Volume 2

Capítulo 119: Divergências Monárquicas

Aldebaram permanecia imóvel ao lado das imensas e luxuosas portas da sala de reuniões, sua figura imponente destacando-se entre os maiores soberanos e soberanas de todo o continente. Diante dele, os olhares atentos dos outros líderes se voltavam para o anfitrião, Lindolf, cuja expressão firme indicava a seriedade do momento. Lindolf anunciou que o primeiro tema da agenda seria a admissão de Estudenfel como membro da Liga das Nações, um anúncio que enviou um arrepio gélido pelo corpo do rei guerreiro.

— Rei de Estudenfel, Aldebaram, por favor, dê alguns passos à frente — pediu o anfitrião com moderação.

Apesar de sentir as pontas dos dedos frias e um leve tremor que custava a cessar, Aldebaram não hesitou. Assim que foi solicitado, avançou em direção a Lindolf, usando toda a sua força interna que dispunha para disfarçar o nervosismo. A sala, após as palavras do anfitrião, tornou-se um sepulcro silencioso, onde apenas as respirações, tosses esporádicas e os sons das taças se movendo ecoavam. Os passos poderosos de Aldebaram integraram-se à sinfonia, quase dominando todo o espaço sonoro da sala.

Quando finalmente atravessou a linha lateral de visão dos governantes, alguns olhares se fixaram nele. Ele não verificou para ter certeza; nem precisava, era possível sentir na pele, na alma, aqueles olhos duvidosos, sérios, austeros, pousados sobre ele, como águias sobrevoando suas presas.

Aldebaram avançou rapidamente até a frente da mesa semi-circular, posicionando-se ao lado do anfitrião, que lhe estendeu a mão em cumprimento, acompanhado de um sorriso amigável. Embora não soubesse se era apenas uma formalidade, aceitou o aperto de mão.

— Como todos devem estar cientes — começou Lindolf, após o cumprimento com o guerreiro, dirigindo-se aos monarcas ao redor. — Estudenfel, outrora dominado por uma gestão extremista que resultou na deposição do rei anterior, encontrou um novo líder em Aldebaram, que se mostrou sábio ao desejar desfazer a imagem negativa que assolava seu reino. Ao reabrir fronteiras e, mais significativamente, ao buscar um assento entre nós na Liga das Nações, demonstrou coragem e determinação em posicionar seu país como uma potência reconhecida. Foi uma decisão astuta, mas agora cabe a nós decidirmos se iremos ou não aceitá-lo.

O guerreiro permaneceu em silêncio, esperando que as palavras de Lindolf ecoassem por completo na sala. Seu olhar lutava para não se desviar e abaixar-se, pois isso o faria parecer indigno de ser um rei, o que não podia acontecer neste momento. Os monarcas à sua frente pareciam seres de outro mundo, inatingíveis e enigmáticos. Era impossível interpretar qualquer reação, pois todos mantinham uma expressão impassível. A tensão era palpável, tão densa que parecia pesar no ar.

Edmares repousou sua taça de suco sobre a mesa, cruzou os braços e levantou uma mão, pedindo a palavra. Foi prontamente atendido.

— Rei Aldebaram, aprecio sua iniciativa. Ela demonstra, de uma maneira ou outra, que você realmente deseja melhorar a imagem do seu reino. No entanto, imagino que todos aqui compartilham da mesma dúvida. — Ele olhou para um lado, onde todos os soberanos assentiram, e depois para o outro, onde o mesmo gesto foi repetido, antes de voltar sua atenção para o guerreiro. — Responda com sinceridade: como podemos confiar que, uma vez admitido, você não enlouquecerá, se rebelará e nos prejudicará, retornando às raízes extremas de outrora?

A voz rouca de Edmares ressoou pelo salão, carregada de uma sabedoria e autoridade que só a idade avançada poderia conferir. Ele inclinou ligeiramente a cabeça, observando atentamente Aldebaram. A dúvida era pertinente e pesava no ar, ecoando nos pensamentos de todos ali presentes. A história recente do reino de Aldebaram, marcada por um regime fechado, ditatorial e extremista, não podia ser esquecida tão facilmente. A promessa de mudança, por mais sedutora que fosse, poderia esconder perigos latentes. A política, afinal, era um jogo constante de desconfianças e estratégias ocultas.

A luz do sol invadia a sala de reunião timidamente pelas janelas altas, lançando faixas douradas que contrastavam com a penumbra das paredes de pedra. As tapeçarias luxuosas e os ornamentos dourados refletiam a luz, criando um cenário solene e carregado de expectativas. Os presentes se entreolhavam em um silêncio tenso, alguns assentindo levemente, partilhando a preocupação expressa por Edmares. 

Próxima à porta, Astrid sentia o coração apertar ao simplesmente ver a tensão estampada no rosto de seu pai. A apreensão a fez levar uma mão ao peito, os dedos apertando o tecido fino de seu vestido branco. Harald, ao seu lado, compartilhava as mesmas emoções; com olhos fixos e cheios de ansiedade. Apesar do nervosismo, sabia que o momento exigia confiança em seu rei. Aldebaram precisaria encontrar as palavras corretas para dissipar qualquer sombra de dúvida.

Aldebaram sentiu o tempo desacelerar, como se o próprio mundo lhe concedesse um breve instante para respirar profundamente e se preparar para o que estava por vir. Entre todos os rostos austeros fixados nele, um em especial se destacava: Endrick, que o olhava com um sorriso confiante, seguro do que estava por vir. O ar morno das regiões centrais invadiu as narinas do guerreiro, preenchendo os pulmões e trazendo consigo a serenidade necessária. Era o momento de falar.

— Antes de qualquer coisa, aprecio que tenham disponibilizado seus tão ocupados tempos para me escutarem — disse Aldebaram, sua voz grave soando pelo salão. Humildade era uma virtude rara entre os reis, mas ele sabia o valor que ela tinha naquele momento. A profundidade de sua voz fez alguns soberanos expressarem surpresa. — Agora, respondendo à sua pergunta, rei Edmares: tudo o que posso dizer é, por quê? Por que, depois de passar por tanto, eu simplesmente jogaria tudo fora traindo vocês?

— Não sabemos o que se passa na sua cabeça, rei Aldebaram — respondeu Edmares, com um sorriso enigmático. — Mas uma coisa que aprendemos, após muita dor, é nunca confiar nos pensamentos distorcidos de um extremista.

— Se esse é o caso, darei um motivo simples, mas que será suficiente — Aldebaram olhou para Endrick, que assentiu, confiante nele. — Minha traição resultaria em uma guerra, onde seriam todos vocês contra mim. O resultado é óbvio: eu seria invadido, vocês me aniquilariam, tomariam minhas terras e o que mais desejam, o Mithril. — Alguns monarcas chegaram a se inclinar levemente de espanto. — Trair é o mesmo que me condenar, algo que mesmo um extremista, convenhamos, não ousaria fazer.

A sala mergulhou em um vácuo reflexivo. As palavras de Aldebaram pairaram no ar, impregnadas de uma lógica inquestionável que reverberava pelas paredes opulentas da sala. Ele olhou ao redor, buscando nos rostos dos outros reis e rainhas qualquer sinal de entendimento ou hesitação. Endrick, sempre ao seu lado, manteve o semblante inabalável, os olhos firmes como se reforçassem silenciosamente a verdade nas palavras de Aldebaram. 

Edmares, o rei de Danterion, inclinou levemente a cabeça, um sinal de que estava satisfeito com as respostas dadas. Suas sobrancelhas, antes franzidas em dúvida, agora relaxavam um pouco. 

Bartolomeu, rei de Aldemere, quebrou o silêncio, levantando a taça de vinho e tomando um gole pequeno, quase desdenhoso. 

— Palavras fortes, eu diria — comentou, com um sorriso enigmático que não alcançava os olhos. — Não sei vocês, mas eu não me importo de deixar ele fazer parte da Liga.

Falizeu, rei de Germandia, respondeu com um sorriso cínico, os olhos estreitando-se em desdém.

— Oh, mas claro que não — replicou, a voz carregada de ironia. — Sendo ganancioso como é, aceitaria mesmo que ele matasse o próprio povo, tudo pelo mithril.

As palavras de Falizeu propagaram no ar, carregadas de uma acusação velada que fez com que alguns dos presentes se remexessem desconfortavelmente em seus assentos. Aldebaram apertou os punhos por um momento, sentindo o peso da inquietação na sala, mas manteve-se firme, ciente de que cada gesto e palavra ali tinham o poder de moldar a imagem dele para os outros.

— Fala como se não desejasse o metal, Falizeu — disse Bartolomeu, a voz carregada de uma irritação crescente que mal conseguia esconder. Ele lançou um olhar frio e calculado em direção a Falizeu, os dedos tamborilando levemente na mesa, um gesto quase imperceptível de sua tentativa de manter a calma. — Mas pelo que eu saiba, as pequenas minas de Germandia não produzem o necessário e, bem, o minério extraído é tão de baixo nível… Ora, agora se realmente não quiser o mithril, deixe que eu fique com ele para mim.

Bartolomeu inclinou-se ligeiramente para frente, os olhos fixos nos de Falizeu, como se quisesse penetrar suas defesas. Ele sorriu, mas o sorriso não alcançou os olhos, ficando preso em uma expressão de desdém e assim voltou a se ajeitar, olhando para frente. Os outros monarcas na sala observavam em silêncio, atentos ao confronto verbal.

Falizeu apertou os punhos sob a mesa, mantendo uma expressão neutra, mas os músculos de sua mandíbula traíam a força que fazia para não responder de imediato. Ele respirou fundo, controlando o impulso de rebater a provocação de Bartolomeu com a mesma moeda. Seus olhos brilhavam com uma mistura de determinação e orgulho ferido enquanto se preparava para responder. Antes que pudesse falar, alguém tomou a frente.

— Pare com as provocações baratas, rei Bartolomeu — A voz séria e firme de Caz, rainha de Cascia, ecoou pelo salão. — Tenha o mínimo de dignidade frente aos outros.

Bartolomeu, com as veias na testa pulsando, retesou os ombros. 

— Se você acha que vai me desmoralizar na frente de todos assim e sair impune, está muito enganada!

— Senhores — A voz do anfitrião, dita de forma neutra mas carregada de autoridade, cortou o ar. — Estão fugindo do tema abordado. Peço que se atenham ao que digo, sem brigas externas neste salão.

A figura de Lindolf era tão respeitada que sua simples intervenção bastou para que todos voltassem a ficar em silêncio, apenas o observando. As tensões que fervilhavam momentos antes pareciam ter sido congeladas pela presença calma e imponente do anfitrião.

Nenhum dos monarcas se atrevia a falar, todos esperando pela próxima movimentação de Lindolf. Com um olhar sereno, finalmente quebrou o silêncio que pairava na sala.

— Como ninguém mais se pronuncia com indagações pertinentes ao rei Aldebaram, devo entender que não restam muitas dúvidas, correto? — Os monarcas assentiram, as expressões refletindo convicção. — Pois bem, então abrirei a votação para a admissão de Estudenfel na Liga das Nações. Por favor, manifestem-se sobre aceitar ou não.

Um a um, os votos foram sendo proferidos, cada rei ponderando sua posição antes de declarar um simples "sim" ou "não". Se ao menos um soberano rejeitasse, o sonho de Estudenfel seria imediatamente frustrado. A tensão aumentava à medida que a votação se aproximava de sua conclusão, suor descia pela têmpora de Aldebaram, enquanto Astrid apertava as mãos e Harald sentia o ar faltar, quase hiperventilando.

— Eu, rei Bartolomeu, soberano de Aldemere, não vejo objeções. A integração dele à liga certamente trará benefícios mútuos... — Um sorriso sutil contornou seus lábios enquanto ele erguia sua taça. — Estou de acordo com sua participação.

Faltava apenas um voto, o do rei de Germandia, cujas veias ainda pulsavam de raiva pela provocação anterior, e cuja voz ressoou com gelidez na sala.

— Eu, rei Falizeu, soberano de Germandia, embora discorde da admissão de um reino que anteriormente foi nosso inimigo declarado, movido apenas pela ganância por um mineral, não vejo razão para me opor à sua entrada.

As palavras há algum tempo ditas por Endrick ecoaram na mente de Aldebaram; os reis não podiam se dar ao luxo de ficar para trás na corrida pelo mithril. Negar a admissão de Estudenfel significaria permitir que um rival se fortalecesse enquanto arriscavam perder relações e oportunidades comerciais, algo que nenhum deles desejava.

— Parabéns, rei Aldebaram — disse o anfitrião, sua voz soando distante para o guerreiro, como se estivesse absorvendo a realidade. — Estudenfel agora possui uma cadeira permanente na Liga das Nações. Que esta adesão nos traga grandes frutos.

Aqueles parabéns ressoaram como encantamentos mágicos, sílabas que fizeram o coração do guerreiro vibrar, inundando-o com um êxtase supremo. Ele sentiu vontade de correr, de gritar, de pular, mas precisou se conter para não fazer papelão naquele momento crucial. A cerimônia tinha começado, e Aldebaram se sentia quase realizado.

"Esperança..." Ele olhou para Endrick, o senhor da esperança, aquele que sempre o aconselhara a se agarrar a ela, ou melhor, a aceitá-la. Depois de passar por tantas provações, noites mal dormidas e nervosismos intermináveis. Após pensar inúmeras vezes que não seria capaz, Aldebaram finalmente havia alcançado seu objetivo. O guerreiro agora estava no pódio que tanto sonhara. Naquele momento, ele sentiu as lágrimas ameaçando brotar e teve que se conter com firmeza. As portas do salão se abriram com um rangido suave, revelando alguns homens que entraram carregando uma cadeira pesada, ornada com detalhes em ouro e estofada com veludo vermelho.

— Acredito que o rei Aldebaram deva ter uma proximidade maior com o rei Endrick. Coloquem a cadeira ao lado dele — ordenou Lindolf, apontando para o espaço entre Endrick e Caz, enquanto tocava as costas do guerreiro em seguida. — Vá, assuma seu lugar, e chame sua guardiã e o seu conselheiro.

Aldebaram avançou, prontamente disposto a corrigir que Astrid não era uma simples guardiã, mas optou por não prolongar a explicação e evitar confusões. O nervosismo ainda o assombrava, e dificilmente passaria tão cedo. A cadeira foi posicionada à esquerda de Endrick, exatamente onde indicado. Com uma imponência fingida, ele se aproximou e se sentou. Era tão confortável quanto o trono em Estudenfel, onde podia sentir o peso de ser um soberano respeitado. Chamou Astrid e Harald, que se posicionaram discretamente atrás de sua cadeira real.

Mesmo que lado a lado, as cadeiras espaçavam-se moderadamente, evitando qualquer proximidade indesejada entre os presentes, devia ser alguma norma. Aldebaram, ainda atônito com os acontecimentos, trocou olhares com Endrick, buscando algum conforto na familiaridade do agora considerado amigo. Do seu lado, o rei de Felizia piscou-lhe um olho de forma maliciosa, um gesto que misturava camaradagem e intrigas políticas. Como sempre, era difícil de ler o rei Endrick, ainda mais para alguém não acostumado a pegar nuances, como Aldebaram.

Seu olhar, então, deslizou até o lado oposto, onde a rainha de Cascia, Caz, mantinha-se inabalavelmente centrada. Ela evitava olhares laterais, mantendo-se em uma postura rígida e calculada, poucos indícios de descontração em seu semblante. Caz emanava uma aura de serenidade gélida, digna do seu título de 'Imperatriz Cristal'. Ela havia sido breve nas palavras de aceitação do guerreiro, algo como: 'Não vejo motivos para negar a tentativa de um rei em ajudar o povo'.

Embora fossem palavras curtas, já demonstravam, pelo menos para Aldebaram, que Caz era alguém preocupada com o bem-estar dos súditos. Talvez, no fundo, ela fosse uma rainha amorosa que mantinha essa fachada de mulher de gelo para ser respeitada, como clareamento era. Até porque, quando respondeu a Bartolomeu, o guerreiro percebeu alguns olhares temerosos na direção dela, e, claro, os guardiões ficando em prontidão.

Falando em guardião, haviam alguns rostos conhecidos, como os guardiões do rei Sutran: o jovem de cabelos e olhos verdes-escuros, Saimon, e a princesa Lilia, com seus cabelos alaranjados e uma coroa sutil sobre a cabeça. Apesar de sua posição como princesa, Lilia era uma combatente poderosa, evidenciada pelo olhar atento que mantinha à frente, em silêncio.

Saimon, por outro lado, ocasionalmente lançava olhares laterais carregados de desdém ou raiva; era difícil precisar qual. Provavelmente ainda guardava ressentimento desde o último encontro com Aldebaram e Alaric, onde quase sofreu um traumatismo.

— Com este assunto concluído, devemos prosseguir — declarou o anfitrião, dirigindo-se a um palanque atrás de si onde repousava uma prancheta. Ele a pegou e começou a analisá-la com seriedade. — O próximo ponto da pauta é delicado... Não vamos nos enamorar: trata-se da explosão de Citra, ordenada pelo próprio Rei Bartolomeu.

Aldebaram sentiu o ambiente pesar como uma âncora repentina puxando o clima para baixo, num mar de indignação. Os olhares convergiram para o Rei de Aldemere, sereno apesar da acusação que pendia sobre ele, agora confirmada.

Caz quebrou o silêncio com uma voz carregada de revolta: 

— É repugnante o que este rei fez — disse, suas palavras afundando ainda mais a âncora. — Um monarca que derrama o sangue de seu próprio povo não merece perdão. Ao contrário, merece sofrer e apenas isso.

— Concordo com a rainha Caz — pronunciou a imperatriz de Takeshima, Masako, enquanto abanava seu leque com um gesto rápido e distorcia o rosto em desaprovação. — O que o rei Bartolomeu fez não pode ser ignorado... Se fosse com algum inimigo, seria mais aceitável...

Ela ergueu o leque à frente da boca, tentando ocultar o sorriso sádico que começava a se formar em seus lábios.

— Este não é o ponto! — interrompeu Caz com firmeza, seu tom alto refletindo a gelidez de seu semblante e dissipando instantaneamente o sorriso malicioso da imperatriz. — Matar pessoas inocentes dessa maneira, sejam do próprio povo ou de qualquer outro, é absolutamente abominável!

O rei de Ciantenfel, Survik, disse imponente na sala, sua voz soando com autoridade:

 — Devo concordar com ela — começou, os olhos fixos no anfitrião. — isso não deveria ser feito por um rei. O papel de um monarca é proteger seu povo, inverter este papel é simplesmente inadmissível.

— Um rei que derrama o sangue de seu próprio povo — Jian, com sua voz velha carregada de sabedoria, interveio com seriedade. — Não merece o título de rei. Ele é apenas um carrasco que se ilude pensando ser um governante.

Dentre todas as acusações, alfinetadas e provações, a de Jian carregava uma força avassaladora, tanto nas palavras escolhidas quanto na forma como foram proferidas. O impacto delas ecoou na sala, silenciando todos os presentes, que aguardavam ansiosamente a reação de Bartolomeu. Não demorou para que o rei se manifestasse, surpreendendo a todos com sua calma aparente.

— Terminaram com a sessão de lamentações e palavras bonitas? Francamente, agem como se não tivessem feito coisas piores... — A serenidade tingida de sarcasmo causou estranheza em todos, especialmente vindo de um rei conhecido por sua instabilidade emocional, facilmente irritável por qualquer motivo insignificante. — Sim, houve uma explosão, admito. Mas foi por um bem maior: para conter a ameaça maldita de Re’loyal, que continuava avançando. — Ele deslizou suavemente os dedos pela taça, sentindo o frio do aço contra a pele antes de levá-la aos lábios, sem beber ainda. — E para os precipitados aqui presentes, saibam que a cidade já estava praticamente evacuada no momento da explosão. Portanto, parem de lamentar e ocupem-se com suas próprias vidas.

Elyroi, o soberano de Elandor, na extrema ponta direita da mesa, não tardou em replicar com soberba.

— Não foi o que minhas fontes disseram, Rei Bartolomeu. Será que a velhice o transformou em um falastrão?

O sorriso de Bartolomeu se alargou, irônico, enquanto observava o rei elfo, que não estava tão distante dele.

— E você se tornou um idiota, rei Elyroi. Até onde me lembro, o grande rei Puro, não assumiria que possui espiões em meu reino. — Erguendo a taça como se brindasse ao ar, sua voz adquiriu um tom cortante. — Espero que não se importe quando essas “fontes” aparecerem sem cabeça nas portas de seu próprio palácio, senhor rei puro.

— Ameaças vazias, humano — Nyxar, imperatriz de Nymoria, ao lado de Elyroi, pronunciou com uma irritação palpável na voz. Ela ergueu o queixo, os olhos faiscando com desdém. — Contudo, não ouse tocar em nosso povo, como faz com o seu.

De novo, Bartolomeu ergueu a taça de vinho, os lábios curvando-se num sorriso cínico em resposta. Seus olhos, frios como o gelo, encontraram os da imperatriz sem vacilar. Ele não demonstrava qualquer sinal de intimidação. Enquanto isso, do trio élfico, apenas Selundi permaneceu em silêncio, sereno como um lago espelhado, claramente não desejando se envolver na tensão crescente.

— Proponho uma punição ao rei Bartolomeu — Falizeu, que até então se mantivera em silêncio, decidiu intervir com firmeza, sua voz ressoando no salão como um trovão. Ele ergueu a mão, apontando diretamente para Bartolomeu, cujo semblante se endureceu com a proposta. — Algo assim não pode ficar impune.

— Concordo com o rei Falizeu — afirmou Caz, cruzando os braços com expressão grave. Seus olhos percorreram a mesa semi-circular, encontrando olhares de apoio e discordância entre os presentes. — Deixá-lo impune é o mesmo que sugerir que atos dessa natureza não acarretam consequências, algo que jamais deveríamos aceitar, em hipótese alguma.

Os murmúrios na sala aumentaram enquanto outros soberanos e conselheiros trocavam olhares tensos, ponderando a proposta controversa de Falizeu e as palavras ponderadas de Caz.

— Ah, calem a boca! — Bartolomeu finalmente mostrou as presas, revelando sua verdadeira natureza ao se irritar. — Você, Falizeu, pare com esse fingimento irritante. Vai me dizer que agora se importa com as pessoas? Ah, pelos deuses! Você nunca se importou com mais ninguém além de si mesmo. É tão ganancioso quanto os outros. Só está propondo isso para tentar me derrubar, desmoralizar, tudo por ter inveja de mim, da riqueza do meu reino, da prosperidade que você nunca alcançará! — Seu rosto, antes composto, agora estava distorcido pela raiva, os olhos faiscando, mas mantendo um ar sarcástico. — Pobre Falizeu, governando um reino que nunca chegará aos pés do meu. Supere-se e tente ser melhor! Ou renasça, talvez seja a única maneira, hahaha!

A risada que seguiu não era alegre; era distorcida e carregada de raiva, ecoando pelo salão como a risada de um lunático. Falizeu apertou os punhos novamente, suas sobrancelhas se franzindo em ódio puro. Era possível sentir o calor da raiva emanando por sua pele. A tensão na sala, já elevada, alcançou um patamar totalmente novo. 

A guardiã de Falizeu, uma moça de cabelos lilás, lançou um olhar sério para o rei provocador, deixando a mão escorrer até o cabo da espada na cintura. Esse gesto desencadeou uma reação semelhante da guardiã de Bartolomeu, uma mulher encapuzada, que levou a mão a algum lugar dentro de suas vestimentas. A apreensão começou a dominar o ambiente, como a precipitação de uma tempestade iminente. 

— E você, Rainha de Cristal, realmente tem tempo e disposição para se preocupar com os países e povos alheios? — Ele ergueu uma sobrancelha, sarcástico, ainda irado. — Porque, pelo que eu saiba, seu país ainda sofre com a doença que a senhorita falha miseravelmente em controlar... — Caz já começava a perder a compostura, mas as próximas palavras atingiram fundo seu ego: — E o maridinho, já curou? Se não, é melhor parar de tentar ser a guardiã moral e ir cuidar dele! 

Falizeu tremia de raiva, enquanto seus olhos lançavam faíscas de fúria. O ar na sala parecia vibrar com a ansiedade crescente. A guardiã de Falizeu deu um passo à frente, segurando firmemente a espada, seus olhos fixos na adversária. A guardiã de Bartolomeu não ficou atrás, sua mão desaparecendo ainda mais nas dobras do manto, pronta para qualquer eventualidade. O guardião de Caz, começa a sacar uma adaga em seu quadril, também pronto para entrar na briga, por sua rainha.

— Você passou dos limites, Bartolomeu! — gritou Falizeu, sua voz ecoando pela sala como um trovão. Ele também era conhecido por seu descontrole. — Irá pagar por agir como quer! Seja aqui ou no campo de batalha!

A Rainha de Cristal, visivelmente abalada, tentou manter a compostura. Seus olhos, no entanto, denunciavam a dor profunda que as palavras de Bartolomeu causaram. Respirou fundo, lutando para manter a calma diante das provocações cruéis. O ambiente estava longe de ser saudável a essa altura dos acontecimentos. Cada respiração era um esforço consciente para manter a calma e evitar que a situação explodisse de vez.

Os demais presentes na sala observavam a cena com olhos arregalados, temendo o pior. O ambiente estava à beira de um colapso, cada movimento sendo observado com atenção meticulosa. Aldebaram olhava em volta, sem saber exatamente o que fazer, sentindo-se preso entre as paredes douradas que agora pareciam se fechar sobre ele.

— Não se envolva, não é da nossa conta. E quanto à Citra, lembre-se do que eu te disse no acampamento da rebelião — aconselhou Endrick, tranquilo, como se estivesse aproveitando um dia calmo na praia e não no meio de quase uma guerra. — Nessas situações, como eu disse, é melhor não interferir, deixe que eles resolvam entre si. No entanto, é bom se acostumar, isso é mais comum do que você imagina quando se trata desses dois. Apenas relaxe.

Aldebaram suspirou, sentindo o peso do momento. Ele decidiu seguir os conselhos de Endrick, embora temesse que uma batalha ocorresse e ele estivesse no meio do fogo cruzado. Se toda reunião fosse assim, ele precisaria de nervos de aço para suportar.

— Senhoras e senhores, acho que vocês perderam o controle — A voz do anfitrião ecoou pela sala mais uma vez, como o som de um sino, restaurando a ordem e dissipando a tensão. Era como se o tempo tivesse retrocedido, e a simples fala do anfitrião transformou o clima, tornando o ar mais leve de se respirar. — Espero não precisar intervir de forma ostensiva. Não seria agradável para nenhuma das partes.

Aldebaram observava Lindolf, questionando-se sobre o poder que ele detinha. Será que Lindolf tinha habilidades de combate? Ou talvez fosse outra coisa que inspirava tanto respeito? Essas eram perguntas que Aldebaram ainda não conseguia responder.

— Agora que os ânimos retornaram à normalidade, devo dizer que concordo em uma punição ao rei Bartolomeu — Bartolomeu resmungou, mas manteve-se em silêncio. — Afinal, isso fere o código moral, artigo 54, inciso 11, que, se não lembram, irei citar: "Um rei tem o dever moral e intrínseco de proteger o povo acima de tudo, sejam terras, estruturas, riquezas ou fontes de poder. Inclusive acima da própria vida do soberano."

Aldebaram sentiu a gravidade das palavras ecoando no salão. Não sabia que existia um código moral a ser seguido e percebeu que precisaria investigar melhor depois para evitar problemas futuros.

— Mas conforme dito e averiguado, tal medida do rei Bartolomeu foi tomada em um momento de desespero para impedir uma invasão crescente e, acima de tudo, iminente.  — Nem Lindolf mesmo acreditava nisso, parecia que até o imponente anfitrião também tinha de fazer média. — Por isso, sugiro e espero que aceitem uma punição branda. Neste caso, uma indenização generosa aos parentes das vítimas da explosão, e às pessoas que perderam negócios e casas próprias na cidade. Todos de acordo?

Os monarcas se entreolharam, murmurando baixinho entre si. Alguns não queriam se meter neste assunto, temendo prejudicar suas relações com Aldemere, grande produtor e importador, como o rei de Elaria. Já Edmares, rei de Danterion, estava de mãos atadas; apesar de achar o ato de Bartolomeu errado, seus reinos eram aliados militares e irmãos. 

Lidenfel de Sutram, como sempre, manteve sua posição neutra, muitas vezes chamado de covarde por essa postura. Falizeu, ainda enraivecido, com os olhos vermelhos de ódio, concordou, embora bufasse, desejando uma punição mais severa. Caz assentiu, mantendo sua figura centrada, sem demonstrar muito, mesmo que estivesse abalada internamente pelo que fora dito.

— Bem, está de acordo, rei Bartolomeu? — perguntou o anfitrião, quebrando o silêncio tenso.

Bartolomeu levantou-se com uma expressão calculista, chamando a atenção de alguns.

— Antes, devo dizer que, ao contrário do que meus colegas reis pensam, as pessoas que de lá foram mobilizadas não perderam suas casas — Todos estranharam, lançando olhares confusos em sua direção. — Vocês realmente não buscam saber antes de acusar, não é? Bom, eu construí uma cidade substituta a Citra. É surpreendente, eu sei, mas como falei, foi tudo planejado. — Os olhares confusos transformaram-se em incredulidade, ninguém conseguia esconder o choque. — Tudo isso porque, a cidade que explodi, Citra, foi construída como uma cidade agrícola. No entanto, erros de cálculo fizeram com que fosse erguida num braço fraco do rio que abastece Aldemere, impactando na produção alimentícia. Sabendo disso, facilitou minha decisão de explodi-la. 

Bartolomeu falava, gesticulando sem parar, como se tudo isso fosse normal. 

— A nova cidade foi construída mais ao oeste, na beira do rio principal. O lugar é perfeito, já que muitos braços saem dele naquela região, formando córregos e rios menores. E antes que me perguntem, esta cidade já estava sendo construída há muitos anos em segredo.

Assim, após deixar todos no local perplexos, com queixos caídos, Bartolomeu voltou a sentar-se, exibindo um sorriso convencido e afrontoso. Ninguém conseguia conceber o feito que ele acabara de revelar: construir uma cidade inteira, assim do nada. Muitos reinos lutavam para manter as pequenas cidades já existentes, que levaram séculos para chegar onde estavam. E Bartolomeu, por simplesmente querer, ergueu uma cidade inteira. Realmente, Aldemere estava em outro patamar econômico e logístico, juntamente com um serviço de inteligência eficiente, capaz de ocultar uma construção dessa magnitude de todo o continente. 

Os olhares se cruzavam, incrédulos, e cochichos de admiração e inveja começavam a percorrer a sala. Aldebaram, observava atentamente. Sentia um peso no ar, uma mistura de tensão e reconhecimento. O impacto da notícia foi como uma onda, passando por todos os presentes. 

Ao ouvir isso, o guerreiro entendeu uma coisa: ele estava no meio de monstros. Esses homens e mulheres, esses reis e rainhas, não eram apenas líderes de seus povos; eram visionários implacáveis, estrategistas de uma astúcia sem igual. O coração de Aldebaram acelerou, e ele apertou os punhos discretamente. A grandiosidade e a ousadia de Bartolomeu eram uma lembrança brutal de que o mundo da realeza era um campo de batalha contínuo, onde apenas os mais poderosos sobreviviam e prosperavam.



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