Volume 2
Capítulo 114: Um Guerreiro Feliz
Um rosto pálido, com covas profundas nas bochechas, magro, mas com enormes presas foi o que Endrick viu quando aquela criatura bateu em seu vidro, fazendo-o saltar para trás em um espasmo assustado.
— Que diabos é isso!? — indagou, recuando mais e mais no banco, até esbarrar no corpo de seu guardião, Edgar.
Aldebaram, por sua vez, mantinha-se imóvel, observando o ser com uma calma assustadora.
— Pela pele branca, como se não tivesse mais sangue, e essas presas imensas... — comentou ele. — Eu diria que é um vampiro.
— Vampiro!? — exclamou o outro, dirigindo um olhar perplexo para o guerreiro, mas voltando rapidamente a atenção para a criatura, que permanecia imóvel, observando-os pela janela fechada. — Isso... isso não faz sentido! Vampiros não atacam humanos há séculos; Vlad Drácula os proibiu de tais atos!
— E você confia em um monstro como aquele? — Aldebaram ergueu uma sobrancelha, irônico.
Um grito rompeu a escuridão, e o corpo de um guarda, minutos antes saudável, se chocou violentamente contra a carruagem dos reis. Ele escorregou até o solo, deixando um rastro de sangue em seu caminho. Muitos outros guardas também gritaram, uma luta intensa pela vida dos soberanos, havia tido início do lado de fora. Grunhidos animalescos misturavam-se à sinfonia infernal dos berros agonizantes dos infelizes soldados.
— Perdoem-me a intromissão, soberanos — interrompeu Edgar, mantendo a calma diante da situação. — Mas devemos focar em encontrar um meio de tirar vocês dois e a princesa daqui.
Astrid apertava o estofado da carruagem, tentando conter o nervosismo. Ela dirigiu seu olhar amarelado, como o sol navegando pelo céu, até Harald, cujo nome ou ocupação não haviam sido mencionados. Ao contrário dela, que se preocupava, o conselheiro já havia aceitado a situação. Em momentos como esse, as vidas de maior status têm prioridade na fila de salvamentos, e ele sabia bem disso.
Mesmo que por dentro, tudo que ele queria fazer era fugir. Mas isso, no fim, apenas o faria um renegado, que nunca poderia voltar para casa, e pior, o transformaria no pior desgosto que seu pai poderia ter. Esse singelo pensamento o fazia simplesmente ignorar o medo, mas não podia impedir que sua espinha gelasse, que o tumulto mental se instaurasse na mente nada quieta.
— Me tirar? Vocês estão de sacanagem? Hahaha! — Aldebaram soltou uma gargalhada que ecoou pela carruagem, deixando todos confusos. Contudo, logo entenderam bem o que ele quis dizer. Um brilho dourado iluminou o ambiente, cegando momentaneamente todos ali presentes. Quando a luz se dissipou, um machado de gume duplo surgiu no ar, caindo na mão forte do guerreiro num encaixe perfeito. — Fiquem aqui, vou abrir caminho para a gente!
Aldebaram caminhou abaixado, pois sua estatura imponente o impedia de ficar ereto sem bater a cabeça no teto da carruagem, passando por todos que ainda digeriam a informação. Quando sua mão se aproximou da trinca da porta, sentiu algo a agarrar firmemente. Ele se arrepiou por inteiro, e travou por breves instantes, seu olhar vagando perdido por alguns segundos preciosos.
— Pai… tome cuidado… — Astrid havia se esticado por cima de Harald, tocando ansiosamente a mão do pai, enquanto tentava conter o tremor dos lábios, temerosa do pior.
— Fique tranquila, filha… Eu sou um grande guerreiro, lembra? Hahaha! — Sua mão soltou a dela com suavidade, e abriu a porta, sem dirigir o olhar para ela, mantendo-se fixo à frente. — Eu volto logo, esperem por mim!
— Aldebaram, tem certeza do que fará? — perguntou Endrick, que não parecia relutante em permitir sua saída, apenas levemente preocupado. — Podemos esperar e ver se os guardas conseguem lidar com eles. Se isso não der certo, posso enviar o Edgar em último caso.
Aldebaram não respondeu de imediato. Terminou de abrir a porta, sentindo o ar exterior invadir o ambiente, trazendo consigo o cheiro férreo de sangue. O som de espadas se chocando e os gritos dos moribundos inundaram o local antes abafado. Sem hesitar, ele saltou para fora da carruagem, aterrissando no chão parcialmente nevado. Olhou para Endrick, que aguardava sua resposta, e um sorriso confiante estampou sua face amistosa.
— Não há necessidade! Eu lido com eles rapidinho
— Se assim deseja, não irei me contrapor — Endrick soltou um breve suspiro, abrindo um sorriso nervoso em seguida. — Só não morra, explicar como o rei de um país na situação do seu, morreu por um ataque de vampiros não seria a tarefa mais fácil do mundo. No mínimo, acarretaria uma guerra.
Era verdade, a situação era verdadeiramente inacreditável. Todos presumiam que Drácula controlava seus próprios servos, então seria natural suspeitar que o próprio Rei Endrick estivesse armando algo para eliminar Aldebaram, potencialmente desencadeando guerras. Isso era mais um motivo para que o guerreiro lutasse com todas as suas forças, uma nova motivação além das outras que o observavam com apreensão.
Astrid e Harald mantinham seus olhos fixos no guerreiro. Ele, por sua vez, respondeu com um sorriso confiante, transmitindo segurança a Endrick quando assentiu.
— Não lhe acompanharei, Rei Guerreiro Aldebaram — declarou Edgar com um semblante austero. — Ficarei para proteger aqueles que estão nesta carruagem. Enquanto eu estiver aqui, nenhum vampiro chegará próximo da mesma.
Suas palavras ecoaram com uma promessa firme, carregando um peso que não se limitava apenas à proteção física, mas também à determinação de manter a “fortaleza” segura. O que permitia ao guerreiro, lutar sem se preocupar com os outros.
Após suas palavras, Edgar levou a mão ao trinco, sentindo o frio metal sob seus dedos firmes, e puxou-o, trazendo uma porta consigo. Ao selar o lado esquerdo, restou apenas a porta direita aberta. Pela fresta, o guerreiro avistou sua filha, que continha um sorriso nervoso iluminando seu rosto contorcido de preocupações. Esta foi a última visão que teve antes de fechar a porta com um baque pesado, como um breve adeus silencioso.
Sem mais nada a fazer em relação àqueles que estavam dentro da carruagem, Aldebaram virou sua atenção para o que o cercava. À sua esquerda, as carruagens enfileiradas pareciam sombras imóveis, enquanto à sua direita, a floresta negra se erguia ameaçadora. Nada podia ser visto na escuridão profunda entre as árvores, mas o farfalhar inquietante das folhas enchia o ar, prenunciando um perigo invisível. A tensão era palpável, cada som amplificado pela incerteza do que espreitava nas sombras. Os gritos agoniados daqueles que perdiam as vidas ou membros para as criaturas sanguinárias ecoavam até os ouvidos atentos do guerreiro, até que…
— Veio me dar um oi? Hahaha! — Aldebaram provocou, apontando para a carruagem onde o vampiro que espreitava Endrick pela janela o fitava como um assassino, avaliando seu inimigo. — Não me olhe tanto, fico sem jeito...
A criatura vampírica grunhiu como uma besta desprovida de consciência humana, já não demonstrando nenhum traço de inteligência. No entanto, ainda conseguia distinguir quando alguém zombava ou o provocava. Com um sorriso indulgente do guerreiro, o ser saltou do teto da carruagem. Aldebaram não se moveu, apenas observou o vampiro pairar sobre ele e lhe ofereceu mais um sorriso desafiador.
O vampiro, contudo, não se deixou encantar pelo sorriso. Seus olhos estavam fixos no pescoço de Aldebaram, onde pulsava a promessa de sangue fresco e abundante.
Entretanto, a prometida refeição não lhe seria servida. Quando o guerreiro moveu um dos gumes de Miriam em sua direção, cortou-o ao meio com um golpe preciso. O vampiro passou pelo guerreiro, mas apenas como duas metades que se espatifaram no chão atrás dele.
Aldebaram ficou coberto por respingos de sangue que ainda restavam no corpo da criatura, o líquido carmesim enfeitando e pintando seu corpo tonificado. Ele abriu os braços, deixando o frescor do sangue o envolver, sentindo um êxtase que há muito não experimentava.
— Que saudade eu estava disso... — disse, inclinando o rosto para o céu de olhos fechados, sentindo cada gota de sangue em sua pele. Em seguida, voltou a endireitar a face, mirando onde a verdadeira batalha ocorria. — Vamos para mais! Hahaha!
Sem mais delongas, avançou em direção à origem dos gritos, ruídos e berros que ecoavam, até chegar em frente às carruagens. Lá, uma verdadeira batalha era travada entre alguns bravos homens e vampiros sanguinários. O chão parecia uma pintura macabra, onde o vermelho do sangue destacava-se em meio aos corpos moribundos. O contraste com o branco da neve tornava a cena ainda mais aterrorizadora.
Aldebaram fez uma rápida varredura ao redor e, mentalmente, contou pelo menos trinta vampiros ainda vivos e menos de quinze soldados aptos a lutar, descartando aqueles jogados aos cantos, já sem a mínima condição de empunhar uma espada.
Analisando a dianteira, suas costas pareciam vulneráveis. Foi isso que dois vampiros infelizes imaginaram ao saltar por trás. Aldebaram, segurando Misriam apenas com uma mão, firmou os dedos em torno do cabo do machado e, com um sorriso confiante, girou, esticando a lâmina. Os vampiros, já no ar, não puderam parar. Só restou ao primeiro sentir o gume do machado cortar a lateral de sua barriga, transpassando pele e cartilagem até alcançar os órgãos. O pouco sangue jorrou enquanto seu corpo, impulsionado pela força do impacto, mudou de trajetória, voando em direção ao outro vampiro. Ambos foram lançados em direção à carruagem, que parecia vazia.
O baque seco ecoou quando seus corpos colidiram com a carroceria. Um deles levou as mãos ao ferimento, enquanto o outro parecia confuso sobre o que havia ocorrido. Aldebaram trouxe a lâmina ensanguentada do machado para próximo ao rosto, parecendo analisá-la, e então avançou em direção aos dois vampiros que acabara de ferir.
— Vocês parecem criaturas desprovidas de consciência, que só agem por instinto, mas mesmo assim têm ações que ainda lembram humanos comuns — disse ele. Ao estar a poucos metros, a criatura ferida grunhiu, mas nada conseguiu fazer. — Aposto que está ardendo… Vou te livrar logo desse sofrimento.
As tripas do vampiro vazavam para fora, ele tentava a todo custo colocá-las de volta. Cada passo do guerreiro era como o prenúncio de sua morte, o som de seus calçados contra o chão parecia o das batidas da lâmina de um carrasco. O vampiro, que já não parecia ter consciência de um ser inteligente, deixou uma lágrima escorrer por seus olhos secos, passando pela bochecha pálida.
O outro, vendo o que acontecia e ainda com capacidade de atacar, avançou de qualquer maneira que pôde.
— Você… — O ser saltou, mostrando as presas enquanto esticava as garras. Contudo, de nada adiantou, pois no ar, Aldebaram o agarrou pelo pescoço, pendurando-o no ar. — Você me atacou por puro instinto ou para protegê-lo? Será que vocês…
As palavras ficaram suspensas no ar enquanto o guerreiro contemplava o vampiro que se debatia em sua mão, a fragilidade e a fúria misturando-se em um espetáculo grotesco. Aldebaram simplesmente virou o pulso e o pescoço da criatura estalou, os braços cessaram abruptamente os movimentos, balançando soltos no ar.
— Que você tenha um descanso digno antes de reencarnar — murmurou com pesar, soltando o corpo no chão. Então, voltou sua atenção para o outro vampiro, cujos movimentos eram cada vez menores, a vida escapando dele. — Vocês deveriam ser quase imortais. Apenas quebrando seus pescoços ou causando ferimentos irreversíveis poderia matá-los… Então por quê?
O guerreiro se aproximou mais, olhando para baixo o vampiro que parecia implorar por piedade. Aldebaram levou o machado até o pescoço dele, inclinando a lâmina contra sua pele pálida. Levou o gume até o queixo, e o usou para inclinar a face da criatura.
— O que está acontecendo… Vocês são realmente os bonecos de Vlad? — Aldebaram murmurou, referindo-se às criaturas que pareciam desprovidas de vontade própria. — Ou os Mordons? Vocês não são vampiros comuns… E esse sangue…
Ele observou perplexo a quantidade incomum de sangue que fluía dos vampiros. Os bonecos de Vlad ou os Mordons, como eram chamados, eram conhecidos por serem criaturas sanguinárias noturnas, mas geralmente não possuíam tanto sangue em seus corpos, às vezes nenhum. No entanto, esses pareciam ter uma quantidade relativamente alta.
— Bem, você não poderá me responder, e eu nunca fui de buscar por respostas. Então, assim como seu amigo ali — Aldebaram olhou para a criatura com o pescoço quebrado, caída no chão nevado. O vampiro que ainda lutava entre a vida e a morte encontrou seu olhar, momentaneamente adquirindo brilho e profundidade, como se ainda fosse capaz de raciocinar. Mas logo esse brilho se apagou quando a lâmina de Misriam atravessou seu pescoço, cortando o frágil fio da vida. — Descanse em paz, até o dia em que reencarne.
O guerreiro recuou o machado e a cabeça separada do pescoço rolou pelo chão gelado, encontrando-se com o corpo do outro vampiro sem vida. Em seguida, Aldebaram avançou decidido para o meio da balbúrdia. Os soldados restantes ficaram confusos, quando um rei tomou a dianteira, e sozinho eliminou mais dois vampiros com um simples balançar de machado.
— Por que estão parados aí, me olhando? — Aldebaram apontou com Misriam para frente, enquanto todos o observavam ainda perplexos, inclusive os vampiros que recuaram diante de sua aura imponente. — Ataquem!
Desobedecer uma ordem real, especialmente dada por outro rei em uma situação como essa, não era recomendável, e os soldados já estavam em apuros. Sujeitar-se um pouco mais não faria diferença. Com isso, os soldados responderam ao grito e correram juntos em direção aos vampiros, que não hesitaram em contra-atacar.
Espadas chocavam-se com garras em um frenesi infernal, o tilintar agudo do metal arranhando ecoava pelo campo de batalha. Aldebaram não hesitava, avançando implacável como um vendaval. Seu machado não conhecia piedade ao dilacerar tudo em seu caminho, seu olhar afiado caçando pescoços como um vampiro sedento. No turbilhão da luta, ele se via no coração das fileiras inimigas, mas seu machado de gume duplo cortava o ar com precisão, desviando das investidas desesperadas dos adversários.
Saltando, girando e retalhando, Aldebaram não demonstrava remorso; ao contrário, um sorriso de êxtase se desenhava em seu rosto. Seus olhos brilhavam com excitação, ansiando por mais carnificina. À medida que os corpos desmembrados se acumulavam, ele encontrava uma estranha paz. A verdade era que Aldebaram ansiava desesperadamente por retornar à batalha, seu espírito guerreiro clamava por uma oportunidade de extravasar-se mais uma vez. Para Aldebaram, aquele conflito era mais do que uma batalha: era uma terapia.
Enquanto as entranhas se espalhavam pelo chão, ele sentia um alívio profundo aumentado o sorriso voraz, como se a luta fosse uma terapia para sua alma atribulada pelos anos de liderança e tensão reprimida. Anos de repressão, de ânsias e preocupações como rei, todos os fardos se dissipavam com cada golpe desferido.
Cada cabeça separada do corpo era como dias de estresse abandonando sua alma; cada torso dividido era uma preocupação deixando de existir. O ar, pesado com o cheiro de sangue e pútrido pela carne decomposta, para ele era como o perfume suave de um campo florido na primavera. Nesse instante, tudo o que ele havia dito a Leif sobre o valor da vida havia se transformado em palavras vazias. A hipocrisia invadia seu coração acelerado, mas isso não importava. Não o incomodava. Ele sequer pensava ou lembrava disso, a sede de sangue não permitia tais atos.
Os golpes tornavam-se cada vez mais suaves para ele, como se estivesse manejando uma pluma, como se os corpos das criaturas fossem apenas névoa. Mas isso não refletia a realidade, onde seu semblante ficava cada vez mais mórbido e sorridente, acompanhando um crescimento estridente de força. Cada movimento simples de seu machado gerava rajadas de ar tão intensas que não distinguia amigo de inimigo, lançando todos pelos ares como folhas na ventania. Em meio a um desses golpes devastadores, a lâmina atravessou cinco pescoços em sucessão, como se nada fossem, pondo fim a batalha.
Já não havia tantas criaturas restantes, e o olhar antes encantado e a mente outrora alheia à realidade do guerreiro começaram a se esclarecer. A verdade crua o trouxe de volta ao presente, onde um mar de corpos de vampiros desfigurados se espalhava ao seu redor, lembrando-o do quão assustadora e devastadora podia ser sua força quando liberada.
Os poucos vampiros que restavam diante da carnificina não tiveram outra opção senão fugir pela densa mata, desaparecendo na penumbra. Os soldados remanescentes começaram a rir, talvez de alívio, e caíram exaustos no chão.
— Lutaram bravamente, camaradas, lutaram bravamente — parabenizou Aldebaram, sentindo o peito arfante. — Desde quando me sinto tão exausto após uma batalha?
— A idade traz consigo seus custos, meu rei — Harald surgiu por trás, semblante tranquilo mesmo diante do cenário de corpos.
— Seu moleque, está me chamando de velho? — Aldebaram virou-se para ele, um sorriso amigável nos lábios. — Velho é o seu pai hahaha! Apenas fiquei muito tempo parado... Ah, nada demais, apenas isso!
Harald olhou para ele com uma expressão cética, inclinando levemente a cabeça, soltando um suspiro de descrença.
— Se diz isso, meu rei, quem sou eu para discordar?— Ele olhou ao redor e depois fixou o olhar no guerreiro. — Ainda assim, o senhor não é mais o mesmo de alguns anos atrás, majestade. Deve lutar com mais zelo.
— Haha! Zelo? Quem você pensa que eu sou? Algum mago ou espadachim meticuloso? — Aldebaram balançou o machado diante de si, entre os dois. — Sou um guerreiro, meus músculos são minha zeladoria! Meu machado é minha preparação e estratégia! Hahaha!
Harald baixou a cabeça desanimado; não adiantava tentar aconselhar aquele cérebro de músculos, pois ele nunca escutava. Nessas horas, Harald só conseguia se perguntar: como seu pai conseguia? Talvez ele precisasse se inscrever em um curso extensivo só para aprender o mínimo de persuasão.
— Meu rei! Por favor, escute ao menos uma vez o conselho de seu conselheiro... E não é por mim, na verdade, é por... — Ele olhou para trás, onde Astrid observava os dois, paralisada e visivelmente nervosa. — É por ela, minha majestade, por sua filha. O senhor não faz ideia do que ela passou nesse tempo em que você esteve aqui lutando, como se a vida não importasse.
Aldebaram olhou para ela com pesar, depois para Harald, e então examinou seus próprios braços, marcados por ferimentos leves e suas vestes rasgadas. Era algo que há alguns anos jamais teria acontecido com ele; o homem que enfrentara mil soldados sem sofrer sequer um arranhão. Ele pressionou os lábios, soltando um suspiro discreto em seguida. Talvez, no fim das contas, o jovem conselheiro estivesse certo.
— Caramba, às vezes esqueço que você é mais cruel e direto que seu pai, hahaha! — Ele começou a andar, passando ao lado do jovem e tocando levemente seu ombro. — Não se preocupe, Harald, eu sei cuidar de mim. E sei cuidar de todos…
— Nunca duvidarei das suas palavras, meu rei — Ele lançou um olhar penetrante para Aldebaram, que se mantinha ao seu lado, sua expressão um reflexo de sua própria inquietação. — Mas por quanto tempo elas serão válidas?
O guerreiro hesitou por um instante, seus olhos fixos em Astrid, imóvel diante mais distante dele. Neste momento, flashes de memórias atravessaram sua mente. Seu rosto permaneceu impassível, apesar das preocupações que o assombravam.
— Até o dia em que eu reunir todos aqueles que me deram o significado de família... até o dia em que eu ver minha filha verdadeiramente feliz novamente... até o dia em que meu reino prosperar e o povo de pele azul encontrar seu lugar no mundo... — Ele retirou a mão do ombro do conselheiro e começou a caminhar. — Até meu último suspiro nesta terra, quando tudo estiver em paz e resolvido, será então que minhas palavras perderão sua validade. Espero poder contar com seus conselhos até esse dia, Harald, do fundo do meu coração.
Com isso, o guerreiro começou a se afastar, deixando o conselheiro pensativo sobre aquelas palavras. Olhando para a lua, a luz banhou sua face de pele azulada e refletiu o olhar de cor oceânica, trazendo consigo a iluminância de um discreto sorriso que adornou a bela face do jovem, que ainda, sem compreender totalmente as palavras de Aldebaram, passou a respeitar um pouco mais o rei, ou melhor, a pessoa que ele era.
Aldebaram avançava resoluto em direção a Astrid, que o observava imóvel, com um olhar penetrante. Contudo, seu percurso foi abruptamente interrompido por Edgar, que se deteve ao cruzar seu caminho.
— Majestade — Edgar se curvou em uma reverência contida, a preocupação evidente em seu tom. — Tudo bem com o senhor?
— Hã? Ah, sim... sim, estou bem. Sofri apenas alguns arranhões, nada mais. — O guerreiro abriu um sorriso forçado, tentando transmitir confiança em suas palavras. — Mas então, veio apenas ver se eu estava bem?
Edgar manteve um semblante impassível, seus olhos escuros exalando uma calma aparente. Mas ele sabia, através da falsidade daquele sorriso, que Aldebaram estava mentindo. Era evidente que algo perturbava o rei guerreiro, mas Edgar sabia que isso não era de sua alçada. Sua lealdade e preocupação pertencia ao rei a quem havia jurado proteger e apenas ele, não a este rei estrangeiro. Desconsiderando a mentira, Edgar varreu o campo de batalha com um olhar clínico.
O cenário era um espetáculo de carnificina. Corpos mutilados, sangue e vísceras espalhados por todos os lados contavam a história da brutalidade de Aldebaram. O rei guerreiro não havia poupado esforços em dilacerar, desmembrar e eviscerar os inimigos. Entre os mortos, soldados feridos gemiam, largados ao chão, esperando por uma ajuda que talvez nunca chegasse. No céu, além da lua e estrelas, algumas aves pareciam circular, inclusive uma estranho gavião.
— Vim a mando de sua majestade Endrick, verificar se precisava de algum auxílio — disse Edgar, voltando sua atenção para Aldebaram. Seu olhar analisador percorria o corpo troncudo do guerreiro, coberto de sujeira e ensanguentado pelo sangue dos inimigos. — Mas vejo que essa preocupação foi em vão. Sendo assim, minha outra tarefa é reunir todos os sobreviventes em boas condições para planejar os próximos passos.
— Ah, entendo… — O guerreiro sentia uma espécie de clima estranho pairando no ar, como uma névoa invisível, indetectável.
Edgar não pôde deixar de perceber a aura sombria que envolvia Aldebaram. Havia algo inquietante na maneira como ele se mantinha firme, apesar das evidências de uma batalha feroz. Ele era um espectro de fúria, quase incontrolável. O cenário ao redor era um testemunho mudo da brutalidade que havia sido desferida. Contudo, olhando para ele parado à sua frente, parecia que o massacre não havia sido difícil, como se isso fosse apenas mais uma segunda-feira em sua vida. Ele era como um monstro contido, uma figura que, se não fosse controlada, poderia trazer a ruína a um reino.
— Bem, isso é tudo — Mesmo com os pensamentos longe, o ar centrado que Edgar passava não se alterava por um segundo sequer. — Ah, rei Aldebaram, Sua Majestade Endrick deseja sua companhia. Agora, preciso ir cumprir minhas tarefas. Adeus.
Edgar se curvou mais uma vez e começou a se afastar para cumprir sua missão. Aldebaram era uma pessoa que ele teria que manter sob vigilância constante, alguém que despertava em seu coração um misto de respeito e temor, alguém que merecia o título de Rei Guerreiro.
Aldebaram, perturbado pela conversa com Edgar, avançou em direção a Astrid. A sensação inquietante que pairava no ar não o abandonava, e ele se questionava sobre o que realmente havia por trás das palavras de Edgar. Embora fosse um guerreiro formidável, Aldebaram sabia que sua habilidade em ler as intenções das pessoas deixava a desejar, uma fraqueza que já havia sido explorada contra ele inúmeras vezes.
— Pai... — Astrid parecia mais nervosa do que o habitual, suas mãos estavam baixas e juntas, o olhar evitava o do próprio pai.
— Astrid, o que foi? — Aldebaram abriu os braços, como se tentasse mostrar que estava perfeitamente bem. — Não se preocupe, eu venci! Na verdade, dizimei-os... Acho que chamar isso de batalha é até um exagero, hahaha! — Ele riu, tentando dissipar a tensão, mas a risada soou oca, desprovida de verdadeira alegria.
Astrid continuava inquieta, seu nervosismo era um sinal de algo mais profundo, algo que Aldebaram, com sua falta de perspicácia para as nuances humanas, podia apenas intuir vagamente. No entanto, a sombra de suas dúvidas e a presença de Astrid o lembravam de que as batalhas mais difíceis não eram sempre travadas no campo de guerra, mas nos corações daqueles que amava.
— Desculpe, filha, às vezes me deixo levar pelas batalhas — Ele admitiu, percebendo sua falha em ler as emoções. Mas mesmo assim, Aldebaram era capaz de conectar os pontos cruciais quando necessário.
— Não, pai, não é isso, é só que... — Astrid hesitou, desviando o olhar, tentando encontrar as palavras certas. — Ah, deixa para lá, pai. Fico feliz que esteja bem, apesar de estar agora todo ensanguentado e cheirando a tripas… cheirando é um eufemismo, você está fedendo!
Os lábios carnudos da jovem se curvaram em um sorriso forçado enquanto seu olhar percorria o corpo sujo de seu pai. Suas vestes reais eram uma massa repugnante de entranhas, pedaços de carne, sangue, terra e neve derretida, formando uma lama grotesca que o envolvia por completo. O contraste entre o guerreiro destemido e o pai amoroso era gritante, mas Aldebaram sabia que as palavras não ditas por Astrid carregavam um peso maior do que qualquer campo de batalha, um campo no qual ele se sentia desvantajoso e incapaz de vencer.
— Você realmente não perdoa... Nem estou tão mal assim… — Ele tentou brincar, cheirando seu próprio corpo e fazendo uma careta instantânea. — Bem, talvez um pouco…
"Eu acho que posso ajudar vocês com isso."
Uma voz conhecida, tanto para Aldebaram quanto para Astrid, agora mais madura do que antes, ecoou na penumbra da floresta. Uma figura escura se destacava entre as sombras, revelando-se lentamente à luz da lua. Cabelos que antes eram sombras agora brilhavam em tons de roxo.
— Quem é você!? — Edgar interveio abruptamente, empunhando sua lâmina e colocando-se à frente de pai e filha. — Mostre-se agora, antes que eu envie meus homens para dentro da mata com toda força!
Os soldados restantes, lutando para manter suas espadas erguidas, começaram a se juntar, formando uma barreira ao redor de Edgar em uma tentativa de intimidação e proteção. Então, um uivo gutural ecoou por trás deles. Todos se viraram para encarar a origem do som e o que viram poderia ser descrito como um pesadelo vivo: um imenso lobo negro, que parecia ter emergido das profundezas sombrias do submundo.
— Calma, calma pessoal. Eu sou uma velha conhecida desses dois — As palavras eram dirigidas a Aldebaram e Astrid, enquanto todos se mantinham cautelosos. — Podem perguntar para eles, se desejarem.
Finalmente, ela saiu completamente das sombras, mãos erguidas em sinal de rendição. Em uma delas, segurava uma faca com a cabeça de um vampiro recém-morto fincada na ponta. Nas costas, uma sombra imponente se agitava como um monstro colossal. Quando a figura finalmente se revelou por completo, era uma jovem de cabelos roxos e olhos penetrantes, dona de um sorriso intrigante.
— Nadine!? — exclamaram Aldebaram e Astrid ao mesmo tempo.