Volume 2
Capítulo 113: Início da Viagem
Depois de discutirem e se acertarem em partes, Aldebaram e Astrid sentaram-se lado a lado na beira da cama. O guerreiro olhava ao redor, com os olhos ainda um pouco marejados, e percebia a bagunça no quarto da dragonoide, como se ninguém o tivesse organizado há tempos.
— Isso aqui está um pouquinho bagunçado… Está pior que a mente perturbada de um jovem, hahaha! — comentou o guerreiro.
— Ei! Pai, não fale assim do meu quarto — respondeu ela, virando o rosto emburrado para ele. — Você nem é o melhor exemplo de organização! Rum…
Ela cruzou os braços, irritada, e após bufar, voltou sua atenção para frente. Observando o quarto, percebeu que era difícil negar as palavras do guerreiro, que ficou sem graça com a reprimenda da filha.
— Desculpa, desculpa… — Aldebaram levou uma mão à nuca, soltando um riso sem graça. — E como assim não sou o maior exemplo de organização? Minha cabana era perfeitamente arrumada!
— Arrumada? Era um antro de poeira! Eu que a limpava toda vez. Mas bastava eu sair por alguns dias e, quando voltava, já estava uma completa bagunça!
— Caramba, como você ficou respondona… — Aldebaram a olhou, colocando a mão em seu ombro e observando sua pele quase pálida. — E está ainda mais branca do que antes... Quase pálida. Faz quanto tempo que você não sai do sol, palmita?
Astrid desfez o cruzamento dos braços e resmungou contra aquele apelido que só alguém tão idiota como seu pai poderia inventar. Em um suspiro, ela respondeu:
— Só para sua informação, pai… Eu saio do quarto muito mais do que você pensa… — Ela olhou para as janelas de onde a luz solar penetrava no ambiente. — Só que é mais à noite… O sol, às vezes, fica um pouco incômodo para mim…
— Hmmm… Mas a janela está aberta e a luz solar está entrando em abundância aqui.
— Ah, pai… Não é a mesma coisa que estar literalmente sob o sol, né… — Astrid tocou nos cabelos prateados, alisando-os, mas estavam tão ressecados e mal cuidados. — Em ambientes como meu quarto, a luz solar só incomoda minha vista… Mas é algo fácil de suportar.
Aldebaram compreendeu parcialmente e se levantou, esticando os braços. Os olhos já não revelavam mais os sentimentos intensos que havia mostrado minutos antes. Ele então olhou para sua filha e disse:
— Bem, eu não sou a melhor pessoa para dizer se algo é saudável ou não… Mas acho que ficar trancada nesse quarto não te faz bem — Ele estendeu a mão em direção a ela, enquanto ela o observava curiosa. — Hmmmm… Talvez eu possa fazer algo a respeito.
— O que quer dizer?
— Estou a poucos minutos de partir em uma viagem para me reunir com os países mais poderosos deste continente… — Aldebaram pareceu ficar sem jeito de repente, desviando o olhar para as janelas. — Não estou tão confiante para ir sozinho… Na verdade, não vou sozinho, irei com um conselheiro, mas… Ah, você me entende, não é?
Era meio difícil não entender. Contudo, ela ainda nutria um pouco de receio em relação a ele, mesmo que teoricamente tivessem se acertado; afinal, quatro anos não se apagariam em uma simples conversa. Contudo, essa poderia ser a chance de ambos se aproximarem ainda mais, algo que ela já havia aceitado como necessário. Com isso em mente, a jovem estendeu a mão e segurou a dele, e a luz do sol os envolveu como se abençoasse aquele gesto. Era como um sinal de que tudo poderia dar certo.
Depois disso, Aldebaram deixou o quarto para que Astrid pudesse se arrumar. Ele se posicionou ao lado da porta e se recostou na parede, aguardando pacientemente. De tempos em tempos, cruzava com um guarda, empregada ou serviçal. Se não fossem observá-lo diretamente, poderiam pensar que se tratava de um novo guarda no castelo, dada sua postura discreta e despretensiosa, que destoava da rigidez típica da realeza. Era somente ao notarem a coroa reluzente em sua cabeça ou ao reconhecerem sua figura conhecida que percebiam que ele era o próprio rei.
Apenas uma pessoa o reconheceria de qualquer modo, e essa pessoa já vinha pelo corredor, observando-o com um olhar reprovador. Era Lief, que se aproximou rapidamente.
— Minha majestade, quantas vezes devo lembrá-lo de que em público é necessário manter uma postura altiva, sem permitir qualquer brecha?
Aldebaram o observou e revirou os olhos. Após uma longa inspiração, ajustou sua postura, assumindo a imponência digna de um verdadeiro monarca.
— Melhor agora, raposa velha?
— Diria que sim. E raposa velha, senhor? Olha, já me chamou de muitas coisas, meu rei, mas essa... — Lief levou o punho à boca, segurando um riso discreto. — Essa é nova, meu soberano.
O guerreiro abriu um sorriso radiante, enquanto o conselheiro observava ao redor, notando outras pessoas transitando pelo corredor bem iluminado. Em seguida, ele voltou sua atenção para Aldebaran.
— Se está aqui sozinho, meu rei, imagino que as coisas tenham dado certo em parte com a Lady Astrid.
— Na verdade...
Antes que o guerreiro pudesse terminar sua fala, a porta dos aposentos de Astrid se abriu e dela emergiu uma figura deslumbrante. Seus cabelos prateados, embora ainda não tão sedosos, já tinham um brilho singular. Seu olhar, antes receoso, agora emanava mais tranquilidade, ainda que as olheiras não pudessem ser tão disfarçadas. O vestido branco que envolvia seu corpo a fazia parecer de uma beleza superior. Para completar o conjunto, seus pulsos e cinturão eram amarrados por faixas amarelas.
— Minha Lady... Há quanto tempo não te vejo! — Os olhos de Leif brilhavam de admiração. Já se passaram alguns anos desde que ele a viu bem pela última vez, depois sempre a encontrava parecendo debilitada, doente, mas agora ela parecia tão magnífica.
Astrid se encolheu de vergonha ao perceber um olhar tão intenso e fixo sobre ela; definitivamente, não era uma das experiências mais agradáveis do mundo.
— Leif, é melhor segurar esse queixo, senão ele vai cair! Hahaha! — Aldebaram comentou com um sorriso, dando um tapinha nas costas do conselheiro.
Leif, percebendo sua falta de compostura, rapidamente se recompôs, limpando discretamente a garganta.
— Me perdoe, Lady Astrid. Foi apenas uma grande surpresa vê-la tão bem…
— N-não precisa se preocupar! — Ela fechou a porta atrás de si com nervosismo e passou rapidamente por Aldebaram. — Vamos, pai. Não queremos nos atrasar, não é?
O guerreiro concordou com um aceno, mas antes de segui-la, percebeu o olhar intrigado de Leif, que parecia tentar encaixar peças de um quebra-cabeça sem sucesso.
— Nossa, Leif, está parecendo um cego em uma chuva de flechas! Hahaha! — Aldebaram sorriu satisfeito. — Vou levá-la comigo para a reunião.
As peças finalmente se encaixaram na mente confusa do conselheiro, e, como um sol emergindo em um dia nublado, o sorriso do velho homem irradiou de orgulho.
— O senhor realmente conseguiu, meu rei.
— Sim, Leif, consegui dar o primeiro passo... Mas ainda falta uma estrada sinuosa pela frente — disse Aldebaram de forma contemplativa, seus pensamentos parecendo vagar por um momento. — Mas, um passo de cada vez, chegaremos lá! Não é, raposa velha?
O momento de devaneio passou, e um novo sorriso iluminou o rosto gentil do guerreiro, que parecia mais alegre do que nunca. O conselheiro compartilhava da mesma animação, sentindo-se como um pai vendo seu filho evoluir.
— Sim, minha majestade... Sim.
Com isso, o guerreiro começou a avançar, seguido de perto por Leif, cruzando os corredores gelados do castelo até chegarem às portas e saírem. Lá fora, quase como uma estátua, com as bochechas rosadas pela presença de Astrid, que estava focada à frente, plena, com as mãos juntas abaixo da cintura, estava Harald, outro conselheiro de Aldebaram e filho de Leif.
— O que foi, Harald? — perguntou Aldebaram, aproximando-se a passos lentos. — Virou estátua? Se virou, te esculpiram mal! Hahaha!
O jovem mal esboçou um sorriso diante da piada, mas teve uma reação genuína quando sentiu a mão do guerreiro bater em suas costas com tanta força que quase fez seus pulmões darem uma voltinha pelo ar. Para o guerreiro, foi só um tapinha amistoso, mas para Harald foi como um empurrão de catapulta. Ele foi lançado para frente e, para sua infelicidade, foi direto na direção de Astrid, colidindo com ela de peito a ombro.
Apesar da estatura menor da dragonoide, a sensação para Harald foi como colidir com uma parede maciça. Ele foi lançado para trás e, antes que pudesse perceber, já estava sentado de bunda no chão, pensando em como só queria ser o rapaz da contabilidade.
— Pelo deuses! Você está bem?
— Aí… — Ele acariciava a cabeça, olhando para baixo, mas quando voltou a atenção para a voz, sua mente entrou em pane. — Eu… eu…
Era como se um anjo tivesse descido à Terra. Harald mal conseguia acreditar na visão diante de si. Sob o sol dourado que destacava cada curva delicada da pele daquela criatura celestial, e os cabelos prateados que dançavam ao sabor do vento, ele sentiu seu coração acelerar como nunca antes.
Todos os seus sentidos pareciam ser inundados por uma beleza tão pura que era quase doloroso. Incapaz de articular palavras coerentes, tudo que conseguiu foram grunhidos incompreensíveis, enquanto as orelhas esquentavam e a face tornava-se vermelha como tomate maduro.
Astrid personificava a essência da beleza aos olhos do jovem, que se encontrava atordoado, caído ao chão como um completo desajeitado, enquanto ela lhe estendia a mão. Foi então que ele despertou para o silêncio que se seguiu após o encontro de seus olhares, tentando desajeitadamente alcançar a mão dela. Suas mãos estavam prestes a se tocar no ar, até que uma mão enrugada e velha se antecipou à delicada e macia da jovem.
— Venha, Harald — disse Lief, com uma expressão que não transmitia satisfação alguma. — Onde já se viu passar por esse vexame diante dos soberanos…
Astrid recuou a mão e deu alguns passos para trás, com uma expressão preocupada no rosto. Harald, percebendo o tamanho do constrangimento que estava causando, respirou fundo e segurou firmemente a mão de seu pai, levantando-se com sua ajuda.
— Desculpe, pai. Eu só...
— Sem desculpas, Harald! — interrompeu Leif, cuja voz habitualmente gentil e compreensiva agora soava séria e grave. — Quantas vezes eu já te disse que diante da realeza devemos nos comportar? Discrição é parte do nosso dever!
O jovem não encontrava palavras para responder, apenas assentiu em concordância, baixando a cabeça enquanto seus olhos começavam a se encher de lágrimas. Para ele, ser repreendido em público não era o problema; o que realmente importava era a decepção que sentia por desapontar seu pai. Ele só conseguia pensar em como foi tolo, em como poderia ter agido de forma diferente.
— Chega, Leif — interveio Aldebaram, com um olhar sério para o conselheiro. — Harald não tem culpa alguma; foi meu gesto descuidado que provocou tudo isso…
— Mas, meu rei... — Leif parecia relutante em aceitar aquilo. Sua hesitação o fez dar alguns passos para trás, temeroso.
— Sem mas, seu velho teimoso — completou cruzando os braços.
Harald observava Aldebaram com uma mistura de confusão e admiração, enquanto Leif abaixava a cabeça, ainda resistindo às palavras do guerreiro. Por outro lado, Astrid sorriu gentilmente para seu pai, que retribuiu o gesto suavizando a expressão, tornando-a amistosa.
— Mudando de assunto, se Harald está aqui, isso significa que ele me acompanhará, não é mesmo? — perguntou Aldebaram, voltando a atenção para o conselheiro.
— Sim, meu rei — respondeu Leif, recuperando a compostura. — Estou muito velho para viagens como essa. Espero que me compreenda.
Aldebaram soltou uma risada contida e avançou alguns passos sobre a fina camada de neve em direção a Leif. Ele colocou a mão carinhosamente no ombro do conselheiro e olhou profundamente em seus olhos, enxergando o próprio reflexo sorridente na retina do homem.
— Relaxa, sei que seus ossos já estão tão desgastados que um simples balanço pode esfarelá-los! Hahaha!
O conselheiro encarou os olhos castanhos do guerreiro, que cintilavam com a alegria característica de Aldebaram. A simples visão era contagiosa, e as ondas de entusiasmo pareciam envolver e penetrar sua alma. No final, era impossível manter uma expressão séria; o conselheiro simplesmente relaxou e coçou a testa resignadamente.
Sem mais palavras, o guerreiro inclinou a cabeça na direção de Harald e retirou a mão do ombro de Leif. O conselheiro logo compreendeu o gesto e, num suspiro resignado, avançou na direção de seu filho. A cada passo, o jovem sentia a pressão do ambiente aumentar, como se a atmosfera se tornasse mais densa.
— Pai, eu...
Suas palavras ficaram no ar, pois Leif não se aproximou para agredi-lo ou desferir mais broncas, mas sim para abraçá-lo. Um abraço apertado que comunicava mais do que mil palavras poderiam expressar.
Sentindo o calor paterno o envolver, Harald relaxou cada músculo tenso, como manteiga derretendo, e apoiou a testa no ombro de seu pai. Era um momento raro, e ele queria que durasse para sempre.
Ao longe, Aldebaram observava com orgulho e satisfação. Ele se aproximou de Astrid, que também contemplava a cena com um brilho enorme no olhar. Por pouco, o brilho não se tornou lágrimas; ela era uma garota um pouco sentimental demais.
A bela cena foi subitamente interrompida pelo som de galopes aproximando-se, revelando uma luxuosa carruagem amarela que surgia no horizonte. Atrás dela, seguiam duas outras carruagens menos opulentas, acompanhadas por vários cavaleiros. O cortejo avançava pelas estradas não pavimentadas, ladeadas por algumas casas modestas. Aldebaram, reconhecendo imediatamente a origem do cortejo, deu alguns passos à frente, endireitando-se e lutando contra o leve tremor que o acometia.
Leif, percebendo a movimentação, prontamente se posicionou ao lado do soberano, em apoio à campanha de seu filho. Astrid, imitando o gesto do conselheiro, colocou-se ao lado do pai, adotando uma postura que procurava transmitir confiança e serenidade, mesmo que por dentro, ela também sentisse a mesma ansiedade de seu pai.
Finalmente, após alguns segundos que pareceram eternos, a carruagem principal chegou aos portões do castelo. A porta lateral abriu-se lentamente e, de dentro, emergiu um homem calvo, com um olhar decidido e austero.
— Muito prazer, majestade Aldebaram — disse ele, fazendo uma reverência elaborada antes de se recompor. — O Rei Endrick o aguarda dentro do veículo. Por favor, entre.
Aldebaram assentiu levemente, tentando manter a elegância nos gestos, e envolveu sua mão na de Astrid, que não recusou o toque. Ela sentiu os dedos fortes de seu pai tremerem ligeiramente, refletindo a ansiedade que o acometia. Astrid sentiu-se estranha, jamais imaginara ver o grande guerreiro Aldebaram, seu pai, numa situação como aquela.
Os dois avançaram, seguidos de perto por Harald, e entraram na carruagem. Ao sentarem-se todos no mesmo banco, vislumbraram à sua frente Endrick Fiore e seu fiel guardião, Edgar Figurde. Ambos mantinham uma expressão centrada, sem demonstrar mais do que o necessário. O homem que saiu da carruagem não voltou a entrar, apenas fechou a porta.
— Rei Endrick, é um prazer revê-lo — disse Aldebaram, mantendo um tom polido.
— Digo o mesmo, rei Aldebaram — respondeu Endrick, sua voz sedosa, porém firme, sem demonstrar qualquer hesitação. — Espero que esteja pronto para o que faremos.
Aldebaram assentiu em concordância e deu um aceno de cabeça para Edgar, que respondeu do mesmo modo. O rei Endrick, então, dirigiu sua atenção para uma figura que não havia avistado no castelo da última vez: Astrid.
— Ela é sua esposa? Concubina?
— O-o que!? — Astrid franziu o cenho numa velocidade quase anormal, enquanto sentia as bochechas esquentarem. Não sabia se deveria sentir raiva ou vergonha.
— Minha filha, rei Endrick — Aldebaram tratou logo de resolver o mal-entendido. — Minha filha adotiva, para ser mais exato.
O estalo ecoou e a carruagem começou a se mover, o ranger das madeiras iniciando seu arranjo característico. No meio desse movimento, Astrid não sabia onde esconder o rosto, Harald estava de mãos atadas, tentando manter a seriedade, e Aldebaram se esforçava para manter uma expressão serena.
— Oh, me perdoem… — O rei então olhou para Astrid parecendo a analisar e voltou o olhar para o guerreiro. — Realmente, vocês não se parecem em nada, esse foi o motivo de minha confusão. De novo, perdoem-me.
Astrid respirou fundo, tentando recuperar a compostura. Por outro lado, Aldebaram acenou com a cabeça, aceitando as desculpas.
— Quanto tempo demoraremos para chegar? — indagou Aldebaram.
— Pouco mais de duas semanas de viagem, se não houver imprevistos e mantivermos a velocidade normal — respondeu prontamente Endrick.
Aldebaram recostou-se no banco e olhou pela janela. Já esperava por esse tempo, considerando a distância e o terreno acidentado, especialmente ao norte. E dada a extensão da viagem, paradas seriam necessárias. O guerreiro ainda não estava ciente da programação da viagem; isso ficou a cargo do rei Endrick.
Após as primeiras perguntas, um silêncio se instalou. Aldebaram, nervoso, esforçava-se para esconder sua ansiedade, mas ela se manifestava em gestos repetitivos, como bater os dedos no banco de couro ou fitar o rei para logo em seguida desviar o olhar.
Para evitar constrangimentos, ele desviou a atenção para fora da carruagem, observando a única cidade que compunha Estudenfel. Passavam pela rua principal, que em reinos mais prósperos, com maior riqueza e felicidade, estaria cheia de pessoas ovacionando o rei em sua partida, celebrando com flores e despedidas festivas. Mas em Estudenfel, um reino em estado miserável, a realidade era bem diferente.
As ruas estavam quase desertas, com poucas pessoas de rostos fechados, ocupadas demais com suas próprias preocupações. Aqueles que olhavam para a comitiva não exibiam sorrisos; seus rostos cansados e sofridos apenas refletiam a exaustão de um povo que não aguentava mais.
— Seu povo parece temer os que estão no poder — comentou Endrick, com os olhos esmeraldinos focados nas ruas. — Existe algum motivo oculto para isso?
Aldebaram olhava para fora enquanto escutava a pergunta. Ao passarem por uma mãe com seu filho, a mulher escondeu a criança atrás de si, encarando Aldebaram com desconfiança. O guerreiro apenas observou com pesar.
— É culpa dos antigos governantes — respondeu Aldebaram. — Eles se diziam a favor do povo, mas sempre oprimiram aqueles que tinham opiniões minimamente diferentes.
Passaram ao lado de uma praça, no centro da qual havia um monumento que parecia uma forca de pedra.
— Foram mais de quatrocentos anos de enforcamentos nesta praça por esses motivos... — Um suspiro seguiu essas palavras. — Acho que isso explica a desconfiança que nutrem quanto a quem tem o poder de decidir sobre suas vidas.
Endrick observou o monumento, uma bela peça que carregava um significado profundo e sombrio. Um verdadeiro patrimônio cultural que revelava a crueldade que os poderosos podiam cometer em nome de suas convicções. Astrid, ao lado de seu pai, observou-o com pesar, imaginando como ele se sentia ao ser rejeitado pelo povo que tentava ajudar, mas permaneceu em silêncio.
Dentro da carruagem, havia uma regra não falada: apenas os reis tinham o direito de se expressar livremente. Os demais só falavam com a devida permissão.
A jovem discretamente colocou a mão sobre o antebraço, que ardia intensamente após um contato prolongado com a luz solar. Ela não conseguia explicar por que a luz a afetava tanto, mas a dor era insuportável. Harald, sempre atento, percebeu seu desconforto e, de soslaio, viu o local que a perturbava. Sem chamar a atenção, tirou um pequeno pano do bolso e o entregou a ela.
Astrid assustou-se com o gesto repentino; de repente, um pano branco apareceu em sua visão. Olhou para o lado, e seus olhos encontraram a face lateral de Harald, que parecia enxergar além das paredes da carruagem. Ele estava focado à frente, mas ela percebeu a leve cor rosada que tomava seu rosto. O gesto, ao mesmo tempo gentil e tímido, fez seu coração acelerar. Corando, ela aceitou o pano e o colocou sobre a área dolorida, sentindo um alívio imediato.
Ninguém mais percebeu o gesto discreto; todos estavam focados no que acontecia fora da carruagem. As ruas sujas, as construções inacabadas ou à beira do colapso. Muitas pessoas em situação de rua, com rostos que revelavam uma única coisa: fome. Estudenfel nunca foi um lugar agradável, mas com o passar dos anos e a ascensão de reis cada vez mais egoístas, a situação só piorou.
Endrick não precisou perguntar o motivo de o reino estar assim. Ele havia estudado a história de Estudenfel e conhecia bem as razões. O solo da região era muito rochoso, cercado por montanhas, com solos férteis raros e apenas em determinadas épocas do ano para plantar. Além disso, a falta de comércio externo havia afundado a economia do país em um poço do qual seria difícil escapar, e recuperar.
Enquanto a carruagem avançava pelas ruas desoladas, a cena se desenrolava como um filme de horror. Astrid tentava esconder sua dor, pressionava o pano contra o antebraço ardente, mas outras partes do corpo começavam a arder também, o olhar perdido em um misto de vergonha, gratidão e dor, com músculos faciais falhando em escondê-las. Harald, ainda corado, fitava o horizonte além das paredes da carruagem.
E Aldebaram era o mais afetado. Seu olhar desesperançoso recaía sobre o que seu reino se tornou ou sempre foi, com as sobrancelhas se arqueando cada vez mais diante do que via. A miséria de Estudenfel era um peso palpável, sufocante. O silêncio na carruagem refletia a desesperança que pairava no ar, uma sombra que se recusava a dissipar.
Depois de algum tempo, eles deixaram a cidade e adentraram as florestas que desciam a montanha, o clima pesado desapareceu levemente. A distância da capital aumentava continuamente. O entardecer começava a se aproximar, com o sol descendo no céu alaranjado. Nesse meio tempo, passaram por várias pequenas vilas do reino, responsáveis pela produção alimentícia.
Notaram que o solo já estava empobrecido, com poucas plantas sobreviventes, devido à proximidade do inverno. Em poucos meses, o norte se tornaria ainda mais hostil do que de costume. Aldebaram sempre temeu essa época do ano; ao ver as plantações, sentiu o coração doer e acelerar por instantes, suas pupilas dilataram, mas ele conseguiu conter as emoções, lembrando-se de focar no agora, no presente.
Finalmente, cruzaram o forte fronteiriço de Estudenfel, que guardava a fronteira com Windefel, adentrando este reino. No entanto, a mudança de reino não trouxe alteração na paisagem: ainda eram florestas congeladas, montanhas imensas e pouco solo fértil. O norte sempre foi um lugar difícil para sobreviver; muitos reinos sucumbiram ali. Windefel era um grande exemplo, um reino que não fora sempre assim. Houve revoltas que formaram outros países, os quais posteriormente se reunificaram.
Sem dúvida, era um lugar que poucos gostariam de governar, sabendo exatamente o que essa responsabilidade significava. Endrick mantinha uma expressão inalterada, com um sorriso leve no rosto e os olhos frequentemente voltados para fora. Raramente dirigia o olhar para Astrid, possivelmente por respeito. A cada olhar para o exterior, seus olhos pareciam capturar um brilho peculiar, mesmo que ele tentasse manter suas emoções contidas. Para Endrick, o Norte era uma terra fascinante, especialmente pela notável resiliência dos reinos diante de suas adversidades, um testemunho de como prosperavam apesar dos desafios.
Avançando mais um pouco, o sol despencou do céu, dando lugar à lua, e o entardecer alaranjado cedeu espaço à noite escura. A visão de todos ficou limitada ao alcance das velas, candelabros ou lampiões. Isso não seria um problema tão grande para aqueles dentro das carruagens. Contudo, representava um enorme desafio para quem era responsável pela segurança ou condução delas.
Era preciso estar atento aos arredores, uma tarefa complicada pelo fato de que os arredores eram florestas intermináveis, que continham o breu em cada espaço possível. Durante o dia, a luz solar ajudava a enxergar entre troncos e folhas. Mas à noite, tudo o que tinham eram as tochas e lampiões, que infelizmente tinham um alcance bastante limitado.
Sofrer um ataque surpresa, ironicamente, não seria uma surpresa, seja de pessoas, animais ou outros seres. E foi nesse cenário perigoso que os primeiros sinais estranhos surgiram. Os arbustos invisíveis na escuridão chacoalharam, produzindo ruídos audíveis.
— Escutou? — indagou Aldebaram a Endrick.
— Sim, veio de um arbusto lateral. — Ele olhou para Edgar ao seu lado. — Edgar, peça para alguém iluminar os arbustos.
O guardião prontamente obedeceu, pondo a cabeça para fora da janela e ordenando que iluminassem os arbustos. Um guarda que acompanhava o cocheiro focou o lampião, e a luz gradualmente alcançou o local desejado, passando por algumas pedrinhas até iluminar parcialmente o arbusto frutífero.
Com a iluminação, o arbusto chacoalhou outra vez e, colando apenas a cabeça para fora, de olhinhos assustados, um coelho surgiu, aliviando os corações de todos.
— É apenas um coelho... Ainda bem — comentou Endrick, abrindo um sorriso aliviado para o guerreiro. — Acho que não precisaremos nos preo...
As carruagens frearam bruscamente, fazendo todos se abalarem. Os cavalos relincharam, e gritos irromperam na penumbra.
— O que está acontecendo!? — exclamou o rei ao guardião.
Mas antes que uma resposta pudesse ser dada, um rosto surgiu no vidro ao seu lado. Um rosto esbranquiçado, com dentes maiores que o normal, dentes ou melhor presas manchadas de carmesim.