Volume 2

Capítulo 121: Uma Dragonoide Verdadeira

Como uma Batalha Decisiva foi requisitada pelo anfitrião, os monarcas e seus respectivos guardiões foram guiados pelos corredores do enorme e luxuoso palácio, até a parte traseira da estrutura. Lá havia uma enorme arena de areia, rodeada por arquibancadas, provavelmente usada para torneios em dias de comemoração, pensava Aldebaram, impressionado.

Ele se encontrava numa parte elevada e fechada, com abertura apenas para a visão da arena, que circundava todo o espaço, seguindo a arquibancada. Era ali que a elite se reunia para apreciar as competições.

— Sente-se aqui, majestade Aldebaram — indicou um serviçal, apontando para uma cadeira que mais parecia um trono. — Se precisar de algo, é só me chamar ou a qualquer outro serviçal.

Endrick sentou-se em outro banco logo ao lado do guerreiro. A vista para ambos era perfeita, permitindo ver toda a arena sem impedimentos. Os outros monarcas sentaram-se em bancos próximos, criando um ambiente de tensão palpável. Aldebaram sentia um frio estranho na barriga, talvez fosse o instinto protetor de pai ativo. Algo que ele nunca pensou ter, mas que agora estava mais forte do que nunca.

Lá embaixo, as duas competidoras se encaravam a uma distância média. Astrid deixava os cabelos prateados balançarem sob a leve brisa que as atingia. Apenas de vestido branco, com mangas longas, ela não estava com a melhor roupa para um duelo. Mas a outra parecia no mesmo barco, usando um grande manto longo, com capuz, de tom roxo escuro. A vestimenta era adornada por alguns símbolos estranhos. Com o capuz, uma sombra impedia a dragonoide de decifrar como era o rosto escondido.

Tudo que podia observar era que as duas tinham alturas parecidas e corpos igualmente esguios, com poucos músculos. Ao centro da arena, no meio das duas, um homem que parecia servir como juiz mantinha o braço erguido.

— Reis e rainhas, senhoras e senhores — começou Lindolf, do alto, num espaço reservado para ele. — Depois de divergências, decidimos que a decisão de qual proposta seria aceita ficou a cargo de uma luta, onde o vencedor terá o pedido aceito. Na arena, temos duas lutadoras que juraram proteger as honras de seus soberanos: de um lado, uma jovem de beleza encantadora, mas de muita força escondida, Astrid; do outro, uma jovem que recebeu a confiança de um monarca do peso de Bartolomeu, Amélia. Tudo que quero dizer é que nada é proibido, mas as lutadoras, evitem causar danos permanentes uma à outra. Agora, sem mais nada a dizer, boa sorte e lutem!

O juiz soltou o braço, que começou a cair vagarosamente, como se o tempo desacelerasse. Astrid sentiu o coração bater cada vez mais forte, enquanto via a adversária levar a mão para dentro do manto. A dragonoide não havia trazido nenhuma arma, já que normalmente não as usava para lutar, e não havia pensado que seria eleita como guardiã de seu pai. Quando lhe foi oferecida uma espada, embora sem nada de especial, decidiu que era melhor do que nada, aceitando-a.

O vento suave acariciava a pele enquanto  observava o juiz terminar de abaixar o braço. Num instante, começou a correr, a brisa que antes era suave se transformou em um vento feroz, chicoteando-lhe o rosto enquanto avançava a uma velocidade assustadora. Cada passo era uma explosão de energia, cada movimento calculado e feroz. Em milésimos de segundo, Astrid já estava próxima o suficiente para, em meio à corrida, desferir o primeiro golpe com a espada. A outra mulher, sem qualquer sinal de defesa além do manto de pano, parecia vulnerável. 

Tudo parecia que iria terminar ali, se não fosse pela resistência inesperada sentida pela jovem. O tilintar estridente ecoou pelo ambiente, interrompendo o fluxo da batalha. Astrid se viu obrigada a parar, os olhos arregalados em surpresa e confusão. Para sua incredulidade, Amélia segurava uma pequena faca, a lâmina fina e brilhante travava firmemente a arma de Astrid. A força do ataque deveria ter sido devastadora, mas de alguma forma, Amélia havia contido o golpe com uma destreza quase sobrenatural.

Astrid deu um salto para trás, o coração batendo descompassado enquanto recuava instintivamente. Seus olhos, ainda arregalados, vasculhavam o breu onde devia estar o rosto de Amélia, por causa do capuz, buscando alguma explicação. Como ela havia parado o golpe? A dragonoide havia colocado toda a sua força sobre-humana no ataque, mas Amélia parecia nem ter sentido o impacto. Mal se moveu, apenas manteve a postura.

— Vocês desrespeitaram meu rei… — Amélia proferiu com um tom de voz carregado de ódio.— Não vou deixar passar!

Ela balançou a faca no ar de forma ameaçadora, como se reforçasse a seriedade de suas palavras. Na plateia, Bartolomeu observava a cena com um sorriso suspeito, quase malicioso, nos lábios.

— Olha só — disse Astrid, arqueando uma sobrancelha, colocando uma mão na cintura com um gesto desafiador. — Claramente, foi o seu rei que desrespeitou a todos, não só meu pa... Meu rei.

— Não me importa! Ele é o soberano supremo! Deve ser respeitado acima de tudo! — replicou Amélia.

Astrid distorceu o rosto em uma expressão de nojo e se colocou em guarda. Seu corpo curvou-se ligeiramente para a frente, uma perna avançada e a mão segurando a espada estendida, enquanto a outra mão permanecia em posição de contenção.

— Já percebi que você é do tipo obcecada… — Astrid comentou com um ar irritadiço. — Dialogar com você será impossível.

— Concordo — disse ela, mudando abruptamente de postura. Com uma agilidade impressionante, ela se agachou rapidamente, apoiando a mão livre no chão com uma determinação feroz.

"O que ela…!" Não houve tempo para ponderar. Uma onda de círculos vermelhos, repletos de símbolos enigmáticos, começou a emergir no chão, avançando velozmente na direção da dragonoide. A aproximação foi tão rápida que a única reação possível foi se jogar para o lado. Mesmo assim, não foi o suficiente para evitar a explosão que se seguiu, lançando-a violentamente para o canto da arena.

Os círculos não pararam por aí. Cada um explodiu em sequência, criando uma cacofonia de destruição e levantando uma densa nuvem de poeira. A visão de todos foi rapidamente encoberta, mergulhando a arena em um caos visual e auditivo. O som das explosões reverberava, deixando no ar um sentimento ruim.

— Astrid! — Aldebaram levantou-se abruptamente da cadeira, correndo até o parapeito da arquibancada alta. O desespero em seus olhos era evidente enquanto ele tentava, em vão, localizar a jovem em meio à nuvem espessa de poeira. — Droga! Astrid!

Harlad correu para o parapeito, também desesperado. Os outros monarcas observavam a agonia do guerreiro com uma indiferença gelada, suas expressões impenetráveis, apenas Caz e Endrick compadeciam, mesmo que mantivessem uma face fria. A situação parecia prestes a desmoronar. Aldebaram sentia-se perdido em seus lamentos, até que o som estridente de metais se chocando o trouxe de volta à realidade. Olhou para a poeira densa, assim como todos os outros. A nuvem se movia de um lado para o outro, enquanto flashes amarelados iluminavam brevemente a paisagem marrom, as duas lutavam.

A poeira finalmente começou a assentar, revelando as duas combatentes, ofegantes, em lados opostos da arena. Seus corpos suados e sujos evidenciavam a intensidade da luta que travavam, invisível até então.

"O que é essa garota? De onde vem essa força, essa agilidade?" Astrid tentava recuperar o fôlego, perplexa com a energia de Amélia. Ao analisá-la, parecia uma humana comum. Desviou o olhar para baixo, usando o pulso para limpar o suor da bochecha, e avistou a pequena faca. "E essa faca? Como pode ser tão durável? Nada disso faz sentido! Inferno!”

Era impensável que uma humana comum possuísse tamanha força. Será que ela tinha uma classe? Mas que tipo de classe usaria facas pequenas? Astrid conhecia a classe assassina, mas aquela faca, tão inexpressiva, estava longe de ser uma adaga. Ainda assim, era incrivelmente resistente para uma faca comum. O normal seria ela ter se despedaçado após dois, ou sendo muito generoso, três encontros com a lâmina da espada da dragonoide. Tudo em Amélia era suspeito, uma verdadeira incógnita. Até o rosto dela ainda era um mistério, escondido por aquele capuz que, por algum motivo, não caía.

Astrid tentava juntar as peças desse enigma enquanto seus olhos permaneciam fixos em Amélia, tentando decifrá-la. O silêncio pesado entre elas era quebrado apenas pelas respirações pesadas.

— Curiosa sobre mim? — A voz de Amélia finalmente soou menos irritadiça. Ela observou a expressão confusa de Astrid. — Você ficou me encarando como uma maníaca... É meio óbvio que está tentando me decifrar.

Astrid engoliu em seco, a surpresa transparecendo em seus olhos ao perceber a astúcia de Amélia. A outra, com o que parecia um olhar avaliador, girava a faca com delicadeza diante do rosto, o metal reluzindo à luz.

— Sabe, de uma coisa eu estava enganada... — disse Amélia, adotando uma postura mais relaxada, a mão repousando na cintura com uma confiança quase desdenhosa.

— Enganada? — Astrid estalou o pescoço, uma expressão de impaciência e confusão atravessando o rosto enquanto ela batia a ponta da espada no chão de areia.

— Sim, enganada. É que sabe, hmmm... como posso dizer, no início achei que você era fraquinha, nos dois primeiros golpes ia cair... Mas até a uma explosão próxima sobreviveu, acima de tudo… Inteira... — Amélia apontou a faca em direção a Astrid, mas de uma forma estranhamente não ameaçadora, quase como se estivesse oferecendo um cumprimento distorcido. — Devo admitir que você é bem forte, até demais para uma humana... O que é estranho, mas bem, quem liga? Nós duas escondemos alguns segredos aqui, eu acho...

Amélia deu um passo adiante, o som de suas botas contra o chão de terra reverberando no silêncio. O clima parecia propício a causar apreensão em qualquer um, tenso, como um fio prestes a se romper. Astrid, com os músculos enrijecidos, segurava a espada com mais firmeza, os olhos fixos em Amélia, buscando qualquer sinal de ameaça iminente.

— Você me subestimou... — murmurou Astrid, a voz carregada de uma mistura de alívio e desconfiança. — E agora?

Amélia inclinou a cabeça levemente, se preparando para dar prosseguimento ao combate. 

— Agora, só resta ver o que mais você esconde, Astrid. Todos temos nossos segredos, não é mesmo? Vamos ver se conseguimos revelar uma da outra. 

O clima entre elas era carregado de eletricidade, cada movimento cuidadosamente calculado, cada palavra escolhida com precisão cirúrgica. Era como se um relógio imaginário contasse os segundos até o inevitável confronto. Quando esse relógio finalmente zerou, ambas partiram para o ataque em uma sincronia quase coreografada.

A dragonoide não hesitou em avançar, rompendo a distância que as separava com uma velocidade impressionante. Sua espada estava apontada para baixo, o gume voltado para a frente, refletindo a luz de forma ameaçadora. Em poucos segundos, já estava a meros metros de Amélia, que permanecia estática, sem demonstrar qualquer sinal de reação. 

Com um movimento decidido, Astrid levou a outra mão ao cabo da espada, buscando maximizar a força do golpe que viria a seguir. Ela preparou um ataque vertical, de baixo para cima, com a ponta da espada roçando levemente o solo antes de ganhar altitude. A lâmina levantava um rastro de terra à medida que subia, prestes a desferir um golpe mortal.

Este seria o fim. Se o golpe fosse bem aplicado, a lâmina rasgaria a barriga de Amélia, subindo pelo peito até o coração, num corte fatal. No entanto, Astrid não contava com a defesa impecável de Amélia, algo que parecia impossível até para os olhos mais treinados. Em um instante, Amélia moveu sua faca pelo ar com uma precisão sobrenatural, interceptando a lâmina de Astrid antes que ela pudesse ultrapassar a linha da sua cintura.

O choque das armas produziu um som metálico que reverberou pelo campo de batalha. A terra, erguida em alta velocidade, transformou-se em uma tempestade de poeira que agitou os cabelos prateados de Astrid e, finalmente, por um milagre, derrubou o capuz de Amélia. O impacto fez as mãos de Astrid vibrarem, mas ela manteve a postura firme, encarando Amélia com uma mistura de surpresa e admiração contida.

Agora, o rosto da oponente se revelava em toda a sua beleza. Os cabelos, que caíam até os ombros, eram vermelhos como os de Alaric, e o rosto, tão belo quanto o de um anjo, parecia esculpido por deuses. Amélia não esboçava nenhuma emoção; seus olhos fixos nos de Astrid, como se estivesse esperando o próximo movimento, sem se importar em ter o rosto revelado.

A distração com a beleza de Amélia fez Astrid perder o foco no combate. Entre elas, um círculo mágico, semelhante aos anteriores, surgiu silenciosamente, mas de forma abrupta. Quando Astrid percebeu, já era tarde demais. O círculo explodiu com uma violência avassaladora, lançando ambas para lados opostos. A dragonoide voou vários metros, parecendo desacordada, antes de chocar-se contra o solo, batendo violentamente duas vezes antes de parar, imóvel.

Amélia, por outro lado, parecia quase intocada pela explosão. Voou alguns metros, mas onde ela deveria cair sem proteção, um círculo mágico azul surgiu no chão, seguido por outros em sucessão até o céu. Ela caiu no primeiro círculo, descendo suavemente de um para o outro, desacelerando até tocar o solo com uma leveza sobrenatural.

— Merda! Filha! — Aldebaram gritou, a voz tremendo de desespero e frustração. Ele se sentia impotente, novamente preso na mesma situação angustiante, apenas observando sem poder agir. — Ela…

Endrick aproximou-se do parapeito onde o guerreiro estava, seus olhos refletindo a tristeza da situação.

 — Acho que a luta acabou, rei Aldebaram — disse, com uma voz calma, mas pesarosa. — Ela lutou bravamente, mas não deve ser capaz de se levantar outra vez…

Aldebaram virou o rosto lentamente para Bartolomeu, que observava a cena com um sorriso de superioridade. Bartolomeu levantou-se da cadeira com uma calma irritante, cada movimento carregado de arrogância, e caminhou até o parapeito.

— Amélia, termine logo o serviço! — ordenou ele com uma voz cheia de prepotência, como se a vitória já estivesse garantida.

Amélia, ouviu as palavras de seu rei e começou a caminhar em direção a Astrid. Para encerrar o combate, ela precisava confirmar que o adversário estava inconsciente ou incapaz de continuar lutando.

"Meu corpo dói…” pensou Astrid, enquanto ainda mantinha uma frágil consciência. Com grande esforço, girou o corpo, deitando-se de barriga para cima sobre a areia quente. Cada músculo parecia gritar de dor. As explosões haviam sido devastadoras; se não fosse pela resistência de sua pele, ela já teria perdido membros ou até mesmo a vida na primeira explosão. A luta parecia estar chegando ao fim. Suas forças estavam quase esgotadas, e apenas sua resistência não seria suficiente para continuar.

Aldebaram respirou fundo, tentando acalmar seu coração acelerado.

 — Sabe, rei Endrick… — começou, a voz mais firme, como se estivesse recuperando a confiança. — Vocês subestimam demais minha filha…

Endrick olhou para Aldebaram com um misto de compaixão e tristeza.

— Aldebaram, sei que é sua filha, e você sente orgulho dela — disse ele, as pálpebras ligeiramente abaixadas em sinal de pesar. — Mas há um limite para o corpo humano, infelizmente…

Aldebaram apertou a parede do parapeito com força, seus dedos quase cravando na pedra. 

— Exatamente, Endrick, para o corpo humano… — A voz de Aldebaram ressoava com uma confiança inabalável, cada palavra carregada de uma emoção intensa que reverberava pelo ambiente. Seus olhos brilhavam com uma determinação feroz, como se estivessem refletindo uma chama interna. — Vai, Astrid! Já chega de lutar como humana, mostre para todos quem você é de verdade! Eu confio em você!

Harald, observando de uma posição elevada, sentia um nó se formar em seu estômago. Seus pensamentos estavam em conflito. 

"Não se esforce demais, princesa..." Ele murmurou para si mesmo mentalmente, seus olhos cheios de preocupação. Ao contrário dos outros, que ansiavam pela batalha, Harald só queria vê-la sair ilesa, ele não era um lutador. Sua mente era assombrada pela ideia de ver Astrid se machucar, e a angústia fazia seu coração bater descompassado.

Os monarcas presentes, e todos os que assistiam, ficaram perplexos, suas expressões um misto de incredulidade e curiosidade, sem entender plenamente o significado das palavras de Aldebaram. 

“Pai... Sério isso? Vai me fazer revelar meu poder assim?” Astrid pensou, carregada de incredulidade e uma pitada de frustração. Ela sabia que era idiotice, uma burrada sem tamanho, simplesmente revelar a verdadeira extensão de seu poder. Mas prudência nunca foi uma virtude de Aldebaram, seu pai. Ele podia tentar agir como um rei, frio nas ações e decisões, mas havia certas coisas que nunca mudariam.

Astrid deixou escapar um sorriso genuíno, um misto de alegria e resignação. A teimosia inabalável de Aldebaram, sua incapacidade de se conter, era justamente o que o fazia ser um guerreiro incrível, uma pessoa inacreditável.  “Acho que somos todos grandes idiotas... Se é isso que você quer...”

Enquanto isso, Amélia se aproximava, os olhos arregalados de curiosidade e uma ponta de nervosismo. 

— Nossa, aquele é seu rei, não é? — indagou ela, agora quase perto de Astrid. — Argh... Como ele grita alto! Não sei como você aguenta...

Astrid soltou uma risada suave, um som que parecia quebrar a tensão do momento. 

— Haha... Realmente, meu pai tem uma voz estridente, mas sabe… — Ela começou a se erguer, cada movimento um esforço monumental. A cada passo, escamas iridescentes começaram a aparecer em sua pele, cobrindo partes específicas de seu corpo como uma armadura natural. — Eu amo isso... Amo os gritos, o jeito desengonçado… 

Amélia observava, fascinada e um tanto assustada, enquanto Astrid se transformava diante de seus olhos. A postura tensa devido às dores não a impediu de completar a metamorfose rapidamente. Seus cabelos, antes em desalinho, ganharam uma fluidez nova, como se tivessem vida própria, enquanto seus olhos, fixos com determinação, mostravam quase toda a esclerótica ocupada por uma íris amarelada, reminiscente dos felinos noturnos. A pupila, antes redonda e comum, transmutou-se em uma fenda vertical. Um padrão escamoso emergiu próximo aos olhos e em partes de sua pele, e majestosas asas brancas de dragão se desdobraram das suas costas. Com um gesto, Astrid deixou cair a espada, que ressoou ao tocar o solo, sabendo que suas garras recém-crescidas fariam o trabalho de retalhar qualquer obstáculo à sua frente.

Assim, a jovem Astrid assumiu sua forma híbrida, não mais uma simples humana, mas a filha de um grande dragão, manifestando sua verdadeira essência diante de Amélia, a Dragonoide emergiu em seu estado quase puro.

— Aldebaram! Sua filha... Ela é... — Endrick piscava repetidamente, incapaz de acreditar no que via.

— Isso mesmo, Astrid, minha filha, é uma verdadeira dragonoide — afirmou com orgulho, seu olhar brilhando com um misto de satisfação e desafio, enquanto observava a reação dos presentes. 

A visão de Astrid, uma figura majestosa e imponente, metade humana, metade dragão, era algo que só se via em livros antigos e lendas esquecidas. Suas escamas reluziam sob a luz solar, refletindo tons esbranquiçados, às vezes prateados. Suas asas, imensas e poderosas, se abriam lentamente, como se quisessem abraçar todo o espaço ao seu redor. Muitos esfregavam os olhos, tentando discernir se aquilo era um truque de luz ou uma ilusão. Mas não era. A verdade se impunha diante deles, inescapável e avassaladora.

Bartolomeu, o rei de Aldemere, sentiu o sorriso arrogante desaparecer de seu rosto, substituído por uma expressão de raiva e indignação. Ele cerrou os punhos, o olhar fixo em Astrid, enquanto sua mente lutava para processar o que via. O gosto amargo da inveja e do ressentimento se espalhava por sua boca, como vinho de baixa safra.

— Parece que o novato te supera até em guardiões, rei Bartolomeu — a voz de Elyroi, que estava sentado próximo, soou como o sussurro de um demônio. Ele sorria com malícia, deleitando-se na provocação. — Realmente lamentável...

Elyroi inclinou-se um pouco para frente, os olhos brilhando de diversão cruel enquanto observava a expressão de Bartolomeu se contorcer ainda mais. O ambiente estava carregado de tensão, cada detalhe, cada gesto, parecia amplificado. Os outros monarcas olhavam em silêncio, alguns com admiração, outros com inveja, todos cientes de que estavam presenciando algo único. 

— Tsc, que seja! — Bartolomeu exclamou, voltando a sentar-se na cadeira, claramente incomodado. — Amélia não irá me decepcionar, não é? Garota...

No chão, Amélia, sem muita intenção de agir, percebeu de relance o semblante perturbado de Bartolomeu, um rosto marcado pela indignação. Aquela expressão mexeu profundamente com ela, trazendo um peso esmagador de responsabilidade. Sentiu-se como se estivesse falhando miseravelmente, como se seus esforços não fossem suficientes para seu rei.

“Eu não posso! Não posso decepcioná-lo!” gritava internamente, enquanto o desespero a consumia. Sem mais hesitar, mesmo sabendo que Astrid parecia invencível, Amélia decidiu agir. Círculos estranhos, de tons amarelados, começaram a surgir sob seus pés, girando como correntes de energia. Seus passos, antes hesitantes, tornaram-se rápidos e decididos, como se estivesse dotada de uma nova força.

A dragonoide, ainda adaptando-se à sua transformação, não teve tempo de reagir. Sentiu apenas um leve incômodo na região estomacal. Os olhos amarelados desviaram-se rapidamente para baixo, apenas para ver a pequena faca de Amélia tentando perfurar sua pele.

— C-como!? — Amélia não conseguia acreditar no que via. O vestido de Astrid rasgou, um furo pequeno, mas a pele permanecia intacta, impenetrável como aço espesso. — Você! O que você fez!? O que você é!?

— Acho que isso não importa agora — respondeu Astrid, com uma frieza cortante. Amélia, confusa e desesperada, deixou seu olhar perdido vagar até o rosto sério da oponente.

Foi a última coisa que viu, pois logo em seguida, seus pés perderam contato com o solo, e o céu tornou-se assustadoramente próximo. Uma dor lancinante irradiou de seu peito, ela não sabia se fora um soco ou outro tipo de golpe, mas já não importava. Naquele momento, a sensação de impotência a dominava completamente,  já não tinha muito o que fazer…

— Até parece! — exclamou, com o semblante determinado, os olhos faiscando de desafio. Ela não tinha a menor intenção de se render tão facilmente. Novamente, círculos azuis começaram a surgir, mas desta vez no céu, pairando imóveis. Amélia passou por alguns deles, reduzindo gradualmente a velocidade até parar completamente, pousando em um dos círculos flutuantes. — Não se gabe só porque tem uma transformação... Você não sabe quem eu sou! E eu vou te mostrar do que sou capaz!

A luta parecia entrar em uma nova fase, onde as habilidades dos lutadores iriam determinar a vitória ou a derrota. Na plateia, Aldebaram ainda estava no parapeito, observando a batalha com um sorriso esperançoso nos lábios.

— Rei Aldebaram, onde conseguiu alguém assim? — indagou Endrick, perplexo. — Dragonoides são seres tão raros que eu diria que muitos, ou melhor, a maioria passa a vida toda sem contemplar um... Então vou me repetir, como conseguiu?

— Sua pergunta carrega um erro claro, rei Endrick — Aldebaram respondeu, deixando o olhar vagar até o céu, azul como as águas. — Conseguir não é a palavra correta.

— Como não? — Endrick tentou entender, fitando a dragonoide que finalmente estava pronta para lutar.

— Eu não simplesmente a peguei como um objeto, rei Endrick — Aldebaram virou o rosto na direção do outro, as feições gentis como sempre. — Eu apenas ajudei uma criança que precisava de amparo, apenas isso.

Endrick o observou atentamente. Aquela resposta, tão simples e, ao mesmo tempo, tão profunda, carregava muito mais do que as palavras pareciam expressar. Ele não teve outra reação senão sorrir. No fim, Aldebaram era péssimo em política, incapaz de ser uma pessoa fria ou calculista. Mas ele provavelmente era o mais importante para ser um rei amado pelo povo, uma pessoa adorada pelos próximos, gentil, um guerreiro de coração enorme.

Astrid, sobre as areias da arena, observava sua oponente flutuar acima daquele símbolo misterioso. Sentia cada grão de areia sob os calçados, mas sabia que permanecer no chão era uma desvantagem clara. Determinada, concentrou sua força nos novos músculos que surgiram, se construindo em suas costas, sentindo a tensão e a liberação enquanto as enormes asas brancas se abriam com um som sutil, como o deslizar da seda. As asas começaram a se mover lentamente, gerando uma brisa que rapidamente se transformou em uma ventania, levantando areia ao redor enquanto ganhavam velocidade. A cada batida, o ar parecia dobrar-se à sua vontade, até que, finalmente, Astrid alçou voo com uma elegância feroz.

Suspensa no ar, fixou os olhos em Amélia. Sem hesitar, avançou com determinação, as asas batendo ritmicamente como as de um pássaro predador. Cada movimento empurrava o ar com uma força visível, criando uma trilha turbulenta atrás de si.

"Se ela me alcançar, estou perdida!" pensou Amélia, o medo apertando seu coração. Em um lampejo de desespero e estratégia, ergueu os braços e girou em um movimento rápido, desenhando um arco perfeito no ar. Círculos mágicos vermelhos surgiram onde seus braços haviam passado, brilhando com uma intensidade crescente. A luz vermelha pulsava, refletindo a urgência da situação, enquanto Astrid se aproximava a cada segundo, quase ao alcance.

"Não vou conseguir!" pensou Astrid, sentindo o receio aumentar. Os círculos atingiram seu brilho máximo, lançando rajadas de energia vermelha como flechas ardentes. A dragonoide, agora um alvo em pleno voo, se contorcia para desviar dos projéteis, cada movimento calculado, cada batida de asa uma tentativa desesperada de evitar a destruição iminente. As rajadas eram rápidas, incessantes, eram muitos círculos à volta de Amélia atirando de uma única vez. 

Um dos projéteis veio em direção à jovem, como todos os outros. Ela, ainda tentando voar em direção à adversária, girou no ar como um pêndulo, ficando de ponta-cabeça, mas sem perder o equilíbrio ou o ritmo.

"Ela está muito mais ágil…” pensou Amélia, enquanto erguia a mão, cessando os tiros por um breve momento.

— Desvie disso! — gritou, abaixando a mão de forma abrupta. Todos os círculos brilharam simultaneamente com uma intensidade assustadora, como se fossem pintados com sangue fresco. O tom vermelho se espalhou no ar, refletindo nas peles dos monarcas que assistiam, obrigando alguns a cobrir os olhos com as mãos.

“Droga, meus olhos!” pensou Astrid. Ela, mais próxima que qualquer outra pessoa, sentiu suas retinas queimarem como se expostas a brasas ardentes. Sem alternativa, fechou os olhos rapidamente, tentando aliviar o incômodo. Este pode ter sido seu maior erro.

Ao abrir os olhos novamente, viu todos os projéteis vindo de uma só vez em sua direção. Antes, os tiros eram quase intercalados, mas agora Amélia parecia tê-los sincronizado, não dando espaço para a dragonoide desviar. Cima, baixo, esquerda ou direita, não importava para onde fosse, os projéteis a atingiriam.

Restou-lhe apenas confiar em sua pele resistente, levantando os antebraços frente ao rosto e aguardando os impactos, que não tardaram. Um após o outro, inúmeros tiros mágicos acertaram sua pele pálida. Neste momento, lembrou-se da dor de ficar muito tempo exposta ao sol, mas agora era dez vezes pior. Os projéteis batiam e queimavam como se ela estivesse sendo atingida por pedaços de ferro incandescentes.

Astrid sentia cada impacto como se fossem chicotadas de fogo, sua pele ardendo, cada músculo tenso na tentativa de suportar a dor. As lágrimas brotaram involuntariamente de seus olhos, evaporando quase que instantaneamente devido ao calor. Ela sabia que precisava resistir, que sua sobrevivência dependia disso, mas o tormento parecia interminável.

Em meio à tormenta dolorosa, teve um pequeno vislumbre de Amélia, mas também uma nova preocupação. Diante da garota, uma sucessão de círculos amarelos havia surgido, um após o outro, estendendo-se por alguns metros como um imenso canhão mágico. Amélia, com um sorriso confiante e debochado, simplesmente virou a mão que segurava a faca para cima, próximo ao primeiro círculo, e, num gesto despreocupado, soltou a pequena lâmina.

Guiada por uma força misteriosa, a faca sustentou-se no ar, atravessando os círculos, ganhando força e velocidade a cada passagem. Em um instante, transformou-se em um vulto veloz. Os tiros pararam de repente, e Astrid, tentando contra-atacar nesse breve intervalo, preparou-se para desviar. No entanto, infelizmente, não contava com a incrível velocidade da faca, e sequer sabia que era uma faca, de fato.

O impacto ressoou pela arena como um baque seco, chegando aos ouvidos presentes que não sabia ao certo o que tinha ocorrido. O corpo de Astrid dobrou-se no ar, sendo lançado para trás, enquanto seus olhos arregalavam-se diante da dor lancinante que irradiava pelo estômago. Voou vários metros até cair desajeitadamente no chão. Ao tentar se recompor, olhou para o estômago e o que viu fez o coração disparar e a visão turvar. A pequena faca havia penetrado a pele que resistira até momentos antes.

— Astrid! — gritou Aldebaram, vendo sua filha caída na areia, com uma faca cravada no estômago, talvez à beira da derrota.



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