira, cuspindo sangue, sendo arremessada novamente para o céu, desta vez sem controle algum.

— Astrid... — Aldebaram estava atônito, incapaz de pensar claramente. Mas um sentimento enchia seu peito, como um balão prestes a explodir: orgulho. — Esta é minha filha, hahaha!

Mais afastado, Bartolomeu observava em silêncio, sentado em seu trono, a indignação estampada no rosto ao ver sua guardiã sendo manipulada como uma boneca, sem chance de revidar.

— Do que adianta cuidar, ensinar, alimentar uma inútil? Se quando precisa, não faz o único trabalho que lhe foi requisitado... — murmurava consigo mesmo, aborrecido com o que via. — Amélia... pensei que fosse melhor que isso...

— Falando sozinho, rei Bartolomeu? — A imperatriz de Takeshima, Masako, aproximou-se por trás dele, um sorriso malicioso no rosto. — Devo interpretar isso como os primeiros estágios da loucura?

— Masako... O que você quer? Se não vê, estou um pouco irritado agora.

— Nossa, calma aí, é só uma luta boba — Ela se encurvou, ficando próxima ao ouvido de Bartolomeu. — Mas que valia muita coisa, não é?

A respiração dele falhou por instantes, dando a certeza que a outra precisava. 

— Me deixe em paz, Masako… — O olhar estreito, se dirigiu lentamente de soslaio até ela. — Você não vai querer me ver verdadeiramente estressado, e garanto que se continuar a tentar insinuar coisas, eu vou.

— Argh… Você realmente se tornou um velho de quarenta anos, ranzinza e chato… — Ela se endireitou. — Saudades de quando era mais novo, receptivo… Bonito…

Bartolomeu mordeu o lábio, desviando o olhar de Masako, a raiva fervilhando em seu peito. Ela sorriu triunfante, sabendo que havia conseguido atingi-lo onde doía mais.

Amélia, exausta, mais uma vez se viu caindo em direção a Astrid, observando com terror enquanto a outra preparava um novo golpe, aparentemente tão devastador quanto o anterior. Ela não suportaria outro impacto assim; o último já parecia ter sido como ser atropelada por uma manada de cavalos a plena velocidade. Apenas os misteriosos poderes dela a mantiveram consciente. Mas agora, esses poderes pareciam ter se esvaído, e a dúvida sobre sua eficácia a corroía.

Em um esforço desesperado, estendeu a mão, invocando um círculo mágico azul que surgiu inclinado logo abaixo dela. Quando caiu nele, a inclinação a fez deslizar para o lado, afastando-se lentamente da dragonoide. Foi fazendo isso até tocar o solo com segurança. Porém, suas forças estavam esgotadas; levantar-se era impossível.

“Eu não consigo mais…” murmurou, com a cabeça tombando para o lado, a bochecha tocando a areia quente. Seus olhos, quase fechados de cansaço, captaram uma figura familiar no alto, refletida em sua pupila, alguém que era importante para ela, mas que agora a olhava com desprezo, como se ela fosse um fracasso absoluto.

— Me perdoe, meu rei… Eu… — Tentou falar, mas a voz falhou. 

Seus pensamentos estavam se dispersando, e o sentimento de fracasso a esmagava. Lágrimas silenciosas de arrependimento escorreram pelo rosto, enquanto se debatia internamente com a sensação de não ter cumprido as expectativas.

Com um último esforço, Amélia virou o rosto para o céu, já tingido pelo alaranjado do entardecer. “Eu sou uma falha, eu…” 

No céu alaranjado, no limiar das nuvens, um rosto se formou, invadindo sua mente com estranhas memórias. Paredes cinzentas e grades opressivas surgiram em sua mente, acompanhadas por gritos chorosos e um toque quente. Amélia se viu nos braços de um garoto igualmente melancólico, de cabelos vermelhos como sangue seco e olhos de oliva que irradiavam vida, mesmo que sem esperanças.

“O que é isso...? Desde quando eu...?” Ela não conseguia entender de onde vinham essas memórias, e naquele momento, não tinha forças para questionar. Mas havia algo reconfortante nelas, como se as dores se dissipassem temporariamente. No entanto, essa paz foi breve; as memórias se fragmentaram quando Astrid surgiu no céu, descendo em alta velocidade para finalizar a batalha de uma vez por todas.

Quando Astrid estava a centímetros de atingi-la, Amélia apenas aceitou o destino irrevogável. Apenas fechou os olhos, esperando pelo inevitável.

— Acho que já chega, senhoritas — A dor nunca chegou, mas uma voz firme soou. Amélia abriu os olhos e viu Astrid nos braços de um jovem. — A luta já tem uma vencedora, não precisam continuar.

— Hã? Desde quando? — Astrid, ainda sendo segurada, não conseguiu entender o que havia acontecido. Num momento estava prestes a atacar Amélia com tudo, e no instante seguinte estava de pé, presa nos braços fortes dele. — Pode me soltar?

— Ah! Mil perdões. — Ele a soltou com delicadeza. Era um jovem de cabelos verde-água e olhar da mesma cor, com uma expressão gentil. Um pouco sem jeito, levou a mão à nuca. — Desculpe ter te agarrado assim, mas... Se eu não fizesse isso, você acabaria machucando ela seriamente.

Astrid desviou o olhar para baixo, agora livre, e viu Amélia lutando para manter a consciência. Só então percebeu o quanto havia exagerado.

— Eu... — Ela se sentia mal, mas sabia que lamentar não ajudaria. — Precisamos de médicos, agora!

— Calma, calma. — Ele colocou as duas mãos na frente do corpo, num gesto de apaziguamento. — Eles já estão a caminho. O anfitrião só precisa declarar sua vitória. Falando nisso... — Ele olhou para o alto, onde Caz observava, imponente e de semblante austero. — Minha rainha, peça o término!

Todos os olhares se voltaram para a rainha de Cascia, Caz, com expressões de confusão sobre a intromissão de seu guardião no embate. Ela lentamente girou o corpo, observando cada rosto presente, inclusive o de Bartolomeu, cujo descontentamento era palpável. Com um suspiro cansado, ela revirou os olhos diante da atitude dele. Conhecia bem o jeito cruel daquele rei e sabia que o sofrimento de sua guardiã só tinha começado. 

— Lindolf, não acho que a guardiã Amélia tenha qualquer capacidade de continuar esta luta — declarou Caz, sua voz carregada de uma autoridade serena mas firme, enquanto seu olhar se fixava no anfitrião do outro lado da arena, bem distante deles. — Declare de uma vez a vitória da guardiã Astrid!

Lindolf, o anfitrião, se levantou lentamente de seu assento, uma expressão pensativa cruzando seu rosto. Após um breve momento de tensão, ergueu o braço de forma decisiva.

— Sim, devo concordar — disse ele, sua voz ressoando pela arena. — Com a falta de capacidade de Amélia continuar o embate, eu, como mediador do combate, declaro Astrid a grande vitoriosa e, com isso, a ideia de Aldebaram será aceita por todos. Parabéns aos vencedores!

A multidão murmurou em concordância, todos os olhares se voltando para Astrid, que permanecia firme, respiração pesada após a intensa batalha. Aldebaram observava do parapeito, um leve sorriso de orgulho surgindo em seus lábios pela bravura de sua filha. Ao seu lado, Harald compartilhava o mesmo sorriso de admiração.

— Tsc… Ah, que seja — resmungou Bartolomeu, ainda inconformado, mas resignado diante da situação. Ele fez um gesto para chamar um guarda próximo até ele. — Vá com alguns outros homens, ajudem a guardiã Amélia.

Seu tom carregava um leve desdém, enquanto passava a mão inquieta pelo rosto.

— O que ela está fazendo? — indagou Nyxar, a rainha elfa de Nymoria, inclinando-se na cadeira para observar melhor. — Há quanto tempo eu não via um ato tão altruísta?

— Certamente há muito tempo. — concordou Sulivan, o outro rei elfo, de olhos penetrantes, que estava sentado ao lado dela. Ele cruzou os braços sobre o peito.  — Em minha longa vida, raramente testemunhei uma benevolência como esta…

Bartolomeu parou de passar a mão pelo rosto e seguiu o olhar de Nyxar, testemunhando um gesto comovente, porém inusitado em meio às intrincadas disputas políticas.

Astrid dirigiu-se a Amélia e perguntou se ela estava bem, estendendo a mão para ajudá-la a se levantar.

— Sério isso…? — perguntou Amélia, confusa. — Acabamos de quase nos matar… Entende?

— Muito sério. Lutamos porque nos foi ordenado, era uma competição… — Astrid sorriu gentilmente, inclinando levemente a cabeça e estreitando os olhos com ternura. — Não somos realmente inimigas, certo?

Amélia suspirou profundamente, levando a mão até encontrar a de Astrid. Ergueu-se com esforço, pois sem o apoio da dragonoide, permanecer de pé era quase impossível. As duas dirigiram o olhar para o jovem que chegara antes delas.

— Você é o guardião da rainha Caz, não é? — perguntou Amélia, seu estômago ainda latejando. Ele assentiu. — Por que nos salv… Quero dizer, se intrometeu?

— Cumpri as ordens da minha rainha, só isso — respondeu, colocando as mãos na cintura. — Ela não suportava mais ver vocês duas quase se matando… Mas, no entanto, devo dizer que foi uma luta magnífica. — Seu olhar ganhou um brilho diferente ao fitar Astrid. — E testemunhar uma dragonoide... melhor ainda, uma dragonoide lutando... Não é algo comum, foi demais! Sinto-me honrado.

Astrid desviou o olhar para o chão, tentando esconder o rosto, sem muito sucesso, enquanto corava. Ela não estava acostumada a receber elogios.

— Hmmm... — Amélia deixou o olhar cair sem querer na mão de Astrid, onde marcas vermelhas surgiam onde antes havia escamas. — O que é isso, Astrid? Meus poderes acabaram te queimando?

— Hum? Ah, isso... — Astrid ergueu a mão diante deles, virando-a de um lado para o outro. — Não é nada demais, é só coisa do sol... Não se preocupe, você não me causou muitos machucados.

Amélia franziu a testa, pois a resposta, mesmo dita de forma inocente, era um pouco dolorida demais. O jovem à frente soltou uma risada contida diante da situação, logo repreendido pelo olhar fulminante da moça.

— Humph... Você diz isso, mas eu perfurei sua pele, senhora durável. — Amélia arregalou os olhos, refletindo sobre suas próprias palavras. — É verdade! Sua barriga, como está? Dói? Algum órgão foi ferido? Sangrando?

— Bem... hummmm, como posso dizer... — Astrid hesitou por um momento. — Olhe por si mesma.

Amélia olhou, e, para sua surpresa, não encontrou  nenhum sinal de ferimento onde antes havia um corte profundo. Estava completamente cicatrizado, um feito incrível e ao mesmo tempo assustador.

— Realmente não causei nada em você... — murmurou ela, abaixando o rosto em lamento. — Não sei se isso me deixa feliz ou triste... Ah, que confusão!

— Falando em confusão, uma coisa me deixou intrigada durante toda a luta... — Astrid deixou o olhar vagar pela arena, perplexa. — Você é humana? Se é, qual sua classe? E qual é a daquela faca?

— Interrogatório agora? — Ela olhou para suas próprias mãos, onde estranhos símbolos funcionavam como tatuagens. — Sou humana, mas não comum. Sou uma bruxa... E a faca era tão resistente porque tinha um feitiço de fortalecimento.

Astrid e o jovem à sua frente olharam incrédulos. Bruxas deveriam estar extintas, ao menos era isso que acreditavam. Mas se fosse esse o caso, seus poderes, a forma como lutou, tudo começava a fazer sentido na mente da dragonoide. 

A chegada dos guardas de Bartolomeu foi marcada pela despedida. Astrid entregou Amélia aos cuidados dos guardas, que a apoiaram delicadamente para mantê-la de pé.

— É isso, bem… A luta foi divertida... então, é… — Amélia hesitou, sem saber ao certo o que dizer. Era estranho estar tão próxima de alguém que havia tentado acabar com sua vida. — Adeus?

— Adeus, até nos encontrarmos de novo… — Astrid forçou um sorriso amargo. — Espero que não tenha planos de nos matar na próxima vez...

Amélia foi conduzida pelos guardas, suas passadas ecoando nas areia fina da arena. Astrid, agora em sua forma humana, aparentava estar ilesa, embora a batalha recente ainda cintilasse em seus olhos. A arena começava a esvaziar-se lentamente; os monarcas retornavam para a sala de reuniões, alguns sussurrando sobre a luta ou sobre a dragonoide em específico. Muitos tinham receio do que ela era capaz ou de como ela havia parado junto a um rei, especialmente considerando o passado do reino de Aldebaram, um reino sem muitos pudores.

— Bem, meu papel aqui terminou — O jovem sorriu afavelmente, os olhos brilhando com uma calma confiante. — Já terminou faz algum tempo, na verdade. Tenho que voltar para minha soberana. Afinal, como guardião, tenho um papel a cumprir, não é?

— Acho que também devo fazer o mesmo… — Astrid estava pensativa, perdida em uma maré de reflexões confusas e conflitantes, muitas delas girando em torno do jovem à sua frente. Ela notou a movimentação dele partindo e levantou o olhar rapidamente, estendendo a mão em sua direção. — Ei, antes de você ir… Pode me dizer seu nome? E como fez aquilo antes?

Ela se referia à maneira como ele havia parado seu ataque e a movido sem que ela sequer percebesse. Ele parou instantaneamente, colocando as mãos nos bolsos da calça cargo preta, mas não virou o rosto, deixando as costas para ela.

— Pode me chamar de Lian. Quanto aos meus poderes, não acho que seja inteligente simplesmente revelá-los assim. — ele olhou por cima dos ombros, um sorriso enigmático surgindo em nós lábios. — Mas se está tão curiosa... Dê um jeito de descobrir, talvez em uma futura luta.

— Luta? Você… bem, você viu minha forma híbrida… — Ela hesitou, não querendo parecer que estava se gabando. A mão estendida recuou lentamente, enquanto um olhar perplexo surgia no rosto. — Mesmo assim, ainda deseja me enfrentar?

— Haha! Acha que tenho medo? Que nada — Ele inclinou a cabeça para trás, fitando o céu. — Que tipo de guardião eu seria se temesse algum possível inimigo?

Com essas últimas palavras, Lian  partiu sem olhar para trás. Astrid ficou parada, os olhos fixos no espaço onde ele desaparecera, as palavras dele ainda reverberando em sua mente. Refletia não apenas sobre o que ele havia dito, mas sobre quem ele era. Lian, um jovem que, mesmo reconhecendo seu poder avassalador, não hesitava em desafiá-la, com uma confiança inabalável em uma possível vitória.

Havia algo nele que a intrigava profundamente. Cada movimento dele, cada palavra proferida, carregava uma determinação feroz. Enquanto Astrid permanecia ali, as mãos apertando-se lentamente ao redor de seu vestido, ela não podia deixar de pensar na força oculta que ele possuía. Certamente, ele era alguém além do comum, talvez portador de um poder fenomenal que apenas começava a revelar suas verdadeiras dimensões.

Sem mais nada a fazer, Astrid balançou a cabeça, dispersando os pensamentos emaranhados, e juntou-se aos outros para ser levada novamente à sala de reuniões. No corredor bem iluminado, com quadros nas paredes brancas, cruzou com Aldebaram, visivelmente orgulhoso. Logo atrás dele, seguia Harald, ostentando um sorriso de orelha a orelha. Ela ficou lado a lado com o guerreiro, caminhando.

— Pai... Acha que isso fará com que te respeitem? — Ela andava hesitante, os olhos fixos no chão.

Em um gesto repentino, Aldebaram envolveu o braço ao redor dos ombros dela, puxando-a suavemente para perto de si.

— P-pai? — Ela corou intensamente, surpresa pela demonstração de afeto.

— Quem se importa com o respeito deles? Isso vem com o tempo. O que importa é que você esteja bem... — Ele suavemente beijou o topo de sua cabeça, a voz carregada de ternura. — Só isso me importa.

Astrid sentiu-se confortada pelas palavras de seu pai, um calor familiar que acalmava suas preocupações. Enquanto caminhavam juntos pelos corredores do palácio, ela percebeu que, apesar de todas as lutas e desafios, havia força na união e no amor que compartilhavam. As paredes adornadas com tapeçarias históricas pareciam testemunhar a parcial renovada conexão entre pai e filha. Cada passo ecoava como uma promessa silenciosa de reconstrução lenta, mas sólida. Apesar dos ressentimentos que ainda pairavam sobre seu coração, sentia que muitos haviam sido superados, talvez devido ao desabafo com Nadine, que lhe proporcionara uma nova perspectiva. A viagem, por fim, realmente havia criado uma ponte de proximidade entre eles.

— Pai… Eu sou sua guardiã, não pode ficar me abraçando assim… — sussurrou Astrid, enquanto observava alguns soberanos passarem ao lado, seus olhares de canto carregados de desprezo ou julgamento.

Aldebaram soltou um suspiro profundo, o olhar endurecendo momentaneamente antes de suavizar. 

— Aceitou este papel tão fácil, é? Bem, mas tanto faz, se alguém tem algo contra, que se digne a dizer na minha cara — sua voz, habitualmente firme, carregava agora um toque de leveza e libertação. Ver sua filha dar tudo de si, pareceu ter lhe dado mais confiança. — Mas acho que por enquanto realmente devo me conter…

Mas mesmo com confiança, ainda havia a ansiedade, o temor que lhe tirava a paz e a obrigação de agir como outra pessoa, usando a máscara de sempre, interpretando um papel que não tinha espaço para improvisações. Assim, embora relutante, soltou Astrid, que, como todos os guardiões, tomou seu lugar atrás do rei, posicionando-se ao lado do conselheiro. Harald, ao lado dela, sentiu seu coração bater mais forte do que nunca. Ele não sabia exatamente o que sentia por ela, mas desde a primeira vez que a viu, em todo o seu resplendor na saída do castelo em Estudenfel, parecia que estar próximo dela era uma dádiva divina. Cada movimento da princesa era uma lembrança viva daquele momento, e agora, após vê-la lutar com tanta coragem e habilidade, aquele sentimento se intensificou mil vezes mais.

Agora, ladeando ela, Harald sentia uma mistura de emoções que mal conseguia decifrar. Respeito, admiração, talvez até amor. Cada olhar furtivo que lançava em sua direção era um lembrete de que seus sentimentos por ela eram profundos e complexos. A simples proximidade dela era um privilégio que ele valorizava acima de tudo.

Finalmente chegaram às imponentes portas da sala de reunião, que se abriram com um rangido solene, revelando o grande salão. Cada monarca dirigiu-se ao seu devido lugar. A atmosfera na sala era densa, impregnada de desconfiança e apreensão, depois do espetáculo. No entanto, havia também uma corrente subjacente de respeito. Lindolf, o anfitrião, manteve uma expressão serena enquanto caminhava até seu lugar à frente de todos, seu porte altivo emanando autoridade.

— Com tudo o que foi discutido aqui e todo o ocorrido, acho que nossos assuntos urgentes estão encerrados. — A voz de Lindolf ecoou pelo salão, seu olhar fixando-se em Aldebaram, que se sobressaltou ligeiramente, surpreso. — Rei Aldebaram, como vencedor, sua proposta será discutida e, muito provavelmente, aceita. Tudo dependerá da próxima reunião. Apenas precisa preparar um documento detalhando suas ideias, para que possamos ler, entender e discutir.

Aldebaram assentiu, sentindo o peso da responsabilidade sobre seus ombros. Ele sabia que aquele documento não seria apenas uma proposta, mas uma declaração de intenções, um manifesto do futuro que ele almejava para o norte como um todo. O salão silenciou, cada monarca absorvido em seus próprios pensamentos, a tensão do momento reverberando como um eco nas paredes antigas.

Bartolomeu, já exausto, ainda carregava no semblante a indignação e pequenas pitadas de ódio. Com um movimento brusco, levantou-se da cadeira, os olhos faiscando de frustração.

— Já que não temos mais nada a discutir, irei me retirar. Com suas licenças — declarou com voz firme, quase cortante. Não esperou qualquer resposta, apenas se virou com um gesto ríspido e partiu. As grandes portas se abriram com um novo rangido solene e ele se perdeu das vistas de todos, sumindo nos corredores. Os ecos de seus passos irritados reverberavam pelo palácio, uma batida rítmica que expressava seu descontentamento, até desaparecer por completo.

Com sua saída, muitos outros monarcas seguiram o exemplo. Os elfos, que pouco haviam contribuído à discussão e mostravam desinteresse desde o início, foram os primeiros a levantar. O rei de Germandia, Falizeu, fez o mesmo, seguido de Masako, Mereck e os reis nórdicos, Edmares. Um a um, deixaram o salão, como um rio que lentamente secava, até que restaram apenas Endrick, Caz, Aldebaram, e Jian.

Aldebaram, ainda sentindo o peso da atmosfera tensa, voltou-se para Endrick. Seus olhos refletiam uma mistura de cansaço e curiosidade, traindo o esforço para manter a compostura.

— Reunir-se com eles é sempre tão tenso assim? — indagou, sua voz baixa, quase um sussurro, mas carregada de exasperação.

Endrick, mantendo um semblante tranquilo, esboçou um sorriso resignado, que pareceu suavizar a opressiva tensão do ambiente.

— Só é tenso se você prestar atenção — respondeu com um tom calmo e quase didático, como se compartilhasse um segredo bem guardado. — Se os ignorar, não sente metade dos sentimentos negativos que se pode esperar.. 

A resposta de Endrick pairou no ar, carregada com a autoridade de quem já havia enfrentado inúmeras batalhas políticas ou situações que envolvessem aqueles monarcas. Aldebaram permitiu-se um momento de reflexão, seus olhos perdidos em pensamentos profundos enquanto processava a sabedoria nas palavras do amigo. 

— Se eu fosse você, rei Aldebaram, seguiria as palavras dele — intrometeu-se Caz, seu tom moderado, mas com um leve sorriso brincando nos lábios, que mal alcançava os olhos, como se saboreasse uma piada interna. — Se tem alguém que sabe lidar com esses monarcas, é o rei Endrick...

Endrick soltou um leve suspiro, como se a lembrança de suas experiências lhe pesasse no coração.

— Obrigado, Caz... Mas não é uma experiência que eu gostaria de ter. Aprender a lidar com eles me custou uns bons fios de cabelos... — Ele passou a mão pelos cabelos, uma rara exibição de sua exasperação. — Por falar em experiência, vi que as coisas entre você e Bartolomeu esquentaram hoje... Como está agora?

Caz cruzou os braços, seu olhar se endurecendo ao lembrar do confronto recente. Suas sobrancelhas se uniram, formando uma linha tensa em sua testa.

— Bartolomeu e eu… — ele hesitou, sua voz carregada de uma amargura antiga. — Sempre foi uma dança perigosa. Bartolomeu é um rei arrogante, com uma confiança inabalável e uma astúcia implacável... Acho que isso vem do sangue Stormax, não é? E Hoje não foi diferente. Agiu com a prepotência de sempre. Mas estamos em um equilíbrio delicado por enquanto. Ele sabe que não pode se impor a mim nem a alguns outros, não sem consequências.

Aldebaram observava os dois, sentindo-se como uma criança em meio aos adultos, os olhos brilhando com a intensidade da conversa. 

— E pensar que eu o vi crescer… — A voz rouca do rei de Donfang, Jian, ecoou por trás deles, uma presença imponente que fez os corações acelerarem. — Ele ser assim é culpa da criação de seu pai… E depois que perdeu a filha, só piorou…

Aldebaram ergueu o olhar, surpreso, a curiosidade acendendo em cada traço marcado do rosto.

— Perdeu a filha? — indagou, o tom dominado pela incredulidade.

— Sim, não se sabe ao certo o que aconteceu — começou Endrick, o olhar fixo à frente, como se visse através do tempo. — Mas pelo que apuramos, Santica, a filha de Bartolomeu, engravidou de um plebeu comum. Isso por si só já é uma grande revelação. Mas piora... Bartolomeu não aceitou e quis matar a criança assim que nascesse. Com medo disso, Santica fugiu do palácio e desapareceu. Infelizmente, seu corpo foi encontrado meses depois, na porta do palácio, deixado por alguém... No entanto, não havia nenhum bebê em seu ventre.

Aldebaram ligou os pontos num instante, sentindo o coração disparar no peito. Gideon era um Stormheart, então Santica era sua mãe. Ele já devia ter ouvido falar disso, mas a memória parecia ter sido enterrada em algum canto obscuro de sua mente. A revelação o atingiu como um golpe físico, fazendo-o abaixar o olhar de repente, o peso da verdade abatendo-o.

Aldebaram lutou contra a avalanche de emoções que ameaçava dominá-lo, sentindo o ar escapar de seus pulmões. A dor de Bartolomeu, a tragédia de Santica e o destino de Gideon se entrelaçavam em sua mente, formando um nó inextricável de tristeza e compreensão. Ele sabia que essa era uma parte da história que Gideon adoraria conhecer, mas, infelizmente, o destino o levou antes que pudesse sequer ouvir uma sílaba sobre. Astrid atrás, lutava contra a vontade de desabar junto ao pai. 

— Meus companheiros reis e rainha, acho que devo me retirar também — disse Jian, levantando-se com um suspiro pesado.

— Antes, rei Jian, devo lhe perguntar — começou Endrick, seus olhos perfurando o velho rei. — Ouvi dizer que está promovendo um torneio em seu reino. Só não me recordo de nenhuma data especial lá. Há algum motivo específico para isso?

A pergunta de Endrick carregava um tom levemente suspeito, e Jian sentiu isso. Sendo um homem velho com tanta experiência, ercebeu a intenção por trás das palavras.

— Ah, nada demais. Apenas senti que a moral do meu povo estava baixa. — Ele começou a caminhar em direção à saída, a postura rígida. — O torneio é apenas para diversão, e os prêmios… bem, são apenas para incentivar…

Endrick sabia que não era só isso. Oferecer o que Jian estava oferecendo não era simplesmente para animar o povo. Incluindo a mão de sua filha e, consequentemente, o trono do reino, era algo além do normal. Mas insistir não levaria a lugar algum. Jian era uma raposa velha, suficientemente esperto e astuto para escapar de qualquer armadilha que Endrick tentasse armar. Mas seja o que fosse, o jovem rei tinha a plena certeza de que não era coisa boa.

Atrás de Jian, um homem que era seu guardião o seguia de perto. Seus olhos severos, de um azul-escuro intenso, lembravam o mar profundo durante uma tempestade. Os cabelos verde-claros, presos em um rabo de cavalo alto, balançavam levemente a cada passo, conferindo-lhe uma aura de poder e prestígio. As feições rígidas e a postura imponente indicavam que ele não era apenas um mero guardião, mas alguém de grande importância e respeito no reino.

Juntos, o rei e seu guardião atravessaram as imponentes portas do salão. O som metálico das dobradiças ecoou pelo corredor enquanto as portas, ornamentadas com intricados detalhes em ouro e prata, se fechavam lentamente atrás deles. À medida que se moviam, os raios de sol que entravam pelas janelas altas iluminavam brevemente suas figuras, antes que eles desaparecessem na penumbra, sumindo à distância.



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