Volume 2

Capítulo 116: Rebeldes

Depois de todos se acertarem como precisavam, dois grupos foram criados. Os que seguiriam Nadine, até o suposto acampamento, neste continha os reis. E o segundo que ficaria no encargo de mover, esconder e vigiar as carruagens até segundas ordens. 

Chegar ao acampamento da jovem não foi difícil. Ao adentrarem a floresta, seguiram por uma trilha muito bem estabelecida, cuja presença sugeria uso frequente. Nadine explicou que costumava utilizá-la para se locomover até as estradas principais. Enquanto caminhavam, pisando na neve fofa e folhas secas, a tranquilidade da paisagem contrastava com a tensão do grupo.

Endrick, curioso, quebrou o silêncio:

— Senhorita Nadine, me perdoe a pergunta, mas como você tem um acampamento?

Era uma dúvida que pairava na mente de todos, especialmente nas de Aldebaram e Astrid, que seguiam logo atrás de Endrick. Seus olhares trocavam perguntas silenciosas enquanto avançavam pela trilha.

Nadine parou por um momento, virando-se para encarar o grupo. A expressão era séria, mas também havia um toque de nostalgia em seus olhos.

— Acho que é melhor eu já lhes dizer, para evitar qualquer imprevisto… — Os que escutaram se entreolharam, confusos. — Depois de certos eventos na minha vida, acabei me unindo a um grupo que também estava se refugiando. Este grupo me acolheu e juntos formamos um acampamento escondido nesta região. Apenas isso, não há necessidade de se preocuparem. 

Suas palavras pairaram no ar, deixando o grupo com uma mistura de alívio e apreensão. Como já estavam no meio do caminho, voltar já não era uma opção viável. Restou ao rei Endrick confiar nos julgamentos de Aldebaram, que parecia acreditar na sinceridade da jovem, mesmo que isso fosse contra tudo que ele havia aprendido em anos de realeza.

Endrick respirou fundo, sentindo o ar frio da floresta invadir-lhe os pulmões. A neve sob seus pés produzia um som abafado, enquanto as folhas secas estalavam de forma irregular. Cada passo era uma mistura de confiança hesitante e necessidade prática. Ele lançou um olhar para Aldebaram, que caminhava ao lado de Astrid, seus olhos refletindo uma determinação serena.

— Rei Aldebaram, odeio apostas em que a certeza de ganhar esteja em meio a uma névoa espessa. Por este motivo, se estou aceitando tudo isso, é por ter certa confiança em você… Mas, ainda acha que devemos continuar a segui-la?

Aldebaram assentiu, os olhos fixos na trilha à frente.

— Sei que parece uma aposta, mas saiba que eu nunca jogaria com vidas inocentes. Confio nela como se fosse outra filha minha, então, sim, acho que devemos continuar a segui-la, a menos que deseje outro modo — Aldebaram não queria impor algo, dizer que eles iriam segui-la de qualquer maneira. Não era algo bem visto, agir autoritariamente. — A decisão é sua, rei Endrick.

Pela primeira vez, o rei guerreiro agiu de forma menos ingênua. Seu tom de voz soou como o de um grande líder, e transferir a decisão para Endrick foi sua melhor jogada, pois assim colocou a pressão das decisões nas costas dele. Endrick respirou fundo e permaneceu seguindo a jovem.

Nadine continuou a liderar o grupo pela trilha sinuosa, seu conhecimento do terreno era evidente em cada movimento seguro e decidido. Uma clareira surgiu diante deles, um pequeno enclave escondido pela vegetação densa. Barracas camufladas se mesclavam com o ambiente, e uma fogueira apagada indicava que o local fora abandonado recentemente ou que os ocupantes estavam mantendo um perfil discreto. Só existia um ponto de fumaça, e este estava mais ao centro do lugar.

Endrick olhou ao redor, tentando absorver todos os detalhes. A decisão de confiar na jovem pesava em seus ombros, mas ele sabia que não havia outro caminho a seguir, e ele nunca foi de tomar decisões equivocadas. A floresta ao redor parecia observá-los, testemunha silenciosa de suas escolhas. A atmosfera carregava uma tensão palpável, e os sons da natureza, antes tranquilizadores, agora pareciam sussurrar segredos e promessas de perigo.

— Meio assustador aqui... — murmurou Harald, quase usando Aldebaram como escudo. 

Apesar de grande, aquela área parecia vazia. Nenhuma alma viva revelava sua presença. No chão, havia algumas espadas velhas largadas, pedaços de madeira e trapos que um dia foram roupas. O ambiente desolado e silencioso transmitia uma sensação de abandono.

Os olhos de Endrick se voltaram para Aldebaram, que mantinha uma expressão resoluta. Com um aceno de cabeça, Endrick indicou que estavam prontos para prosseguir. O grupo avançou com cautela, seguindo Nadine em direção ao coração do acampamento.

À medida que adentravam entre as barracas, começaram a compreender a vastidão do enclave. Já dava para considerar uma pequena vila. Aos poucos, os primeiros humanos surgiam, recostados próximos às suas tendas ou sentados em troncos que faziam de bancos improvisados. Inicialmente, havia receio ao avistarem o grande destacamento, com dois homens de coroas reluzentes sob a cabeça. Contudo, a presença e o sorriso de Nadine apaziguavam os ânimos, e as pessoas voltavam ao que faziam antes.

Os ecos de vozes aumentavam de volume conforme se aproximavam do único ponto de fumaça. Risadas estrondosas tomavam a atmosfera, criando um contraste com a percepção de perigo iminente. Será que sabiam da presença de vampiros na região? Essa era uma pergunta que Endrick teria que fazer. 

Algumas crianças passavam correndo por eles, a inocência infantil as fazia não perceber que quase esbarraram em um dos homens mais poderosos do continente. Logo atrás vinham as mães, que falhavam em acompanhar o ritmo dos pequenos. Elas, sim, se assustavam ao notar quem eram os recém-chegados; talvez não reconhecessem Endrick, mas a coroa em sua cabeça denunciava sua posição.

Por sorte, Nadine interveio novamente, trazendo as moças de volta à realidade e fazendo a palidez dos rostos pasmos retornar ao tom normal. Elas seguiram suas vidas, embora ainda lançassem olhares curiosos e cautelosos para os visitantes, algumas coradas, cativadas pela beleza de Endrick.

No fim, a presença de Nadine, claramente uma figura respeitada ali, era o que permitia que a tensão não se transformasse em pânico. O caminho até o coração do acampamento finalmente havia sido completado.

Uma grande área circular se revelou, cercada pelas tendas. No centro, a alguns metros dos recém-chegados, havia uma enorme fogueira, onde carnes em espetos eram postas para assar, soltando um aroma delicioso que pairava no ar. Ao redor, muitos bancos improvisados acomodavam homens e mulheres que, pelos sorrisos e conversas animadas, não pareciam se incomodar com o desconforto dos assentos.

Alguns olharam para Nadine e os convidados com curiosidade, mas não fizeram menção de se levantar.

“Ainda bem…” pensou Harald, sentindo-se acuado em meio ao local desconhecido. A tensão era palpável, apesar das aparências. Caso todas aquelas pessoas se levantassem de uma só vez, poderia gerar um mal-entendido perigoso.

Um homem em meio aos demais se levantou do próprio banco e veio em direção a Nadine e companhia. Vestindo trapos em um estado melhor que os demais, parecia ser alguém de importância. O olhar azulado, carregado de certeza, reforçava essa ideia.

— Nadine, vejo que retornou em segurança… — disse ele, já próximo, e então inclinou-se um pouco para enxergar por trás da jovem. — E trouxe companhia…

Os murmúrios cessaram enquanto todos aguardavam as próximas palavras de Nadine, o crepitar da fogueira preenchendo o silêncio tenso.

— É sobre eles que quero conversar, Philip — respondeu a jovem com um tom sério, os olhos fixos nos dele.

Philip contemplou a expressão determinada da jovem, percebendo que não tinha muitas alternativas a não ser ouvir o que ela tinha a dizer. A seriedade em seu rosto sugeria que o assunto era importante.

— Ahh… Isso me cheira a problemas… — suspirou Philip, coçando a barba rala enquanto ponderava a situação. — Se é assim, vamos até minha tenda. — Ele olhou para os recém-chegados, fazendo um gesto amplo com o braço. — Aqueles que têm interesse na conversa, estão convidados a nos acompanhar. Aos demais, serão acolhidos pelos moradores. Sintam-se em casa.

Com um aceno de cabeça, Philip começou a caminhar em direção à sua tenda, suas botas levantando pequenas nuvens de poeira a cada passo. A jovem olhou tanto para Aldebaram quanto para Endrick, que não disseram nada, apenas assentiram e a seguiram em silêncio. Alguns dos recém-chegados trocaram olhares curiosos; alguns acompanharam seu rei, enquanto outros foram recebidos calorosamente pelos moradores do acampamento, que os guiavam para áreas de descanso e ofereciam refrescos. Astrid e Harald ficaram para trás a pedido do próprio Aldebaram, ajudando os recém-chegados a se instalarem.

Dentro da tenda de Philip, o ambiente era aconchegante e repleto de objetos que refletiam sua vida nômade e suas experiências passadas. Mapas detalhados, ferramentas antigas e lembranças de viagens anteriores estavam dispostas de maneira organizada. Philip se sentou em uma cadeira de madeira robusta e fez sinal para que a jovem ocupasse o assento em frente a ele. Ele repetiu o gesto para Endrick e Aldebaram, que se acomodaram nas cadeiras flanqueando a jovem de ambos os lados. Os demais se espalharam ao redor, formando um círculo atento; dentro da tenda estavam apenas as pessoas de maior importância.

Em pé, ao lado de Philip, estava um homem de aparência meia-idade, com um olhar sério e penetrante, analisando todos no lugar com atenção. 

— Então, o que exatamente está acontecendo? — perguntou Philip, inclinando-se para frente, seus olhos cheios de curiosidade e preocupação.

— Acontecendo não, já aconteceu… — Nadine franziu as sobrancelhas, a expressão séria. — Um ataque vampírico ocorreu a poucos quilômetros do acampamento…

— Outro ataque vampírico!? — O homem ao lado de Philip bateu com força na mesa, o estalo seco ecoou pela tenda. — Mas que merda está acontecendo? E você, o que estava fazendo fora do acampamento durante isso?

O descontrole do homem atraiu a atenção de todos os presentes; era impossível ignorá-lo. O ambiente ficou carregado de tensão. Ninguém ousou dizer nada. Philip, com um gesto calmo, tocou o antebraço do homem, tentando, de forma implícita, acalmá-lo.

— Ora, foram vocês que me instruíram a rondar o acampamento — respondeu Nadine, com a voz controlada, mas com a irritação evidente em seu tom.

— Não distorça o que lhe foi dito! — O homem se esquivou do toque de Philip com um gesto brusco, apontando um dedo trêmulo na direção de Nadine. — A instrução era simples: circule o acampamento por causa de alguns rumores de ruídos estranhos, nada além disso!

Nadine inclinou-se para a frente, enfrentando o olhar furioso do homem sem pestanejar.

— Foi justamente por ouvir esses ruídos que me afastei, seguindo os sons — disse com certos tons de deboche, mas logo em seguida traços de seriedade surgiram. — Agora é melhor parar de falar asneira e abaixar esse tom. Não vim aqui para receber sermões de um tolo que só sabe apontar o dedo, mas para ajudar, para trabalhar; finge que não existe, ficando sentado na sombra.

Seus olhos brilhavam intensamente, capturando e refletindo a luz das lanternas ao redor. A tensão entre eles era quase palpável, cada palavra cortante como um golpe, transformando a pequena tenda em um campo de batalha verbal.

— O que você disse, sua desgraçada? Eu vou...

— Silêncio, vocês dois! — A voz de Philip irrompeu como um trovão, interrompendo as palavras raivosas dos dois, preenchendo o espaço com autoridade. — Vocês estão nos envergonhando diante dos nossos convidados. O que pensarão de nós? Que somos selvagens? Mais uma palavra fora de lugar, e eu garanto que a punição será severa!

Um silêncio pesado caiu sobre a tenda, sufocando até mesmo as respirações. A voz de Philip, normalmente gentil, agora carregava um tom áspero que fez todos recuarem.

O homem ao lado de Philip baixou a cabeça, resignado, retornando à sua posição inicial. Nadine, por sua vez, endireitou-se na cadeira, aguardando as próximas palavras.

— Sulivan, você precisa aprender a controlar-se — Philip dirigiu-se ao homem ao lado, que assentiu em silêncio. — E você, Nadine, deve aprender a controlar sua língua quando estiver errada. Sim, pedimos para verificar os arredores, mas não para se afastar completamente do acampamento, deixando-nos desprotegidos.

Embora há poucos segundos atrás tivesse repreendido os dois com uma voz áspera que poucas pessoas gostariam de ouvir, Philip voltou ao seu habitual tom paternal e gentil. Essa mudança foi observada por Endrick, que acompanhava tudo em silêncio com um olhar meticuloso. Sua expressão permaneceu inalterada por todo o tempo, desde o início da reunião.

Ele estava prestes a intervir na conversa para esclarecer alguns pontos, mas foi Aldebaram quem tomou a dianteira, rompendo o silêncio tenso:

— Sobre os vampiros, eu...

— E quem é você para se dirigir a nosso líder dessa maneira? — interrompeu Sulivan, o rosto tenso revelando tanto estresse quanto desdém.

O repentino corte de Sulivan fez Aldebaram se calar abruptamente, gerando uma onda de incerteza. Um rei, um verdadeiro monarca, não se deixaria calar assim. A coroa em sua cabeça não era meramente decorativa. Observando a cena, Endrick poderia ter suavizado a situação em apoio ao colega, mas optou por aguardar, aguardando para ver como Aldebaram lidaria com o desafio. Afinal, se não conseguisse afirmar sua autoridade diante de uma “tribo”, como poderia liderar com firmeza nas reuniões da liga, onde homens, políticos verdadeiramente formidáveis estariam presentes? 

Aldebaram sentiu o peso das expectativas sobre ele, nublando os pensamentos. Seu coração, tão grande quanto sua estatura, começou a bater descompassadamente. A respiração tornou-se difícil, como se estivesse enfrentando uma maratona. O medo de se tornar o vexame que temia, o rei desonrado, ameaçava dominá-lo. No entanto, não permitiria isso. 

Reunindo todas as as forças, evocou a imponência que mostrava em batalha, infundindo a voz com a gravidade e austeridade de um verdadeiro monarca ou melhor de um guerreiro que se tornou soberano:

— Sou Aldebaram Sternberg, rei guerreiro das terras mais gélidas do norte, soberano e senhor de Estudenfel. 

A voz de Aldebaram, imponente e amedrontadora, ecoou pelo salão, cortando o ar e eriçando os pelos dos presentes. Todos sentiram uma leve tremedeira, mesmo que fosse apenas nas pontas dos dedos. Sulivan parecia o mais afetado, seus olhos arregalados refletiam puro terror.

— E eu sou Endrick Fiorne, rei de Felizia — Endrick tentou apaziguar o clima, mas suas palavras apenas intensificaram o cliamão no ambiente.

Até porque agora Philip sabia que, diante dele, encontravam-se dois reis de poder considerável. Aldebaram emanava a aura de um guerreiro formidável, líder de um reino que inspirava medo em todos que simplesmente ouviam seu nome. Ao seu lado, Endrick, o rei de Felizia, conhecido por sua capacidade de dizimar rivais e pela influência que exercia sobre o continente, como um dos mais poderosos. Era uma reunião de duas figuras de extrema importância.

Philip ficou paralisado por alguns segundos, parecendo um idiota sem reação, incapaz até mesmo de piscar. Nadine, tentando ajudar o amigo, chutou sua perna por baixo da mesa, o fazendo expressar uma careta de dor, que teve de disfarçar rapidamente.

— Aí... É... Bem, muito prazer — murmurou, curvando a cabeça. — Eu sou Philip Espinhard, líder da Revolução Espinhard, que busca tomar o poder de Re’loyal.

— Revolução? — Endrick processou a informação, sua expressão indicando que estava tentando lembrar algo. Então, ele disse: — Ah, claro! Vocês ficaram famosos por firmarem um acordo com Aldemere.

— Malditos aldemerianos... — resmungou Sulivan, visivelmente mais calmo agora.

Endrick ficou confuso com os resmungos que ouvia dos presentes. Para ele, Aldemere ainda mantinha laços amigáveis com a revolução, especialmente considerando que Re’loyal era um inimigo declarado de ambos, o que indicava uma convergência de interesses. Philip, percebendo a confusão entre os estrangeiros, passou a mão pelos cabelos, aborrecido.

— Não temos mais laços com Aldemere... Eles nos traíram, entregando-nos a Re’loyal — contou Philip, trazendo um ar de ressentimento consigo.

— Entregaram? — indagou Endrick, surpreso. — Era de conhecimento público que vocês estavam estabelecidos em Reven, a cidade fronteiriça que foi invadida. Imaginávamos que, com a invasão, vocês haviam sido pegos de surpresa e consequentemente dizimados, mas eu particularmente não sabia que Aldemere os havia entregado…

— Mas foi, Aldemere nos assegurou que não haveria invasão, mas aconteceu... Quando pedimos intervenção, ajuda, eles nos viraram as costas, nos chamando de "vira-latas sem lar." — Ele dirigiu seu olhar para alguns dos soldados da revolução presentes na tenda, todos abaixando a cabeça em pesar. — Perdemos muitos bons homens naqueles dias. Pais, filhos, amigos... Desde então, Aldemere é um inimigo a ser combatido por nós, junto com Re’loyal, é claro. 

— Vocês parecem esbanjar muita confiança, considerando que, no momento, estão limitados a um pequeno enclave — provocou o rei, tentando arrancar mais informações deles.

Sulivan foi o que mais sentiu aquela provocação, como uma pontada em sua alma. Ele se inclinou para a frente, quase dando alguns passos para tirar satisfação, mas a mão firme de Philip o impediu de fazer besteira, mantendo-o no lugar. As cartas já estavam na mesa, e Philip sabia que qualquer passo em falso na frente de um rei como Endrick seria o mesmo que pedir pelo extermínio.

— Não faça besteira, Sulivan. No fim, ele tem toda razão, somos o que agora? Simples homens errantes que se escondem nas sombras das árvores, para não sermos aniquilados. — Philip falou com o olhar fixo à frente, repensando em tudo que haviam passado até chegar ali. — Mas se engana se acha que nos limitamos a este lugar, majestade.

Endrick sentiu um ar suspeito na maneira como aquilo foi dito, levantando uma sombra de dúvida em sua mente. Ao olhar para o lado rapidamente, notou que até Aldebaram, que não era o melhor em pegar nuances, parecia inquieto.

— O que quis dizer com isso? Se me permite a pergunta, é claro.

— A Revolução Espinhard se transmutou. De uma união de homens e mulheres que desejavam ver os pais que tanto amam livres das garras de tiranos, para uma organização... — Philip estreitou o olhar, não desviando dos convidados. Ele então ergueu um dedo. — Isso quer dizer que não estamos mais restritos a um único objetivo ou a um único lugar. Existem membros da nossa organização espalhados por todos os reinos, criando a maior rede de informação que este continente já viu. Com isso, tornamo-nos uma espécie de organização libertadora, libertando escravos e grupos de líderes opressores. Espinhard não é mais um simples grupo revolucionário, já não é a muito tempo.

Endrick estreitou os olhos, sua expressão severa refletindo a seriedade da situação. Ele avaliava cuidadosamente cada palavra de Philip, sentindo a tensão se intensificar no ar carregado da tenda. O silêncio que se seguiu era quase tangível, deixando até Aldebaram, visivelmente perturbado pelas revelações impactantes. Para Endrick, isso mudava tudo; o que antes era considerado um grupo de resistência contra o regime de Re’loyal agora se erguia como uma ameaça internacional sob o nome de Espinhard. Por que Philip decidira revelar isso agora, colocando-se em risco?

Philip quebrou o silêncio, apoiando os cotovelos na mesa com um suspiro resignado, mãos entrelaçadas em um gesto moderado. 

— Devem estar se perguntando por que estou revelando tudo isso, de maneira quase tola… — Ele lançou um olhar cansado ao redor da mesa antes de continuar, a voz ecoando pela tenda — Ahh… Para ser franco, não temos muito mais a perder. Como mencionou antes, estamos presos neste acampamento. Apesar de termos células espalhadas pelo continente, na prática, para nossa subsistência, isso não significa muito, infelizmente. Considerando como o clima nórdico castiga nossas barracas finas, muitos morreram de hipotermia ou perderam partes necrosadas pelo frio. E tem a fome, que ainda não é um problema, mas até quando? É impossível saber. Hum… E agora até os vampiros rondam nossos limites. Nossa sobrevivência, graças a tudo isso, é incerta.

Endrick captou o tom de desespero subjacente às palavras de Philip. Tudo aquilo era um apelo desesperado, uma busca por apoio. O rei refletiu, passando um braço pelo peito, pensativo, o outro acariciando o queixo em ponderação.

— Você precisa de apoio para continuar suas operações, é isso? — concluiu Endrick, aliviando por um momento a tensão de Philip e deixando Aldebaram em silêncio, mas perplexo. — Embora a ideia de ter ligações com uma organização tão promissora quanto a sua seja tentadora, preciso pensar bem antes de tomar qualquer decisão. Creio que o rei Aldebaram pensa o mesmo.

Ele olhou para o guerreiro, que assentiu em concordância. Era uma decisão muito grande para ser tomada naquele momento, sem ponderar adequadamente antes. Afiliar-se à organização Espinhard, considerando tudo o que havia sido dito, provavelmente faria da nação afiliada inimiga de Aldemere e Re’loyal, no máximo rivais, algo que não era muito apreciado. Todos os presentes pareceram compreender e foram compreensivos em deixar este assunto marinar um pouco antes de realmente decidirem algo.

— Bem, se a conversa chata acabou — começou Nadine, piscando lentamente, de tão entediante que a conversa estava para ela. — Podemos voltar ao assunto principal aqui?

— Creio que sim — afirmou Philip, reajustando-se na cadeira, ficando mais à vontade. — Rei Aldebaram, você parecia ter algo a dizer antes da infeliz intromissão de Sulivan — ele olhou de soslaio para o homem, que estalou a língua. — Ainda deseja compartilhar algo?

O guerreiro se ajeitou na cadeira e ponderou por instantes antes de compartilhar suas experiências. Ele começou a relatar como havia sido a luta com os vampiros, mas ocultou a parte em que eles haviam desenvolvido uma consciência peculiar. Em vez disso, mencionou apenas que os vampiros pareciam estranhamente mais espertos e rápidos do que o normal. 

Endrick, inicialmente tenso, relaxou ao perceber que Aldebaram não revelaria demais. A surpresa foi evidente no rosto dele, que já lamentava antecipadamente a possibilidade do guerreiro falar mais do que devia. 

— Foi isso que aconteceu em minha batalha. Por causa disso, o rei Endrick perdeu alguns preciosos soldados — afirmou Aldebaram com pesar.

Ao dizer isso, Aldebaram fitou o rei, que não parecia tão abalado. O guerreiro sabia que cada líder tratava seus subordinados de maneira diferente: alguns os consideravam como indivíduos, outros como uma massa indistinta, e outros ainda como meras peças de tabuleiro. Aldebaram esperava que Endrick estivesse apenas escondendo seus sentimentos e fosse o tipo de rei que se importava com aqueles que morriam por ele.

Endrick manteve uma expressão impassível, mas Aldebaram notou um breve lampejo de dor em seus olhos, o que lhe deu uma ponta de esperança. 

— Entendo. Hum… o melhor a fazer nesse caso é reforçar as patrulhas no acampamento e aumentar a contingência preparada. Afinal, um ataque surpresa nos deixaria devastados… — disse Philip, dirigindo sua atenção para Nadine. — Bem, tem algo mais que você gostaria de dizer, Nadine?

— Apenas que deixem eles ficarem aqui até estarem prontos para retomar a viagem — pediu com firmeza, deixando claro que não aceitaria um "não" como resposta.

— Sim, não vejo motivos para recusar isso — concordou Philip, cruzando uma perna sobre a outra e inclinando-se para olhar Sulivan, que estava atrás dele. — Sulivan, ordene que preparem algumas tendas improvisadas para acomodar nossos convidados e aumentem a fogueira para assar mais carnes — seu olhar bondoso recaiu sobre os convidados à sua frente. — Todos devem estar famintos.

Philip continuou a discutir os detalhes logísticos, garantindo que tudo estaria em ordem para acomodar os visitantes. Ele sabia que a hospitalidade era crucial para causar uma boa impressão, implicando em futuros acordos e criando um ambiente de confiança mútua. Sulivan acenou com a cabeça e saiu para cumprir as ordens, enquanto os outros começavam a se dispersar para organizar os preparativos. Nadine, satisfeita com a resposta de Philip, deu um pequeno sorriso de aprovação.

A reunião chegou ao fim. Aldebaram e Endrick saíram das tendas, cada um indo fazer algo diferente. O guerreiro, por exemplo, foi banhar-se, já que estava impregnado com o odor forte, resquício da batalha. A atmosfera no acampamento começou a mudar. O som de martelos e pregos indicava a montagem das tendas, e o crepitar da fogueira aumentava, prometendo um banquete caloroso.

Afastados da fogueira, mas ainda podendo vê-la ao longe, estavam Astrid e Harald. O clima entre os dois era gélido, não por hostilidade, mas pela falta de habilidades sociais de ambos. Astrid, por exemplo, gaguejava a cada duas sílabas alguns anos atrás e só superou isso com dificuldade e traumas.

— Como estão seus machucados? — Harald enfim quebrou o silêncio entre os dois.

A dragonoide, sentada no chão e encostada em uma árvore, olhou para o braço enfaixado. Onde antes ardia graças à luz solar, agora já não doía mais.

— Estão melhores... Obrigada por ter me oferecido este pano... — respondeu com certa timidez na voz. — Me ajudou bastante...

— Ah... Isso não foi nada, carrego vários deles comigo — Ele tirou um maço de panos dos bolsos, mas só então percebeu o quão estranho isso podia parecer. — É... um pouco estranho, eu sei, mas nunca se sabe, né? Como dizem, é melhor prevenir do que remediar.

De repente, surgindo do meio do nada como uma aparição, Nadine apareceu por trás de uma árvore e tocou no ombro de Harald.

— Estou interrompendo algum momento especial? — indagou ela, com um sorriso malicioso.

O pobre conselheiro, já distraído pelo momento embaraçoso envolvendo os paninhos, levou um susto maior do que deveria. Como um gatinho assustado, seu corpo inteiro estremeceu, os olhos azuis se arregalaram. Instintivamente, se afastou da jovem, em um movimento apressado.

— Ei! Você está tentando me provocar um ataque cardíaco!? — exclamou nervoso, levando a mão ao peito, onde sentia o coração martelar contra a caixa torácica em um ritmo assustador.

— Nem foi para tanto, gatinho medroso — provocou a jovem, dando alguns passos à frente, emparelhando-se com a outra sentada.

— Gatinho medroso? Espera… — Ele então processou o que ela havia dito ao chegar, sentindo as bochechas esquentarem, adquirindo um tom rosado intenso. A respiração, já pesada, ficou ainda mais ofegante. — O que exatamente quis dizer com “momento especial”!?

— Nada... — Ela olhou para Astrid, que parecia alheia, como se a mente estivesse longe. — Ah, Harald, sei que deve ser sua obrigação manter-se próximo à majestade, mas poderia nos deixar a sós?

Harald a olhou bem, ponderando. Estava inclinado a recusar, afinal, precisava ficar próximo à princesa para garantir sua segurança. Por fim, desviou o olhar para Astrid, que pareceu tranquila, acenando singelamente com a cabeça e oferecendo um sorriso, que, embora esforçado, carregava incertezas. Harald percebeu que, no fim, talvez estivesse atrapalhando. Relutante, acabou por aceitar o pedido, acenando levemente antes de se virar e caminhar em direção à fogueira.

— Vamos conversar, Astrid. Acho que devemos explicações uma à outra.

Astrid concordou sem hesitar, ciente de que uma conversa importante se desenrolaria ali. Como terminaria, era impossível prever.



Comentários