Volume 2

Capítulo 101: O Discurso

Do alto do morro, Dorni observava a cidade Citra desmoronar sob os círculos mágicos, invocados pela bruxa misteriosa, enquanto quase todo o batalhão, incluindo o general Túlios, estava aprisionado lá dentro. Dorni não demonstrava qualquer intenção de ir ajudá-los, permanecendo de braços cruzados sobre o cavalo.

— Era realmente estranho, a falta de reação de Aldemere durante quase cinco anos — comentou Dorni para o homem ao seu lado. — Não concorda... Qual é mesmo o seu nome?

— Jarvan, senhor Dorni — respondeu Jarvan, que atuava como porta-voz do batalhão que optara por ficar com Dorni. — E sim, concordo com o senhor. No entanto, será que eles passaram esses cinco anos apenas preparando esses círculos?

— Talvez sim, mas imagino que houve muitos passos até chegarem a instalá-los — respondeu Dorni, coçando a barba que começava a se formar em seu queixo. — Ainda assim, fico surpreso com a coragem de Bartolomeu, explodir a própria cidade não é para qualquer um.

Jarvan ouvia em silêncio, mas algo o perturbava; às vezes, lançava olhares discretos para Dorni. Finalmente, respirou fundo, tomando coragem para perguntar:

— Com todo respeito, senhor, mas não sente nada ao ver tudo isso? Nem pelos homens que lutaram ao seu lado, nem pelos cidadãos que morreram e morrerão nessa loucura?

— Ora, pensei que os soldados de Re'loyal fossem doutrinados a não se importarem com a vida dos que não são de sua nação...

— De fato, senhor, somos doutrinados a não ter estima por seres que não pertencem à nossa nação... — Jarvan abaixou a cabeça, visivelmente abatido. — Mas mesmo assim, alguns de nós aprenderam, mesmo que minimamente, a distinguir inocentes, dos prováveis escravos e dos soldados que não merecem nossa atenção…

— Isso que você disse é bastante distorcido... — Ele não podia negar que estava curioso para saber quais eram os critérios para definir os prováveis escravos, especialmente após testemunhar em Reven várias pessoas sendo escravizadas sem distinção. — Mas não importa. A resposta para sua pergunta é um claro "não". Já vi muita morte e desgraça em minha vida e, infelizmente, graças a isso, acabei me acostumando. É triste, mas o hábito trouxe-me a indiferença pela vida alheia; mato e vejo morrer até o mais inocente dos seres sem qualquer remorso. Principalmente depois de…

Jarvan percebeu a hesitação de Dorni ao fim da frase, mas optou por não questionar, respeitando os limites. No entanto, com essa resposta, compreendeu que, no fim das contas, aquele jovem general podia ser tão cruel quanto o mais velho e poderoso dos tiranos. Alguém que, sem dúvida, não pouparia esforços para alcançar seus próprios objetivos, mesmo que tivesse que usar as pessoas em seu caminho. Talvez devido à sua criação distorcida em Re'loyal, Jarvan sentiu-se ainda mais compelido a seguir Dorni, sentindo uma satisfação perturbadora nessa decisão.

— Entendo. Senhor, se me permite sugerir, talvez seja prudente recuarmos, acho que isso é apenas o prelúdio de um plano maior. 

Dorni o observou com um leve brilho nos olhos, expressando certa satisfação, e então virou seu cavalo, seguindo em direção ao batalhão, a lentos trotes.

— E você, Jarvan, sente algo ao testemunhar tanta morte? Tanto de inimigos quanto de aliados?

— Eu... —  Caminhando ao lado do cavalo do jovem general, ele abaixou a cabeça, cerrando os punhos. — Isso me frustra, mas ainda assim sinto pena das pobres almas perdidas...

Dorni cavalgava com uma postura relaxada, lançando-lhe um olhar de soslaio, até ouvir toda a frase, momento em que voltou sua atenção para frente, com um pequeno sorriso contemplativo, como se estivesse observando o horizonte mais distante.

— Com o tempo, Jarvan, assim como eu, você também perderá esse sentimento — O homem o encarou com um brilho nos olhos, mas suas próximas palavras fizeram as sobrancelhas de Jarvan se arquearem: — Mas até lá, seja minha bússola moral. Como eu disse, já não sinto mais nada pela vida alheia, e por vezes isso pode me levar a tomar decisões equivocadas. Seja você aquele que me dê um toque e me mostre que talvez eu esteja errado.

— I-isso significa que devo ser seu... — Jarvan voltou a olhar para frente, desviando o olhar para baixo.

— É exatamente o que você está pensando. Será meu primeiro-comandante — Dorni puxou as rédeas, acelerando o trote do cavalo enquanto concluía: — Prove-se digno da minha confiança, e se tornará meu braço direito.

Com isso, o jovem general deixou Jarvan para trás, ainda atônito com o que acabara de ouvir. Em breve, Dorni estava de frente para os seiscentos homens que ainda refletiam se deviam segui-lo.

— Escutem! O que presenciamos hoje pode ser doloroso para alguns e indiferente para outros. Não julguem a moral daqueles ao seu lado.

O batalhão trocou olhares, alguns mais abatidos do que outros. Muitos se assemelhavam a Jarvan, sentindo compaixão pelas almas alheias. Dorni chamou a atenção de volta para si e prosseguiu:

— Porém, quer gostem ou não, triste ou não, este dia nos ensinou uma valiosa lição. Homens ignorantes trazem sua própria desgraça, e a precaução é nossa maior aliada em tempos de guerra. — Dorni havia absorvido alguns truques com Dalian, especialmente no uso das palavras, e assim continuou: — E como podem perceber, aqueles no topo não se importam com suas vidas. Se vivem ou morrem, é um tanto faz. No fim, não passam de números para eles, números que conquistam outros números...

Os soldados pareciam absorver cada palavra, alguns baixando a cabeça, outros cerrando os dentes e estreitando o olhar. Era exatamente a reação que o jovem general esperava, então prosseguiu:

— Mas saibam que para mim, cada um de vocês é um indivíduo único, um ser humano que merece consideração. Podem duvidar, mas não podem negar que tentei salvar seus companheiros ao alertar o tolo do general Túlios. 

Os homens que antes mantinham os olhares estreitos suavizaram-nos, cativados pelas palavras de Dorni; aqueles com as cabeças baixas as ergueram, e os que rangiam os dentes cessaram. Todos observavam e escutavam o jovem general com admirável atenção.

— Agora, escutem-me com toda a atenção que puderem! Dou-lhes duas alternativas! Debandem do exército aqui e agora — Os soldados olharam-no incrédulos; desertar era considerado traição, punível com a morte. No entanto, um general estava oferecendo essa possibilidade, e muitos inclinavam-se a aceitar. Dorni, ciente disso, prosseguiu com seriedade: — Não serão punidos, muito menos caçados. Mas saibam que ainda estão em território inimigo, e, neste mês de avanço, causamos verdadeiro caos, então, provavelmente, patrulhas estarão por toda parte. Se é isso que desejam, sintam-se livres para tentar sobreviver. Mas lembrem-se de que jamais poderão retornar às suas casas em Re'loyal.

No fim, era uma escolha extremamente arriscada. Podiam evitar as punições dos próprios aliados, mas estavam, ainda assim, em meio a um país estrangeiro, em guerra. Era praticamente uma sentença de morte. E, para piorar, jamais poderiam voltar a Re'loyal, pois, embora Dorni pudesse protegê-los, ao colocarem os pés na nação, seriam reconhecidos e tratados como traidores. Diante de tudo isso, muitos que anteriormente estavam inclinados a aceitar a proposta hesitaram e começaram a reconsiderar. Foi nesse momento que Dorni lançou sua segunda carta:

— Agora, ouçam a segunda e melhor opção! Sigam-me! Como já mencionei, me importo com cada um de vocês aqui, e após o que testemunharam hoje, sabem que tenho a capacidade de liderar com maestria. Não os conduzirei à morte como aquele tolo fez — Dorni olhou para Jarvan, que se aproximava, e então voltou sua atenção para o exército. — Mas agora vem a parte crucial. Se aceitarem essa proposta, não serão mais parte do exército de Re'loyal.

Todos ficaram confusos, pois aquelas palavras pareciam contraditórias e até mesmo traiçoeiras. Dorni, percebendo a perplexidade em seus rostos, continuou, enquanto uma leve brisa fazia seus cabelos dançarem ao vento:

— Vejo que minhas palavras geraram confusão. Permitam-me esclarecer: nunca servi e nunca servirei Re'loyal, não importa o que digam. Meu único compromisso é com os desejos de Dalian, e somente isso. Em outras palavras, se optarem por me seguir, estarão sob minha liderança, formando um exército pessoal. E com isso, diferentemente de quando vocês dão suor e sangue para conquistar uma cidade a pedido de reis que não saem de seus tronos, e não recebem nada em troca além de traumas e, talvez, uma pensão de invalidez. Comigo, vocês receberão os espólios de guerra, serão recompensados de acordo com os serviços prestados, e terão muitos. No fim, com minha liderança e suas habilidades, juntos enfrentaremos qualquer adversário, e ninguém será páreo para nós! Eu repito, ninguém!

O batalhão ficou paralisado, parecendo ponderar sobre suas opções. Com um sorriso determinado, Dorni concluiu:

— O que me dizem!? Voltar para Re'loyal e receber novas ordens de velhos que não lutam, para voltarem à luta? Ser comandados por generais arrogantes que mal sabem montar uma estratégia? Ou vir comigo, lutar ao meu lado, sobreviver sob meus planos e deixar nossos nomes marcados na história!? Vamos! — Dorni ergueu o punho ao céu, montado em seu cavalo, e começou a trotar de um lado para o outro. — Me digam! O que desejam!?

Um por um, cada homem estufou o peito, firmando o semblante enquanto Dorni continuava a trotar de um lado ao outro, gritando. Punho após punho, espada após espada, erguiam-se ao mais alto céu.

— VIVA! VIVA AO GENERAL DORNI! — Seiscentos soldados gritaram em uníssono, por momentos sobrepondo o som das explosões na cidade logo atrás.

O jovem general aproximou-se de Jarvan, que sorriu alegre ao ver tamanha comoção.

— Foi um belo discurso, senhor. Longo, mas belo...

— Precisava ser longo. Foi conduzido exatamente como eu queria...

— Como assim?

— Aproxime-se... — Jarvan obedeceu, e Dorni inclinou-se em direção a ele no cavalo, começando a sussurrar: — Eu os conduzi a uma única decisão. Desde o início, sabia que aceitariam a segunda proposta...

O mais novo comandante arregalou os olhos perplexo, mas se conteve diante do batalhão que comemorava a nova fase que estavam entrando.

— Poderia me explicar, senhor?

— Lembre-me disso quando estivermos a sós, em um local seguro. — Dorni sacou a espada e retomou a compostura. — Vou lhe revelar o segredo para manipular alguns homens desafortunados. — Ele avançou, suas palavras ecoando pelo campo, concluindo com firmeza: — Ah, mas não se engane, não sou como certos magos por aí, que manipulam sem se importar com ninguém. Realmente, dou valor àqueles que me seguem e são leais a mim.

O jovem general cavalgou até o centro da celebração, erguendo a espada junto ao exército. Era mais uma artimanha de sua estratégia: misturar-se entre os subordinados para criar a sensação de proximidade, como se estivessem no mesmo patamar de importância. Dorni queria que eles se sentissem reconhecidos como iguais, não apenas como soldados sob o comando de um general distante.

Jarvan observava-o admirado, absorvendo cada palavra dita. O discurso apenas o fascinava mais pelo jovem general.

Após a celebração, Dorni adentrou a floresta logo atrás do morro, onde servia de acampamento improvisado para o agrupamento. Lá, havia alguns prisioneiros das vilas e fortalezas que conquistaram no caminho para Citra.

Muitos trabalhavam ajudando a montar as barracas de madeira e folhas, cozinhando, limpando as armaduras e espadas ensanguentadas ou restaurando-as. Eram homens e mulheres, desde adolescentes até adultos próximos a idade avançada. Muitos eram soldados que acabaram se tornando prisioneiros de guerra, enquanto outros eram selecionados por possuírem habilidades úteis, como habilidades culinárias.Cada rosto exibia uma expressão única, mas todas compartilhavam a mesma raiz de desesperança. 

Muitos já haviam resignado-se ao destino desde o momento em que foram capturados, tornando-se meras peças que obedeciam a ordens apenas para prolongar suas vidas. Contudo, valeria a pena viver como escravo? Alguns acreditavam que sim, enquanto outros... outros optavam por tirar o bem mais precioso, suas próprias vidas, mesmo que isso fosse visto como errado, pecado e almas suicidas não fossem aceitas em nenhum lugar.

Não era raro encontrar corpos sem vida onde os cativos eram mantidos, geralmente nos cantos mais sombrios e desprotegidos. Muitos exibiam cortes nos pulsos, gargantas ou sinais evidentes de envenenamento. A segurança foi intensificada na tentativa de conter essas tragédias.

E ali estava Dorni, observando atentamente o movimento das pessoas ao redor. Alguns traziam água para apagar as fogueiras, recolhiam objetos ou cuidavam dos cavalos dos cavaleiros, fornecendo-lhes água e feno. Embora os cavaleiros preferissem realizar essas tarefas eles mesmos, sentindo uma conexão especial com seus animais.

— Jarvan, venha cá — chamou pelo comandante, que prontamente atendeu ao chamado. — Já conseguiu contabilizar quantos partiram?

— Sim, senhor... Nenhum, absolutamente nenhum — respondeu com um amplo sorriso. — Ninguém abandonou nossas fileiras. Seu discurso realmente teve um impacto significativo.

— Esperava que ao menos alguns optassem por partir — refletiu Dorni, cruzando os braços sobre o peito. — Porém, é um alívio saber que errei. No entanto, isso gera um grande problema.

— Posso imaginar qual seja, senhor... Muitos homens para avançarmos furtivamente, mas poucos para enfrentarmos um grande exército, caso necessário…

Dorni concordou com um aceno de cabeça. Com seiscentas pessoas, mais os duzentos cativos, atravessar a densa mata enquanto se esgueiravam na esperança de passar despercebidos pelas patrulhas era uma tarefa árdua. E se encontrassem um exército muito maior em movimento, os seiscentos soldados não teriam capacidade total de enfrentá-los. Provavelmente teriam que sacrificar alguns homens como isca e fugir pela retaguarda.

— Bem, precisamos reduzir nosso contingente... — começou Jarvan, observando os escravos que continuavam a se mover de um lado para o outro. — Vamos libertá-los e permitir que ajudem os vivos em Citra...

— Libertar? Nunca imaginei um loyano propondo isso... — Dorni ponderou, levando a mão ao queixo. — Bem, iremos precisar acelerar o ritmo, e muitos dos cativos estão feridos e maltratados, consequentemente lentos. É, realmente, seria melhor deixá-los para trás mesmo. 

Jarvan sorriu, sentindo a suave brisa que balançava as folhas das árvores e acariciava sua pele. Ele escutava os murmúrios dos soldados enquanto almoçavam antes da partida, e os relinchos dos cavalos sendo bem cuidados.

— Então iremos libertá-los, senhor?

— Antes, preciso que me informe sobre as reações dos soldados diante dessa decisão. — Dorni indagou, observando um escravo transportando uma panela quente de comida para outro canto. — Não posso arriscar perder a confiança deles que, já está baixa, por uma atitude benevolente como essa.

— Muitos não se importam com a questão da escravidão; claro, haverá aqueles que o olharão com desconfiança, achando que está sendo excessivamente generoso. Mas a maioria provavelmente não se importará. — Jarvan olhou para alguns outros soldados enquanto comiam e prosseguiu: — No entanto, se me permite uma sugestão revisada...

— Já sei o que vai dizer — interrompeu Dorni, dando alguns passos para trás e encostando-se em uma árvore. — Vamos fazer assim: reúna todos os escravos e separe cinquenta que estejam em boas condições, tanto física quanto mentalmente. Os outros cento e cinquenta podem ser libertos.

— Entendido! — concordou Jarvan. — Farei isso imediatamente, senhor!

— Ah, e diga aos escravos que quando nos aproximarmos de Reven, iremos libertá-los também.

O comandante ficou momentaneamente surpreso, não esperava uma ordem tão generosa, após já ter aceito libertar tantos, vindo de Dorni.

— Sério, senhor?

— Como disse, não me importo com a escravidão em si; se outros países a praticam ou não. Mas não é como se eu gostasse de tê-la em nossas fileiras. — Ele baixou o olhar, parecendo momentaneamente abatido. — Vim de um povo que lutava contra a opressão, talvez isso tenha me deixado um pouco mais sensível a essa questão.

Esta foi a primeira vez que Jarvan ouviu algo sobre o passado do jovem general, que parecia constantemente tentar fugir dele, alimentando certo ódio por eventos passados. Ele sabia que Dorni era um giganoide, não apenas por seu tamanho, que não era tão imenso, mas já bastante evidente. No final das contas, ficou feliz em ver o rapaz finalmente se abrindo. 

Jarvan certamente era mais velho que ele, com seus trinta e sete anos, e sentia um certo dever em ajudar Dorni no que fosse, apesar de acabarem de se conhecer.

Dorni ficou para trás, observando ao redor, e começou a se distanciar, adentrando mais a floresta. Parecia saber exatamente para onde estava indo, e, certificando-se de que não estava sendo seguido, passou por algumas moitas até chegar ao local desejado.

Lá estava um pequeno lago escondido entre as árvores, onde eles normalmente buscavam água era num córrego do outro lado. Ou seja, ninguém havia descoberto esse lago ainda, mas por algum motivo, o jovem general conhecia sua localização exata. Ao se aproximar, se abaixou e tocou a água fria.

— Pois bem... agora... — Ele colocou a mão por baixo da armadura leve e puxou o colar de Brisingamen em seu pescoço, dado pela deusa Freya há muito tempo atrás. — É hora de obter mais poder... Para finalmente ficar a poucos passos de ter seu sangue em minhas mãos... Alaric.



Comentários