Volume 2
Capítulo 102: Forticando-se
Dorni encontrava-se entre as densas árvores, diante de um recanto oculto, invisível aos olhos curiosos. Nas mãos, ele segurava o reluzente colar de Brisingamen, presente concedido pela deusa Freya há quatro anos.
Ainda pairava em sua mente a incógnita do porquê ela nunca retornara para reivindicar o artefato, como prometera. Contudo, essa questão encontrava uma resposta parcial na existência da barreira que bloqueava a influência divina sobre a terra. Com esse obstáculo fora de cogitação, sua atenção se voltava para o lago à sua frente.
O corpo d'água era de tamanho moderado, com uma suave cascata em uma das extremidades. Suas águas eram cristalinas, parecendo intocadas pela mão do homem, como se jamais tivessem sido descobertas e, talvez, realmente nenhum ser pisou neste local.
— O majestoso lago de Avalon... — murmurou ele, deixando seu olhar vagar sobre as águas serenas. — É ainda mais deslumbrante ao vivo do que as lendas o descrevem...
O lago de Avalon, fazia parte de uma lenda de tempos imorais que, graças aos deuses sábios, resistiu ao teste do tempo. Entre as muitas lendas que o envolviam, destacava-se a saga ou aventura de um dos primeiros portadores da lendária espada Escolion, Arthur Pendragon, consequentemente um dos primeiros escolhidos.
Contava-se que, após inúmeras batalhas que deixaram a lâmina enfraquecida e danificada, Arthur recebeu uma orientação divina de Athena para buscar o antigo lago, considerado um dos primeiros de toda a criação, e mergulhar a espada em suas águas sagradas. Era ali, segundo as histórias transmitidas pela tradição oral, que habitavam as Níades, ninfas aquáticas de beleza indescritível e poderes mágicos.
Arthur, guiado por um mago de renome, seguiu o chamado dos deuses até as margens do lago, onde foi acolhido pelas misteriosas Níades, reconhecendo nele a dignidade necessária para merecer sua ajuda. Com a bênção de Athena e os conselhos de Hefesto, as ninfas empregaram sua própria essência para restaurar a lâmina, entrelaçando as almas da água com a força ancestral da espada, em um ritual que ecoaria através das eras.
"É possível sentir..." Ele podia sentir a magia pulsar em sua alma, acariciando sua pele com dedos etéreos, imbuidos de poder. O lago de Avalon, banhado e fortificado com as almas das Níades e a Escolion, além de já possuir uma essência mágica ancestral por ser um dos primeiros da criação, havia se tornado um verdadeiro manancial das artes místicas.
— Pensar que sou um dos poucos capazes de vislumbrá-lo… — murmurou, entre sorrisos.
Era quase uma certeza que o lago permaneceu em segredo, talvez protegido por uma barreira ou ilusão que ocultava sua visão aos mortais. Era demasiadamente perigoso permitir que certos indivíduos, com certos objetos, se aproximassem. Para os desavisados, tudo que viam eram árvores, uma paisagem monótona e desprovida de mistério.
— Mas graças a você… — Contemplou o colar.
Foi por intermédio do colar de Brisingamen que ele alcançara aquele refúgio encantado, pois parecia que a relíquia possuía o poder de desvendar ilusões e transpor algumas barreiras.
Depois de refletir sobre isso, seguindo alguns conselhos compartilhados por um colaborador em comum, abaixou o colar em direção à água, deixando-o submergir nas profundezas de Avalon. Imediatamente, todo o lago se iluminou intensamente, ofuscando a visão de Dorni, que teve que fechar os olhos. O brilho intenso foi gradualmente diminuindo até que tudo voltou ao normal. Erguendo o colar, percebeu que uma pequena aura o envolvia.
Ao aproximar o colar do pescoço e vesti-lo, ele se levantou. Parecia que nada tinha mudado, até que seu corpo começou a formigar intensamente, como se milhares de insetos percorressem-lhe a pele. O coração então disparou, faltava-lhe o ar e ele começou a hiperventilar, era como se estivesse sofrendo um ataque cardíaco. O vento aumentou sua fúria, as árvores balançavam violentamente e as águas do lago se agitavam como o mar em uma tempestade.
— O que está acontecendo… — Dorni caiu de joelhos, agarrando-se ao peito, sentindo o coração quase romper sua caixa torácica. — Droga...
Ele sentia a vida escapando, o coração prestes a parar e a respiração cada vez mais difícil. De repente, o uivo do vento cessou, e as águas se acalmaram. A mente clareou, o olhar focou e o coração se estabilizou.
Dorni se ergueu, ainda atordoado, e olhou ao redor. Tudo parecia normal, exceto pelo persistente formigamento que agora se limitava às suas mãos. As examinou, e de repente sua visão mudou, permitindo-lhe ver através delas, como se estivesse observando a energia mágica fluindo por seu corpo. Ao fechar e abrir a mão, percebeu que, apesar do formigamento, ela ainda funcionava normalmente.
"Isso é o que significa ter magia ativa?" Dorni não nasceu com nenhuma classe física, muito menos mágica, o que o impedia de manipular a mana do próprio corpo. A única forma de mana que ele possuía era a passiva, que fluía por todo o corpo, sendo um energia vital.
Dorni sentiu como se a mana dentro dele estivesse ansiosa para se libertar. Sem compreender completamente, ele estendeu a palma da mão para a frente e formou uma pequena esfera semi-translúcida de mana, disparando-a em direção a uma árvore do outro lado do lago. O impacto não causou danos significativos, apenas deixou uma leve marca no tronco.
"Então é verdade..." sorriu, tocando o colar.
Ele começava a compreender ou pelo menos a deduzir alguns dos poderes do colar. Parecia que tinha a capacidade de tornar as pessoas ao seu redor mais suscetíveis à sua influência, como se fossem cativadas por sua oratória, beleza e outros atributos semelhantes, isso foi comprovado quando todos os soldados optaram por trair seu próprio reino e segui-lo. Além disso, permitia-lhe discernir ilusões e transpor certas barreiras, como ele havia testemunhado ao atravessar uma barreira frágil de Delilian.
Ou pelo menos, suspeitava que o colar tivesse intervindo para impedir sua morte em situações como aquela vez em Lidenfel, quando Bleu lançou um ataque que deveria tê-lo atingido, mas ele e Erne saíram ilesos, como se o golpe nunca os tivesse alcançado, algo que parecia impossível.
Se esse fosse o caso, seria uma arma poderosa, capaz de alterar a própria realidade. No entanto, Dorni não queria arriscar testar os limites. O colaborador havia mencionado que Brisingamen ainda não alcançara o potencial pleno, em parte devido à óbvia interferência da barreira que afetava tudo vindo de fora desde sua construção.
Além disso, o colar carecia de energias místicas. A única maneira de recarregá-lo era pela vontade da própria deusa da magia, Freya, ou em locais de alta concentração como o lago Avalon. Agora, recarregado, ainda não estava em sua plenitude de poder devido à influência da barreira, mas já demonstrava mais vigor, liberando alguns dos atributos restantes. Um deles era capacitar aqueles desprovidos da habilidade de manipular mana a utilizá-la plenamente.
— E com isso... Estou mais próximo de... Acabar com aquele desgraçado — sussurrou, com o olhar mergulhado na própria mão, o semblante tenso, refletindo sua determinação. — Mas ainda preciso de muito mais força...
Então, o chamado de Jarvan interrompeu-lhe os pensamentos, e, tendo alcançado seus objetivos, começou a fazer o caminho de volta para o acampamento. À medida que deixava o lago para trás, este se transformava em uma mera ilusão de árvores, como se nunca tivesse existido.
Entre as densas árvores, escondeu o colar dentro da própria armadura leve, aproximando-se então do acampamento. Seus olhos se fixaram no homem de cabelos loiros e olhos âmbar, Jarvan, que parecia preocupado.
— O que houve? — perguntou Dorni, aproximando-se.
— É melhor o senhor ver por si mesmo — respondeu Jarvan, com seriedade.
O jovem general ficou confuso, mas assentiu com a cabeça e seguiu o comandante que tomava a dianteira. Passaram pelo acampamento, observando os soldados organizando e guardando suas coisas para partir, até chegarem ao morro de frente para a cidade Citra.
Ao alcançar o topo do relevo, deparou-se com o que antes fora uma cidade agrícola próspera, agora reduzida a escombros. Os muros cederam, expondo o caos que havia se infiltrado e consumido a cidade por dentro. Não sobrava pedra sobre pedra, nem alma viva.
— Isso confirma que Túlios pereceu na batalha — declarou Dorni, indiferente diante da devastação.
— Concordo, mas não era isso que queria te mostrar, senhor— respondeu Jarvan, apontando para o norte, na direção de uma estrada que se estendia até a capital. — Olhe ali.
O jovem pegou a luneta e a abriu, mirando na direção indicada. Lá, avistou um enorme exército ostentando as bandeiras e cores de Aldemere, avançando em direção à cidade arruinada.
— Provavelmente vieram para terminar o serviço, exterminando os sobreviventes — sugeriu Dorni, fechando a luneta. — Isso, no fim das contas, apenas evidencia o que deveríamos ter feito há tempos: recuar.
— O senhor acha que eles virão até aqui?
— Não sei, podem ter batedores... — Coçou a testa, pensativo. — E tenho a leve impressão de que eles não irão parar por aqui.
Jarvan arregalou os olhos e virou-se para o jovem, encarando-o com uma expressão de surpresa e preocupação.
— O senhor acha que eles irão avançar até Reven? — perguntou, com a voz carregada de inquietação.
— É a conclusão mais plausível a se tirar. A destruição da cidade foi apenas um passo em um plano muito mais amplo — respondeu, mantendo um tom neutro, mas a decepção transparecia em seu semblante. — Eu pensei que já tivesse percebido isso...
— Eu havia considerado algumas possibilidades deles realizarem algo maior, mas jamais imaginei que aconteceria tão rapidamente, ultrapassando os limites de Citra...
Dorni observou-o por um momento, com um olhar contemplativo, e desviou a atenção para a cidade, deixando escapar um breve sorriso antes de se virar para partir em direção ao acampamento.
— Vamos — chamou o jovem. — Seja como for, precisamos nos mover antes do pôr do sol.
— Sim, senhor — respondeu Jarvan, começando a segui-lo, adotando um olhar pensativo. — Ainda assim, não consigo compreender como confiam tanto em um plano como esse…
— Realmente, foi e é um plano arriscado… mas todas as estratégias, no final das contas, têm seu grau de risco — concordou Dorni.
— Mas este ultrapassou o nível de apenas arriscado. Um único erro poderia levar tudo à ruína — ponderou Jarvan.
Ele era incapaz de conceber a confiança depositada em um plano tão delicado, no qual a falha de um único elemento poderia desencadear o fracasso. Por exemplo, se Túlios não tivesse sido arrogante e decidisse não invadir, seguindo os conselhos de Dorni. Ou se, por acaso, conseguissem deter a bruxa ou abrir os portões para fugirem. Eram muitos os fatores que precisavam se alinhar para que a estratégia funcionasse.
— O que você não está considerando — começou Dorni, num tom moderado. — É que todo plano "A" tem um plano "B".
— Espera — Jarvan arqueou uma sobrancelha. — O senhor acha que eles tinham uma estratégia alternativa?
— Dizer com certeza é impossível, mas como um general que valoriza o planejamento e a previsão de ações, eu teria elaborado uma ou duas estratégias alternativas — respondeu Dorni. Ele então inclinou a cabeça para o céu, observando as nuvens brancas pontilharem a infinidade azul. — E imagino que, ao contrário de Re'loyal, Aldemere conte com bons generais.
O comandante observava-o caminhar com um brilho de admiração nos olhos. Cada palavra do jovem provocava uma mistura de certeza e dúvida em Jarvan. Por um lado, o jeito como falava sugeria uma experiência militar que só se adquire ao longo de décadas; o que botava em cheque a idade que o próprio tinha. E a certeza: não importava o que acontecesse, Jarvan não hesitaria em seguir aquele jovem general.
Ao retornarem ao acampamento, aceleraram os preparativos para a partida. Jarvan ordenou que alguns homens ficassem de olho nas tropas de Aldemere, instruindo-os a relatar imediatamente qualquer sinal de movimento inimigo. Dorni compartilhava do receio de serem pegos desprevenidos; estar sempre à frente era essencial em tempos de guerra.
Em seguida, Jarvan selecionou os cento e cinquenta prisioneiros de guerra que seriam libertados. A decisão surpreendeu o contingente; alguns desdenharam da ideia e outros demonstraram indiferença, como previra Jarvan.
Dorni refletiu sobre como havia acertado em sua escolha de nomear Jarvan como primeiro-comandante. Ele era a pessoa que melhor conhecia os homens do grupo, e, apesar de aparentar ser apenas um pobre homem jogado na guerra, possuía notáveis habilidades analíticas e uma capacidade de aprendizado rápida.
Enquanto observava Jarvan se movimentar pelo acampamento, sorriu ao pensar sobre sua própria reflexão. Era estranho referir-se a ele daquela maneira, considerando que o comandante era pelo menos dez anos mais velho que o jovem.
Com todos os preparativos concluídos, Dorni montou em seu cavalo e reuniu os soldados em uma formação que garantiria uma viagem rápida sem expô-los demasiadamente ao perigo.
Um grupo de cavaleiros estava posicionado próximo a ele, formando a escolta pessoal do general. Eram homens determinados, prontos para sacrificar a própria vida em nome de Dorni.
— Você. — Apontou com os olhos para um dos cavaleiros. — Desça do cavalo e entregue-o a Jarvan.
O soldado obedeceu sem hesitar, abandonando seu cavalo e levando o animal marrom até Jarvan, que prontamente o montou.
— Senhor, vamos seguir rumo ao leste, pelo mesmo caminho que viemos? Ou devemos adotar uma rota diferente? — indagou o comandante.
— Optaremos por uma rota alternativa. O terreno aberto pelo qual viemos não seria adequado para avançarmos com seiscentos homens. Nem preciso dizer que seria uma armadilha expor nossas tropas assim.
— O que sugere que façamos, então, general? — indagou o cavaleiro.
— Usaremos a mata. Esta floresta corta grande parte do território, creio eu, e é densa o suficiente para nos ocultar — respondeu Dorni, dirigindo seu olhar para o cavaleiro. — No entanto, precisamos estar cientes do que ocorre à nossa frente antes que nosso grande contingente chegue, compreende? Por isso, reúna os dez cavaleiros mais experientes do pelotão e ordene que avancem sempre um quilômetro à nossa frente. Se avistarem qualquer sinal de estranheza, devem retornar imediatamente e nos informar.
Jarvan prontamente acatou as ordens e cavalgou pelo contingente reunindo os dez cavaleiros selecionados. Enquanto isso, Dorni posicionou-se à frente dos soldados e preferiu uma abordagem franca:
— Como devem estar cientes, para Aldemere, todos nós morremos dentro daquelas muralhas. Por isso, a discrição em nossos passos de volta para casa será nossa maior aliada. Sendo assim, utilizaremos a floresta para nos camuflar, de modo que não sejamos avistados e nossos passos sejam abafados. Queria apenas destacar os pontos positivos deste plano. Contudo, não posso ignorar os desafios que enfrentaremos. Como, por exemplo, a densidade da mata que será nossa aliada, mas também nosso maior obstáculo. Manter a formação enquanto avançamos será difícil, senão impossível.
Todo o pelotão fixava os olhares nele, concentrados e sem desviar a atenção por nada, absorvendo cada palavra com atenção.
— Além disso, a floresta não é só flores, literalmente. Existem muitos perigos aos quais vocês não foram expostos no caminho até aqui, pois mal adentramos as profundezas da mata; árvores cujo simples toque libera toxinas mortais que penetram a pele ou causam urticárias severas, algo que, garanto, vocês não vão querer experimentar na pele. Como também existem insetos tão pequenos que mal serão perceptíveis, mas que possuem venenos letais. Portanto, evitem se apoiar em qualquer superfície e, ao menor sinal de um inseto, esmaguem-no imediatamente. Mantenham os olhos abertos, os ouvidos atentos e os sentidos aguçados. Somente assim alcançaremos a segurança!
Dorni não ergueu a espada para evocar um urro coletivo, afinal, os inimigos estavam a pouca distância, e um grito em conjunto de seiscentas pessoas certamente seria ouvido. Ele virou seu cavalo na direção que seguiria e finalizou as instruções:
— Seguiremos para leste. Prestem atenção às próximas ordens. Como mencionei antes, manter a formação será praticamente impossível. Ainda assim, mesmo que estejamos desorganizados, mantenham-se próximos. — O jovem ergueu a mão para o alto, formando um "V" com os dedos. — Seguiremos com a formação "V Cheio". Aos cavaleiros nos flancos: em determinados trechos onde não for viável montar a cavalo, desçam e guiem os animais pelas rédeas. No entanto, assim que possível, remontem. Vocês são nossa principal segurança, com a melhor visão dos arredores.
O jovem começou a avançar, e os soldados logo o seguiram, adotando a formação. A formação conhecida como "V Cheio" consistia em um líder formando a ponta, com os soldados atrás formando as pernas do "V", enquanto os cavaleiros ocupavam os flancos e os soldados marchavam no meio, preenchendo o espaço interno, referido como “Cheio". Essa formação proporcionava segurança aos soldados a pé e uma melhor cobertura dos arredores, graças aos cavaleiros, que tinham uma visão mais ampla por estarem montados nos cavalos.
Rapidamente, Jarvan alcançou Dorni, e ambos observaram os homens designados para seguir um quilômetro à frente, avançando a cavalo. Aquela seria uma longa marcha, exigindo grande esforço coletivo e uma habilidade excepcional na gestão do grupo. Certamente, seria um teste para o jovem general.