Volume 2

Capítulo 120: Propostas

Os murmúrios ecoaram pela sala quando o rei Bartolomeu revelou que havia construído uma cidade em segredo para abrigar os cidadãos da antiga Citra, que havia sido destruída por uma explosão. A revelação foi um choque; ninguém conseguia conceber tal façanha.

O rei elfo de Elandor, Elyroi, resmungou, mantendo o queixo erguido com um semblante altivo. No entanto, seus olhos faiscavam com uma mistura de incredulidade e desgosto. Os reinos mais poderosos estavam constantemente envolvidos em uma competição feroz, repleta de provocações e rivalidades, sempre buscando superar uns aos outros. Saber que um humano havia realizado tal proeza apenas servia para enfurecer ainda mais o arrogante rei elfo, que se sentia ultrapassado.

— Mantenha a compostura, Elyroi — A voz firme de Selundi, rei de Nyverel, ecoou até os ouvidos pontudos do elfo, carregada pelo peso da idade e imponência. Seus olhos perscrutavam Elyroi com uma calma intimidante. — Irritar-se por uma conquista alheia assim só servirá para evidenciar sua fraqueza e envergonhar seu povo.

Os elfos murmuravam entre si no canto, enquanto os outros soberanos ainda processavam a revelação surpreendente. Durou alguns minutos até que a sala voltasse ao seu estado de relativa calma. Por fim, apesar das explicações de Bartolomeu, não podiam ignorar o fato de que muitas pessoas haviam perdido mais do que seus bens materiais. Vidas foram perdidas. Algo que nem dez cidades poderiam compensar, aos olhos dos monarcas mais compaixivos. 

Resultando na punição ao rei Bartolomeu que deveria pagar indenizações substanciais às famílias que perderam entes queridos na explosão. Para muitos, especialmente Falizeu, essa punição foi considerada insuficiente. Ele observava Bartolomeu com um olhar de desdém, pensando que a penalidade não fazia jus ao ocorrido.

A reunião seguiu com uma relativa normalidade. Alguns outros assuntos menos sérios foram discutidos brevemente, mas o clima após a acalorada discussão de Bartolomeu com os outros monarcas permaneceu pesado. Aldebaram sentia um incômodo na pele, como se o desconforto do ambiente tenso provocasse essa reação física.

— Soberanos e Soberanas, até o momento estamos tratando de assuntos pré-estabelecidos — afirmou Lindolf, segurando uma prancheta nas mãos e variando o olhar entre todos os monarcas. Sua voz ressoava com autoridade, mas também com uma certa cautela. — Contudo, acho que é o momento ideal para perguntar se algum dos senhores ou senhoras tem um tópico a apresentar e ser discutido. Então, alguém se digna?

A indagação foi feita, e uma lacuna de silêncio se instaurou, como se o ar tivesse se tornado mais denso. Ninguém inicialmente se propôs a falar; muitos monarcas estavam simplesmente de braços cruzados e expressões apáticas, esperando. Outros sorviam seus vinhos caros, deixando o sabor suave tocar-lhes a língua, em um gesto quase mecânico. Aldebaram esgueirava o olhar discretamente, buscando com expectativa que alguém tomasse a palavra. Mas tudo que via era monotonia e indiferença, não importava para qual lado olhasse.

“O que está fazendo, Aldebaram? Não é hora de esperar que alguém faça. Você tem que agir, idiota! Pare de se acovardar!” Ele se repreendia mentalmente, sentindo uma onda de frustração e vergonha. Aldebaram sabia que este era o momento crucial para se impor, erguer a mão e falar, tratar do assunto dos giganoides azuis. Mas o simples ato de elevar a mão parecia uma tarefa impossível. Cada pequeno movimento de elevação parecia pesar uma tonelada, como se uma força invisível puxasse sua mão para baixo, impedindo-o de agir. O suor começava a se formar em sua testa, a respiração ficava mais pesada, ofegante. Cada segundo se alongava em uma eternidade de hesitação e medo.

“Pai…” Astrid, posicionada logo atrás da cadeira dele. Observava com pesar o corpo imponente de seu pai balançar a cada respiração ofegante, a pele coberta de suor. Sentia-se impotente, vendo o surto que o acometia.

Aldebaram sentia que a qualquer momento iria desmoronar, e, simplesmente, não compreendia a origem de sentimentos tão intensos. Mas, de repente, pelo canto do olho, avistou sua salvação, ou melhor, um alívio quando viu Endrick, com os braços cruzados, levantar uma mão, reivindicando o direito de fala.

— Quero aproveitar esta oportunidade para discutir um assunto de grande importância que afeta todo um povo — afirmou Endrick, com a voz firme. Os monarcas ao redor não dirigiam olhares um para o outro, mantendo o foco sempre à frente. Apenas alguns olhavam curiosos para o orador. Endrick abriu um pequeno sorriso confiante e continuou: — No entanto, não sou a pessoa mais indicada para tratar disso, pois não sou quem luta por esse povo.

— E quem seria a melhor pessoa para tratar deste assunto? — indagou o anfitrião, com uma expressão serena.

Endrick lançou um olhar lateral para Aldebaram, mantendo o sorriso confiante, e voltou a cruzar os braços.

— O melhor a tratar disso é nosso novo integrante — anunciou. — O rei de Estudenfel, Aldebaram.

Naquele momento, o mundo de Aldebaram parou. Sentiu uma estranha sensação de amortecimento enquanto todos os olhares se voltavam para ele. Seu coração disparou, e assim soube que aquele era o momento que esperava, o momento de justificar para si mesmo o porquê de fazer tudo isso. Lindolf fez um gesto solene, indicando que Aldebaram poderia tomar a palavra.

Com toda a força de sua alma para superar a apreensão, Aldebaram ergueu-se da cadeira com firmeza e postura.

— O assunto mencionado pelo rei e meu amigo Endrick, diz respeito à discriminação contra os giganoides de pele azul — Sutran, o rei de Lidenfel, estremeceu perceptivelmente. Aldebaram observou-o de soslaio, ciente de que tinha tocado numa ferida sensível. — Esta prática é comum em diversos reinos nórdicos, sendo um deles particularmente culpado por permitir e até promover tais ações contra esse povo. 

Para tentar ignorar a apreensão que o dominava ao falar diante de tantas figuras importantes, começou a discursar automaticamente, sem refletir muito sobre suas palavras. 

— Eles são submetidos a condições de vida desumanas, incluindo exploração infantil e trabalho em condições deploráveis, com salários irrisórios. Toda essa situação é um flagrante atentado contra a dignidade desse povo.

O ambiente na sala ficou tenso, os olhares dos presentes se voltaram para Sutran e Survik, aguardando suas reações.

— Não tenho nada a declarar — disse Sutram, tentando manter a compostura, embora seus dedos juntos tremessem sutilmente, talvez de temor ou raiva por ser exposto dessa forma.

— Pois eu tenho — declarou Endrick, levantando-se abruptamente, capturando a atenção de todos. — Como grande defensor de causas justas, estudei profundamente este assunto e posso confirmar com evidências as palavras do rei Aldebaram.

Endrick falava com convicção, seus olhos percorrendo os rostos na suntuosa sala do palácio, buscando apoio entre os monarcas presentes. Sutran, visivelmente desconfortável, evitava encarar qualquer olhar direto.

— Suas acusações podem custar caro — começou Survik, rei de Ciantenfel, num tom moderado que contrastava com a tensão palpável. — Tomem cuidado com o que irão falar.

Endrick ergueu uma sobrancelha, desafiador.

— Isso foi uma ameaça, rei Survik?

— Leve como um pequeno aviso, nada mais — respondeu Survik, seus olhos fixos em algum ponto distante, evitando confrontar diretamente Endrick.

Aldebaram, observando a troca intensa, sentiu o peso crescente da responsabilidade política sobre seus ombros. Cada palavra poderia desencadear repercussões imprevisíveis. Endrick, por outro lado, não se deixava intimidar.

— Ora, o benevolente rei de Ciantenfel aplica sua benevolência seletivamente? Ignorando os giganoides de pele azul quando lhe convém? — Ele não recuava, Endrick era astuto o suficiente para não temer ninguém, pois confiava no próprio poder. — Sua hipocrisia será exposta, rei Survik. Ameaças não me abalam, e não haverá alguém aqui que me cale. Se deseja tentar, que o faça. Mas não se surpreenda com as consequências e, posso garantir, que haverá.

A atmosfera na sala tornou-se pesada como chumbo, e os olhares dos outros monarcas alternavam entre curiosidade e cautela diante do embate verbal. Era como se dois titãs políticos estivessem demonstrando sua superioridade através das palavras. Os guardiões de ambos já mostravam sinais de estarem em alerta, acompanhando a crescente tensão dos líderes.

— Acalmem-se, senhores — disse o anfitrião, estendendo a mão na direção de Aldebaram. — Rei Aldebaram, se tudo isso for comprovado, o que deseja?

O Rei sentiu o peso da expectativa sobre ele, não apenas dos presentes na sala, que pouco importavam, mas de todo um povo que por décadas, talvez séculos, suportara opressão e exploração sem dignidade. A esperança deles repousava nas mãos, no coração e na alma de uma única pessoa: Aldebaram. Sentiu cada fibra da responsabilidade sobre os ombros, como se cada olhar naquela sala fosse uma centena de vozes sussurrando expectativas e medos.

O guerreiro ergueu lentamente a cabeça, assumindo a postura altiva de um verdadeiro monarca, enquanto o silêncio pairava pesado na grandiosa sala de reuniões, aguardando suas palavras. Nesse momento, até mesmo os monarcas menos interessados abandonaram suas faces monótonas para prestar atenção ao desenrolar dos acontecimentos. Os olhos castanhos de Aldebaram, normalmente expressivos, foram ganhando intensidade, adquirindo um único aspecto: a seriedade de quem carregava o destino de um reino inteiro, de um povo inteiro.

Endrick, ao lado de Aldebaram, assentiu com confiança, os olhos transmitindo um apoio silencioso antes de Aldebaram voltar a atenção ao anfitrião. A tensão era palpável, como se o ar estivesse eletricamente carregado, aguardando o momento em que se manifestaria em palavras decisivas.

O coração de Aldebaram pulsava ritmicamente no peito, um contraponto ao turbilhão de pensamentos que ecoava em sua mente. Cada gesto, cada palavra escolhida não apenas moldaria o destino de seu próprio reino, mas também influenciaria profundamente o curso de toda a região. Era hora de colocar à prova tudo o que havia aprendido com Endrick mais uma vez, assim como fizera quando falou pela primeira vez na reunião. E assim ele fez:

— Se tudo for comprovado, como será — começou com a voz firme, projetando sua autoridade pelo salão — desejo que leis abrangentes sejam estabelecidas para os giganóides de pele azul. Lidenfel, Ciantenfel, Windefel devem tratá-los com a dignidade que sempre mereceram.

As palavras ecoaram na vastidão da sala, onde os murmúrios dos presentes se aquietaram, absorvendo a gravidade do que era dito. Aldebaram, com olhos fixos no rei Sutran, surpreendeu-o com a potência de suas palavras.

— Que eles tenham os direitos garantidos por leis, que as condições de trabalho sejam igualitárias, que não sejam usadas para experiências cruéis.

Aldebaram sentia o peso das lembranças sobre seu o corpo enquanto fitava os culpados. Lembrava-se vividamente do sofrimento do povo de Lidenfel, usado como cobaias em experimentos bizarros, uma verdade que Alaric, indignado na época, fez questão de revelar. As palavras do jovem ressoavam em sua mente, ecoando como um lembrete sombrio do que ele testemunhara.

— E caso essas leis sejam desrespeitadas — prosseguiu, seu tom grave, se tornando ameaçador, lembrando aos desavisados quem Aldebaram, o guerreiro era de verdade — Exijo punições severas. Eu mesmo serei o carrasco, se necessário. Pois enquanto a cor da pele for motivo de ódio e preconceito, continuaremos estagnados, incapazes de progredir como sociedade. E enquanto existir essa injustiça, estarei aqui para lutar, para enfrentar qualquer adversário, seja homem, elfo ou demônio... até mesmo os deuses, se preciso for. Bradarei com minha vida e avançarei sem hesitar, para que cada alma marginalizada, cada giganoide de pele azul, saiba que não está só. Que Aldebaram está lá, desafiando o mundo por eles, para que possam se erguer e continuar sonhando com um dia... Um mundo melhor. Este é meu juramento, este é meu único e maior desejo.

O silêncio que se seguiu foi eloquente, cada palavra do guerreiro reverberando como um juramento solene, permeando o ar com a seriedade do compromisso assumido.

— Magnífico... — O anfitrião deixou escapar, tomado pela admiração. — Bem, se isso é tudo. Junte todos os papéis que têm, as provas e evidências, e na próxima reunião apresentem um documento contendo todas as propostas de leis. Se tudo for comprovado e as propostas aceitas, seu sonho se tornará realidade, rei Aldebaram.

Aldebaram mal podia acreditar no que seus ouvidos captavam. Era como se a realização de anos finalmente começasse a se concretizar. O mundo parecia até mais colorido naquele momento. Endrick sorriu discretamente, mas seu olhar revelava o orgulho que sentia. 

Aldebaram observou-o com gratidão, ainda atônito. Sabia que a ajuda de Endrick fora crucial para aquele momento. Sutran e Survik resmungaram baixinho, resignados diante da decisão tomada, sem ousar contestar mais.

Astrid sentia-se orgulhosa de seu pai. Harald, por sua vez, estava tão alegre que parecia prestes a sair cantarolando a qualquer minuto. O clima estava mais leve para eles, e a reunião seguiu normalmente após isso. Aldebaram, no entanto, a partir daquele momento só pensava em quando tudo aquilo acabaria. Sem ter mais nada para fazer ali, ele se manteve absorto até que um assunto chamou sua atenção.

— Reis e rainhas, acho que este é o momento para tratar de um assunto há muito adiado — Lindolf proferiu, virando-se e olhando para a prancheta com um misto de ansiedade e gravidade. — Já devem imaginar sobre o que se trata, mas para aqueles que não estão cientes, estamos falando sobre o demônio primordial, Bleu.

A reação dos monarcas foi uniforme, sem grandes espantos. Apenas Aldebaram, ainda sem saber que iriam tratar desse assunto, deixou seus olhos se arregalarem por um breve momento, logo se recompondo.

— As igrejas já não estão cuidando desse assunto? — indagou Edmares, rei de Danterion, arqueando uma sobrancelha com ceticismo. 

— Estão falhando vergonhosamente, você quis dizer — zombou Mereck, rei de Elaria, com um sorriso sarcástico curvando seus lábios. 

— Mereck, sei que para uma pessoa ignorante como você é difícil, mas tenha o mínimo de respeito com as igrejas — repreendeu Falizeu, sua voz firme e autoritária.

— Oh, rei cinzento, logo você? — Mereck afinou a voz, ironizando seu rival. Ele inclinou a cabeça, quase teatralmente, como se estivesse representando para uma audiência invisível. — O grande responsável por massacres e queimas teme aos deuses afinal… Quem diria. Mas sabe de uma coisa muito engraçada? — ele piscou para o outro, seu sorriso se tornando ainda mais provocativo. — Não me importo nem um pouco.

Faliziu estalou a língua, sua expressão se contorcendo em uma careta de desagrado ao ouvir o comentário. Ele virou o rosto, claramente incomodado, o brilho nos olhos escurecendo com ressentimento, como se as palavras de Mereck fossem um veneno lento, corroendo sua paciência.

— Esse desrespeito com as igrejas, vindo de um homem — pausou, enfatizando cada palavra com um tom de desdém. — Ou melhor, de uma família que não respeita nem o território dos outros, é mais do que esperado. — Falizeu lançou sua resposta com uma mordacidade cortante, as palavras pingando sarcasmo.

— Falizeu, Falizeu, você diz tudo isso, mas usa e, acima de tudo, exibe com orgulho um título que qualquer padre, se soubesse seu verdadeiro significado, se enojaria... — Mereck deu de ombros de forma displicente, como se estivesse descartando qualquer peso moral do argumento de Falizeu. — Você, por si só, é uma afronta às igrejas. Sua existência é pecaminosa aos olhos dos homens da fé, caso não saiba.

Lindolf, percebendo a escalada na tensão, interveio rapidamente. Ele se inclinou para frente, os olhos penetrantes fixos nos dois homens, sua voz firme mas calma.

— Senhores — disse, cortando o ar como uma lâmina. — Estamos nos desviando do assunto principal. Vamos nos ater ao que está em discussão e nada mais.

O anfitrião lançou um olhar severo para ambos, esperando que suas palavras trouxessem de volta a compostura necessária para a reunião.

— Não podemos ignorar as palavras de Mereck, mesmo que estejam claramente destinadas a provocar — afirmou Jian, rei de Donfang, sua voz raspada pela idade ecoando pelo salão. — Ainda assim, não podemos ignorar que as igrejas e templos têm tentado lidar com o primordial por anos, mas até agora não obtiveram sucesso. Não sabem nem mesmo onde se esconde.

— Talvez precisemos ser mais incisivos? — Caz, que havia permanecido em silêncio por muito tempo, finalmente se pronunciou, sua postura agora mais concisa, resoluta.

Bartolomeu, levando a taça de vinho aos lábios com ar pensativo, ponderou antes de responder:

— Não sei. As igrejas e templos não gostam da nossa intervenção. Dizem que pegamos toda a glória para nós, enquanto eles perdem fiéis.

Os monarcas pareciam indecisos sobre qual a melhor abordagem. Enfrentar as igrejas nunca era uma decisão fácil; o poder e influência que elas detinham podiam facilmente virar o povo contra um rei.

— Talvez o rei Falizeu, nosso fiel mais devoto, possa persuadir as igrejas a permitir nossa ajuda — Bartolomeu lançou a provocação com um sorriso sutil.

— Haha! Concordo plenamente — Mereck, entrando na brincadeira para provocar seu rival, ergueu a taça de vinho. — Quem sabe ele não consegue uma oração milagrosa que transforme aquelas terras áridas em férteis? O que acha disso, rei Bartolomeu?

— Hmm, não está totalmente errado, Mereck — Bartolomeu ergueu sua taça em resposta, brindando com o outro rei no ar.

Falizeu, visivelmente irritado, mal conseguia conter a raiva. Suas veias saltavam nas têmporas, os dentes cerrados com tanta força que pareciam prestes a ranger. Alguns outros monarcas presentes na sala mal conseguiam disfarçar risadas diante das provocações baratas. Enquanto isso, Aldebaram observava o tumulto em silêncio, refletindo que, se não fossem monarcas, aqueles homens poderiam facilmente ser grandes amigos, se provocando sem cerimônia.

— Não acham que estão levando este assunto levianamente demais? — indagou Sutran, com leve traço de irritação na voz. Ele ergueu uma sobrancelha, fixando seu olhar desafiador nos presentes. — Estamos falando de um demônio primordial! Um ser que facilmente aniquilaria um reino!

Bartolomeu ergueu sua taça de vinho aos lábios com um gesto deliberado, permitindo que o sabor adocicado do líquido vermelho entorpecesse o paladar ácido. Seus olhos azuis cintilaram com um brilho irônico antes de ele responder de forma sarcástica:

— Não sei... Talvez você próprio, rei Sutran, possa nos esclarecer. Afinal, quem parecia não se importar com isso, e ainda parece não se importar na realidade, escondendo fatos importantes de nossos companheiros reis e rainhas... é você, rei Sutran…

A tensão na sala era quase palpável, cada olhar carregado de desconfiança enquanto Sutran hesitava, buscando uma saída que parecia não existir. Finalmente, resignado, ele decidiu revelar o que tanto ocultara.

— Muito bem... Acho que não há momento mais apropriado para confessar o que sei... — Seu olhar varreu cada rosto presente antes de começar. — Quando Bleu foi convocado e apareceu em meu reino, mantive em segredo por minha própria segurança o fato de que uma grande parte do meu exército foi dizimada naquele dia... E houve mais pessoas presentes, pessoas que enfrentaram Bleu...

Aldebaram fitava-o intensamente, um pedido silencioso para que omitisse um detalhe crucial. Sutran pareceu entender e decidiu ser um pouco generoso uma vez na vida.

— Na verdade, houve uma pessoa... Dolbrian, o antigo Escolhido.

O guerreiro soltou um suspiro de alívio ao perceber que Sutran tinha omitido a participação de Alaric. Enquanto isso, Bartolomeu, que acabara de tomar um gole de vinho, quase o cuspiu ao ouvir o nome de um velho conhecido, por pouco não acertando os elfos ao lado que mantinham-se em silêncio.

— Dolbrian? Ele morreu? — indagou Edmares, com um olhar perplexo.

— Sim, infelizmente. Provavelmente já não possuía o mesmo poder de anos atrás e Bleu... bom, Bleu é um primordial, o nível de poder era completamente desigual em muitos aspectos.

As palavras de Sutran ecoaram na sala, cada sílaba pesando como uma sentença. O silêncio que se seguiu foi interrompido apenas pelo murmúrio preocupado dos presentes, enquanto a gravidade do que fora revelado se instalava como uma sombra sobre todos ali reunidos. Dolbrian, reconhecido como um dos mais poderosos escolhidos de todos os tempos, comparado a nomes lendários como Arthur Pendragon, falhara. A simples notícia de que nem ele havia conseguido era como uma bigorna caindo sobre todos. Talvez por isso Sutran tenha ocultado esse fato, temendo destruir a moral dos monarcas e acabar espalhando o pânico. 

— Escolhido… — Caz pareceu ponderar por um breve momento. — Sim, o Escolhido deveria enfrentar Bleu, ele deve ser a grande calamidade deste século.

Os monarcas se entreolharam, parecendo concordar tacitamente que essa era a resposta mais óbvia. O Escolhido nascera para confrontar uma grande calamidade, um primordial por si só, é uma calamidade ambulante. No entanto, com pesar visível, acompanhado por Astrid, Aldebaram tomou a palavra.

— Creio que devo informar a todos vocês... — Sua voz saiu fraca, como se cada palavra pesasse toneladas. Atrás dele, Astrid sentiu o impacto iminente do que seria dito, seu rosto refletindo a melancolia das lembranças dolorosas. — Eu fazia parte do grupo do Escolhido... E, infelizmente, ele está morto.

“O Escolhido está morto.” Foi o que todos entenderam. Essas palavras caíram como uma pedra sobre todos, estilhaçando o silêncio tenso da sala como vidro frágil. O impacto foi imediato: os monarcas se entreolharam com expressões de incredulidade, murmurando em surpresa e descrença. A ideia de que o Escolhido, aquele que representava a última esperança contra o mal, havia perecido, era quase inconcebível. O único que pareceu não expressar muito, foi Bartolomeu, como se não se surpreendesse.

— Sendo assim, devemos impedir que outros seres malignos invadam a Terra — afirmou Bartolomeu com firmeza, erguendo-se para enfrentar a onda de incertezas que se abatia sobre os outros. — Yggdrasil deve ser declarada uma zona neutra, sob a guarda da Liga das Nações, para que possamos protegê-la!

No fim, ninguém duvidava das palavras de um guerreiro como Aldebaram; não havia motivo para ele mentir sobre isso. Bartolomeu aproveitou o momento de preocupações e medos para implementar suas ideias e próprios interesses. Seus olhos buscavam apoio nos semblantes tensos dos demais líderes presentes, enquanto o peso da responsabilidade se impunha sobre cada um ali reunido. Parecia uma ideia ponderada, já que todos sabiam que a invocação de Bleu ocorreu através de Yggdrasil. Impedir que outros conseguissem fazer o mesmo parecia a opção mais segura. Os monarcas pareceram, por unanimidade, seguir essa linha de raciocínio, concordando com a proposta. No entanto, um se ergueu contra: Aldebaram.

— Não concordo com isso — Bartolomeu estreitou o olhar em direção a Aldebaram, a raiva tomando conta de seu semblante. — Isso pode ser usado como pretexto para "colonizar" o local. Acredito que assuntos do Norte devem ser responsabilidade dos líderes do Norte.

Os elfos, que até então mantinham um silêncio absoluto, observavam atentamente, absorvendo cada tópico. Abriram sorrisos soberbos diante das palavras de Aldebaram. Elyroi, em particular, aproveitou a oportunidade para cutucar Bartolomeu.

— Até um novato se opõe a você, rei Bartolomeu — ele balançou a cabeça negativamente, fechando os olhos suavemente, numa clara provocação. — É lamentável... Onde está a sua antiga imponência? Bem, ao que parece, ela se esvaiu.

A provocação de Elyroi atiçou ainda mais a tensão na sala. Bartolomeu, que já estava com os olhos franzidos, não conseguiu conter a raiva que pulsava através de suas veias. Sulivan, o outro rei elfo, lançou um olhar repreensivo ao aliado elfo, mas Elyroi simplesmente virou o rosto com um sorriso debochado. O estrago estava feito.

— Quem você pensa que é para nos dizer o que devemos fazer? Para me dizer o que devo fazer? — perguntou Bartolomeu a Aldebaram, já no auge da irritação. — Lembre-se, Rei Aldebaram, que está aqui por nossa indulgência! Mantenha-se em silêncio e não se intrometa em assuntos de importância!

— Rei Bartolomeu — interveio Endrick, a voz serena, calma, ele nem sequer se dignou a virar o rosto, atraindo a fúria do outro para si. — Isso é um claro desrespeito a outro soberano. Devo lembrá-lo que aqui todos têm voz igual? Todos têm a mesma importância? Tentar silenciar o Rei Aldebaram é o mesmo que negar sua própria soberania diante de todos nós... — Endrick estreitou o olhar, adotando um tom levemente ameaçador. — Se é esse o caso, talvez devamos garantir que reconheça a autoridade do Rei Aldebaram.

— Isso foi uma ameaça de guerra, rei Endrick!? — Bartolomeu arqueou as sobrancelhas, seu rosto pulsando com veias estufadas. — Se for, esteja preparado para as consequências. Melhor ainda, esteja preparado para ver seu reino ser reduzido a nada!

As palavras de Bartolomeu ecoaram pelo salão, injetando uma tensão palpável. Alguns monarcas observavam com nervosismo, enquanto outros mantinham uma calma imperturbável, alheios aos destinos dos reinos que não os seus. Endrick sustentou o olhar desafiador contra Bartolomeu, sem demonstrar sinais de recuo. Para ele, essas intrigas eram fúteis, indo contra tudo que havia discutido com Aldebaram algumas semanas antes. Contudo, não era homem de se curvar diante de outro rei. Se a guerra fosse o único meio de fazer Bartolomeu e outros reconhecerem as soberania dele e Aldebaram, então assim seria.

— Peço desculpas pela intromissão e pelo tom talvez excessivo das palavras anteriores — Aldebaram começou, visivelmente perturbado pelo rumo dos acontecimentos. — Mas não posso ignorar a injustiça de outras nações se apropriarem das terras de um rei ausente. Espero que compreendam.

Aldebaram não era alguém acostumado a lídar com pessoas assim, líderes que viviam uma vida de intrigas. Sua cota de imponência como rei havia se esgotado após chamar a responsabilidade para si duas vezes anteriormente. Agora, tudo que acometia seu coração era a apreensão e o medo de, sem querer ou por usar as palavras erradas, desencadear uma guerra. Isso deixou os outros perplexos; alguns o olhavam com descrença, incapazes de compreender como ele havia se rebaixado a tal ponto.

Contudo, assim as tensões altas, voltaram a baixar e Bartolomeu pareceu satisfeito, resmungando, dando um gole generoso no vinho, suavizando a expressão em seguida. Não se podia dizer o mesmo de Endrick, que apenas lançou um olhar lateral para Aldebaram, que não carregava a gentileza ou malícia agradável de sempre. Este olhar carregava o desgosto. Para Endrick, o que Aldebaram fez não foi mais que se humilhar, dizer que Bartolomeu estava certo em rebaixa-lo, mesmo que não fosse essa a intenção do guerreiro. 

Endrick vivia tendo que provar aos outros que era um rei de verdade, mesmo com a pouca idade. Não abaixar a cabeça era a primeira regra quando se estava tentando provar isso. Ao comprar a briga de Aldebaram momentos antes, ele colocou em jogo sua dignidade como rei. Quando o guerreiro simplesmente pediu perdão, tudo o que foi posto à mesa foi jogado no lixo, como se realmente não tivessem soberania. 

Aldebaram sentiu aquele olhar aborrecido de alguém que era seu amigo como uma pontada na alma, uma dor que reverberava fundo em seu ser. 

— Muito bem, rei Aldebaram, que bom que entende seu lugar aqui… diferente de outras pessoas… — Bartolomeu lançou um olhar irônico para Endrick, esboçando um sorriso convencido. Suas palavras, impregnadas de veneno e desprezo. — Por este motivo e apenas este, pedirei ao nosso estimado anfitrião que decida por qual abordagem seguir, ou seja, considerarei sua proposta… por um leve capricho meu.

O guerreiro pareceu aliviado por ter conseguido isso, respirando fundo enquanto um leve sorriso de satisfação surgia em seus lábios. Ele não entendia o por que de Endrick parecer tão indignado. Na mente de Aldebaram, graças à sua humildade, ele havia conseguido chegar a um consenso agradável com Bartolomeu. 

Mas o que o guerreiro não compreendia era que aquilo não era um simples ato de bondade ou gratidão. Nada disso. Era simplesmente uma forma de demonstrar superioridade sobre eles, uma maneira sutil de dizer: “Isso só está sendo feito deste jeito porque eu quis, eu permiti”.

Para Endrick, aquilo era o mesmo que se submeter. Algo que ele nunca havia sequer cogitado. Ele sempre lutara, sempre se impusera, forçando os outros a respeitá-lo. Ver Bartolomeu agir com tamanha arrogância, vendo Aldebaram aceitar aquilo como um triunfo, era uma afronta aos seus princípios, um golpe em sua dignidade.

— Em meio a reis como estes, não se deve parecer um gatinho assustado, mas sim um tigre que sempre afia suas garras, pronto para usá-las quando necessário  — murmurou Endrick, chegando aos ouvidos do guerreiro. — Você me decepcionou um pouco, rei Aldebaram. Espero que aprenda com o tempo a como se portar frente a monarcas como eles.

Endrick não estava exatamente irado com Aldebaram. Era mais uma sensação de decepção, ainda que leve, pois ele sabia que o guerreiro não estava acostumado a lidar com situações como aquela. No fundo, ele via isso como uma oportunidade de ensinar algo valioso a Aldebaram, para que o erro não se repetisse.

O guerreiro sentiu o peso das palavras de Endrick. Um sentimento de culpa tomou conta de seu peito, como se tivesse cometido um erro terrível, maior do que imaginava. Ele sabia que ser rei em meio a outros monarcas era um desafio constante, onde um simples deslize, uma palavra mal colocada ou um gesto inadequado podiam se transformar em erros catastróficos. No entanto, apesar de estar ciente de tudo isso, era difícil ser o que ele não era. Usar uma máscara que pesava a cada segundo que era utilizada. 

— Como pedido pelo rei Bartolomeu — começou o anfitrião, a voz firme ecoando pelas paredes da grandiosa sala. — Irei decidir, mas não acho essa decisão cabível a uma pessoa só. E como o próprio rei Aldebaram disse anteriormente, é algo do norte. Uma votação aqui seria injusta, pois reis que governam reinos nórdicos presentes são só três. Com isso, declaro que esta decisão será levada à arena… — Ele abriu os braços, como se estivesse prestes a revelar algo grandioso. — Teremos uma Batalha Decisiva.

O ambiente pareceu ficar carregado, enquanto os monarcas e seus séquitos murmuravam entre si. Batalhas Decisivas, como eram chamadas, eram embates onde duas ideias opostas seriam postas à prova, e quem vencesse a luta teria sua proposta aceita. Bartolomeu, estranhamente se demonstrava sereno demais. O que não faria sentido se fosse ele a enfrentar um guerreiro imenso como Aldebaram. Contudo, não eram os reis que lutavam nas Batalhas Decisivas, mas sim um guardião escolhido para representá-los.

Ao ouvir a decisão, Aldebaram lançou um olhar preocupado para Astrid. Ele conhecia bem os perigos de uma batalha e a crueldade de seus oponentes.

— Relaxa, pai, eu luto… — disse Astrid, tentando esboçar um sorriso que não alcançou os olhos. — Acho que era disso que eu estava precisando para extravasar…

Do outro lado da sala, Bartolomeu se levantou e sussurrou algumas palavras para sua guardiã, uma garota estranha de manto e capuz. O ambiente estava carregado de expectativa. Uma luta iria começar, e o destino de uma decisão crucial dependia do resultado. A certeza era que um lado sairia vitorioso e outro muito ferido, física e emocionalmente.



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