Volume 2

Capítulo 100: Autocondenação

Em meio a uma extensa planície verdejante repousava Citra, uma cidade sob o domínio do reino de Aldemere. Rodeada por vastas plantações que se estendiam pelas terras planas, a cidade se destacava como um ponto de tranquilidade na paisagem. No alto de um morro, Dorni cavalgava, observando atentamente a cidade através de sua luneta.

— Está estranhamente silencioso... — comentou ele para o homem ao seu lado, enquanto estudava a paisagem. — O que você acha?

O homem ao lado, parecia um veterano de olhos profundos e calva reluzente, trajando uma imponente armadura prateada, indicando sua alta posição no exército.

— Devem ter percebido nossos movimentos e se refugiado atrás dos muros como covardes — respondeu, com uma certa resignação.

Dorni lançou-lhe um olhar irônico, claramente duvidando das palavras do companheiro, e voltou a atenção para a luneta. Ele observou as plantações abaixo, desprovidas de qualquer sinal de atividade humana, como se tivessem sido abandonadas. 

Então, dirigiu o olhar para as imponentes muralhas de pedra cinza, onde apenas alguns poucos homens patrulhavam de um lado para o outro, em número insuficiente para uma defesa eficaz. A teoria de que haviam avistado suas movimentações perdia força, pois se fosse o caso, teriam reforçado as defesas.

Essa especulação foi completamente descartada quando Dorni observou os portões escancarados da cidade, guardados por apenas dois ou três soldados.

— Acredito que não... — respondeu Dorni, fechando a luneta e fixando seu olhar no homem ao lado. — Há algo sendo urdido nas sombras.

Sem aguardar resposta, Dorni dirigiu seu cavalo até o outro lado do morro, onde o destacamento aguardava suas ordens. O local proporcionava uma cobertura ideal, ocultando-os dos olhares indiscretos dos sentinelas de Citra. 

O contingente era imponente, composto por cerca de dois mil homens, cada um desempenhando seu papel específico: quinhentos cavaleiros, seiscentos arqueiros e o restante formado por soldados regulares, além de vinte magos estrategicamente posicionados. 

Todos estavam dispostos em uma formação cuidadosamente planejada, com os cavaleiros flanqueando os lados, os soldados regulares no centro, os arqueiros atrás e os magos entremeando-se entre eles. 

— Ouçam! — exclamou Dorni, atraindo a atenção de todos os homens que se voltaram para ele. — Iremos aguard-

— O que você pensa que está fazendo!? — interrompeu-o abruptamente o outro homem a cavalo, lançando-lhe um olhar incisivo.

— Como assim, General Túlios? Agindo com prudência — apesar de ter sido interrompido em meio aos seus soldados, Dorni manteve um tom sereno em sua voz. — Não sabemos quais são os planos deles. Avançar sem informações adequadas pode custar caro…

O jovem havia acompanhado seu antigo mentor e general Erne em invasões o suficiente para absorver a lição de nunca atacar o desconhecido, de nunca avançar sem um plano meticuloso em mãos. E ainda assim, mesmo uma mente estratégica como a de Erne cometeu erros que custaram muitas vidas, apesar dos planos e precauções meticulosos. No entanto, Túlios não parecia compartilhar dessa visão cautelosa e continuava a desafiá-lo. Após ser contrariado repetidamente, Dorni, já estressado, teve uma ideia.

— Sabe, tenho uma ideia... — Ele dirigiu-se aos soldados, que o observavam atentamente. — Tragam-me um homem e uma mulher dos prisioneiros. Preferencialmente, escolham aqueles que têm filhos.

— O que está planejando? — indagou Túlios, mas não obteve resposta; restou-lhe apenas esperar e observar.

Ao fundo do destacamento estendia-se uma vasta floresta, onde no centro encontrava-se um acampamento improvisado. Ali, estavam os cativos capturados das vilas que Dorni invadira e, por vezes, incendiara, durante a campanha até Citra, que durou um mês.

Após alguns minutos, dois soldados surgiram, arrastando um homem e uma mulher cujas correntes prendiam-se aos seus pescoços. Ao alcançarem o cavalo de Dorni, os soldados lançaram os prisioneiros ao chão como se fossem bonecos de palha. Os dois caíram de bruços, parecendo incapazes de se levantar.

— Trouxeram-me dois moribundos? — perguntou, visivelmente exasperado.

Os soldados estremeceram, apressando-se em se justificar:

— N-não, general... — gaguejou o primeiro. — Eles estão bem! Conseguem andar, estão apenas dramatizando!

— Bem? — Dorni observou os dois prisioneiros, claramente debilitados e marcados por escoriações e hematomas. Era evidente que não estavam bem. Ele fitou os soldados com um olhar perspicaz. — Prove-me isso. Caso contrário, usarei vocês dois no lugar desses dois quase moribundos.

O segundo soldado correu na direção do homem caído e se ajoelhou ao seu lado, agarrando seus cabelos.

— Veja, general. Vamos seu imbecil, responda... — Ele puxou os cabelos do homem, forçando a cabeça a inclinar-se. — Ou preferem ver seus filhos sofrerem? Hmm?

As pupilas anteriormente inertes do homem, de repente, fixaram-se no rosto do soldado, o semblante transformado em puro terror.

— Por favor... não machuque meus filhos...

— Então é melhor você e sua esposa se ajoelharem diante do meu general... — O soldado deixou a cabeça do homem cair no chão e ergueu-se. — Rápido! Façam isso, ou eu farei muito mais do que apenas decapitar seus filhos!

Dorni e Túlios observavam sem demonstrar importar-se com o que viam, suas expressões impacientes quase sufocando os dois soldados, que tremiam de medo pela própria vida. Finalmente, com um esforço titânico, o homem reuniu suas últimas reservas de força para se ajoelhar, ajudando a esposa a fazer o mesmo. No fim, os dois estavam aos pés de Dorni, abraçados, temerosos de soltarem-se e caírem novamente.

— Ótimo, agora me ouçam atentamente — pediu o jovem, mantendo o olhar firme. — Vocês dois entrarão na cidade, reunirão o máximo de informações possível e retornarão para nos informar.

— Então, esse é o seu plano? — perguntou Túlios, com desdém. — Em primeiro lugar, como podemos ter certeza de que eles irão voltar? E não nos trairão?

— Bem, temos seus filhos como garantia. E se houver qualquer sinal de traição, eu farei questão de desmembrá-los membro por membro, enquanto ainda estão vivos, e espalhar os pedaços por todo este morro... — Os dois prisioneiros ajoelhados engoliram em seco, ainda tremendo. — Vocês entenderam, não é? Compreendem muito bem as consequências da traição…

Os dois prisioneiros assentiram com a cabeça. Satisfeito, Dorni instruiu os soldados que os haviam trazido para levá-los a fim de trocarem suas vestimentas e vestirem túnicas. Os soldados obedeceram prontamente e partiram. Restava apenas esperar.

Assim, os dois partiram pela estrada em direção à entrada da cidade. Dorni os acompanhou com a luneta enquanto eles passavam pela segurança com certa facilidade e desapareciam dentro dos portões.

O tempo se passou até que finalmente retornassem. As notícias que trouxeram eram reveladoras: dentro das muralhas, as ruas estavam estranhamente vazias, com poucas pessoas transitando, como se muitos tivessem partido antecipadamente. Além disso, havia muito menos soldados patrulhando a cidade.

— Você compreende, general Túlios? — perguntou Dorni, esperando que seu colega idiota percebesse a gravidade da situação. — Há claramente um plano em andamento. Seria prudente informarmos o rei ou alguém de alta patente antes de agirmos.

— Tolice! Quanto tempo você acha que levará para a informação chegar até eles e a resposta voltar para nós? — Ele cruzou os braços, mantendo-se firme em seu cavalo, exibindo um sorriso arrogante. — Você está sendo paranóico haha! Eles provavelmente estão apenas se escondendo ou fugiram com o rabinho entre as pernas!

O jovem levou a mão ao rosto, incrédulo com a ignorância daquele general. Era evidente para ele que tudo isso fazia parte de um plano arquitetado por Aldemere. Nesse momento, Dorni refletiu sobre toda a trajetória que os trouxera até ali.

A campanha durara um mês, embora uma empreitada desse porte normalmente se estendesse por dois a três meses. No entanto, algo não estava certo: todas as vilas e fortalezas que conquistaram até então pareciam estranhamente quase vazias, como se a maioria dos cidadãos e soldados tivesse sido realocados.

Ele já havia ponderado sobre isso por algum tempo, enquanto Túlio, por outro lado, parecia não se importar ou simplesmente era demasiado tolo para suspeitar que havia algo errado, sempre comemorando suas supostas vitórias sem questionar.

"Como alguém assim alcança o posto de general?" Dorni se perguntou, a frustração aumentando. Túlio não possuía qualificações para liderar, sendo burro, impulsivo e péssimo em gerenciamento de grupo, algo fundamental ao comandar um destacamento de dois mil soldados em uma campanha prolongada. Não era surpreendente, então, que desertores surgissem ocasionalmente, apenas para serem punidos com a morte de forma rápida e implacável.

A expressão triunfante de Túlio interrompeu os devaneios de Dorni.

— O que sugere, General Túlio? — indagou Dorni, desistindo de discutir. 

— Atacar! É uma cidade praticamente desprotegida, implorando para ser invadida! — Sem sequer considerar a opinião do jovem, o general avançou à frente do regimento, erguendo um braço em um gesto de liderança. — Meus soldados! Chegou o momento que esperamos por mais de um mês. O dia em que conquistaremos mais uma cidade deste falso império! Hoje, agora, transformaremos Re’loyal na maior potência que este mundo já viu! Quem está comigo, urra como nunca! Quem está comigo, saque suas espadas! Quem está comigo, siga-me!

Túlios virou seu cavalo e começou a galopar morro abaixo em direção aos portões. Logo atrás, embora após um discurso barato, os soldados demonstraram total convicção, bradando em uníssono, sacando suas espadas e avançando atrás de seu general.

— Hoje Re’loyal perderá grande parte de seu exército... — lamentou Dorni, que, longe de ser tolo, optou por ficar para trás e apenas observar. — Vocês não vão?

Atrás dele, cerca de seiscentos homens decidiram não seguir adiante, permanecendo no mesmo lugar. Um deles se adiantou:

— Não, senhor. Confiamos em suas ordens, não nas de Túlios.

— Oh... Vocês sabem que podem ser considerados desertores, não é?

Alguns soldados mais hesitantes estremeceram ao ouvir essas palavras, mas mantiveram seus olhares fixos e determinados.

— Só se Túlios retornar vivo... — replicou o homem, cuja voz servia como o porta-voz dos batalhão, suas palavras carregadas de tensão e ansiedade. — E, com todo o respeito, senhor general, diante dos indícios e de sua postura, receio que isso seja improvável...

— Hm… Talvez você tenha razão. — Dorni, finalmente, virou seu cavalo para encarar os homens. — Pois bem, a partir de agora, vocês serão minha elite, meus leais seguidores. Obedeçam-me, e prometo que não enfrentarão o destino que o tolo do Túlios acaba de encontrar.

A tropa inteira, sem exceção, sorriu. Aqueles que tremiam por medo de serem condenados como traidores e desertores se firmaram, seus olhos refletindo uma mistura de determinação e esperança, enquanto fixavam os olhares no homem montado sobre o cavalo, sua figura agora era como encarnação da própria esperança.

Enquanto cavalgava sobre o morro, os cabelos de Dorni dançavam ao ritmo do vento, conferindo-lhe uma aura de liderança incontestável. Abaixo, galopando pela estrada principal em direção aos imponentes portões da cidade, Túlios liderava uma imponente força de mil e quatrocentos homens, com um destino incerto, impulsionado por sua arrogância e ignorância.

— Avancemos, bravos guerreiros! Mostremos aos frágeis aldemerianos o poder de Re’loyal! — bradava ele, um sorriso confiante adornando seus lábios, convencido da vitória iminente.

Seus seguidores, desde os corajosos cavaleiros até os soldados a pé e os arqueiros ao fundo, respondiam fervorosamente aos chamados, agitando suas armas, demonstrando determinação.

O contra-ataque não tardou a chegar; os defensores da cidade estavam determinados a não permitir uma invasão sem resistência. Flechas começaram a chover das muralhas, mas, para surpresa de Túlios, eram em número tão escasso que mal conseguiam obscurecer o sol. Eram tão poucas que podiam ser contadas em poucos dedos, não ultrapassando a marca de quarenta, em baixa estimativa. Sem a necessidade de elaboradas manobras defensivas, muitas flechas caíram inofensivas ao solo, enquanto outras foram prontamente repelidas pelos soldados.

— Hahaha! Vejam só! Estão tão fracos que mal têm flechas suficientes! A vitória é nossa! — proclamou Túlios, confiante na superioridade de suas forças.

O batalhão voltou a vibrar com fervor, avançando sem técnica ou estratégia. Eram simples homens tolos avançando sem questionar por que tudo estava tão fácil. Não hesitaram quando os soldados que protegiam os portões correram para o interior da cidade, deixando-os escancarados; apenas sorriram maliciosamente. A resistência era nula, as flechas cessaram e ninguém emergiu dos portões. Assim, Túlios... Túlios não hesitou nem por um momento, simplesmente adentrou a cidade.

No interior, encontraram alguns soldados aguardando-os com sede de sangue, e a batalha finalmente teve início. O tilintar das espadas perfurando carne e osso, os cavalos galopando de um lado para o outro, ceifando vidas. Os arqueiros, sem distância para atirar, também avançavam e disparavam à queima-roupa, transformando tudo em um puro e perfeito caos. E, graças à superioridade numérica de Túlios, a vitória parecia inevitável.

No alto do morro, longe do tumulto infernal, Dorni ouvia os eco agonizantes que emanavam da cidade outrora pacífica. Sem demonstrar emoção, apenas ostentando um sorriso falso no rosto.

— Senhor! O que é aquilo? — Exclamou o porta-voz do exército, apontando para os portões.

Dorni forçou a visão e não conseguiu distinguir muito devido à distância; eram apenas alguns pontos pretos. Ele pegou a luneta e mirou na direção indicada, conseguindo enxergar claramente alguns soldados aparentemente fechando os portões.

— Eles estão tentando trancar o batalhão de Túlios lá dentro? — murmurou para si mesmo, quando algo capturou sua atenção: uma figura se aproximava dos soldados que fechavam o portão. Dorni arregalou os olhos de surpresa. — Estou vendo direito? Você, por favor — chamou o porta-voz, entregando-lhe a luneta. — Foque naquela pessoa de vestes distintas junto aos portões e me descreva o que vê.

O soldado, intrigado, aceitou a luneta e direcionou seu olhar para os portões.

— Vejo uma mulher... — começou ele.

— E suas vestimentas, o que elas indicam? — interpelou Dorni.

— Hmmmm, um manto longo escuro com capuz, decorado com vários símbolos estranhos... parece ter vários anéis nos dedos... e talvez um colar com pequenos crânios como pingente…

— O que essas vestimentas te recordam? — Dorni já tinha uma ideia formada sobre a identidade daquela mulher.

— Bruxas... — O soldado fechou a luneta e, com uma expressão perplexa, dirigiu seu olhar para Dorni, montado acima do cavalo. — Mas... Segundo as antigas lendas, essa classe foi extinta durante a última caça às bruxas...

Dorni recordava-se das antigas lendas que narravam uma batalha há muito tempo, envolvendo principalmente magos e bruxas, resultando na extinção de qualquer ser pertencente a essa classe e, consequentemente, na seu suposto sumiço.

— Nunca confie completamente em antigas lendas... — Dorni ofereceu um conselho enquanto estendia a mão para recuperar a luneta. — Elas foram narradas e escritas por raças inteligentes, que infelizmente distorcem a verdade para benefício próprio... E Sally, a própria rainha das bruxas, ainda está viva, o que sugere que as bruxas não foram totalmente extintas.

— Você pode ter razão, general... — O soldado entregou a luneta e voltou seu olhar para os portões. — Mas, mesmo que seja uma bruxa, o que ela estaria fazendo aqui?

— Estou tão confuso quanto você... — Dorni respondeu, enquanto espiava novamente pela luneta para observar a suposta bruxa se aproximando dos portões e tocando-os. — Não me diga…

Na perspectiva do jovem general, no exato ponto onde a palma da mulher repousou, um enorme círculo mágico começou a se expandir, vermelho como o sangue, repleto de símbolos estranhos que pareciam fazer parte de algum ritual obscuro. A expansão não se limitou apenas aos portões, avançando também pelos muros da cidade, fazendo com que uma série de círculos semelhantes surgissem ao longo de sua extensão.

— Parece que o rei de Aldemere enlouqueceu, e Túlios realmente se condenou à morte — comentou Dorni, sem demonstrar qualquer sinal de pesar.

— O que você quer dizer, general? — indagou o homem, visivelmente confuso. — E o que são esses símbolos?

— Não posso afirmar com certeza, mas parecem ser símbolos de uma maldição explosiva... — respondeu Dorni, enquanto todo o batalhão atrás dele arregalava os olhos assustados. Se as suspeitas do general estivessem corretas, considerando o grande número de círculos presentes, toda a cidade iria vir abaixo.

Enquanto isso, dentro das muralhas, Túlios continuava sua frenética batalha em cima do cavalo, exibindo um sorriso que ia de uma orelha à outra. Movendo-se de um lado para o outro, empunhando a espada e ceifando vidas indiscriminadamente, junto de seus homens, que perpetravam um verdadeiro massacre. 

No entanto, toda a sua alegria foi substituída por uma sensação de inquietação ao observar os estranhos círculos vermelhos com bizarros símbolos brotando de todos os lados. Não importava para onde olhasse, a paisagem estava pontuada por esses círculos inexplicáveis, do chão às paredes e até mesmo pontos flutuantes no céu.

— Que desgraça é essa!? — Túlios exclamou, irritado. — Você aí! Toque alí!

Ele ordenou a um dos soldados próximos, que prontamente obedeceu, aproximando-se do estranho círculo na parede. Com uma hesitação palpável, o soldado estendeu a mão, que tremia a cada centímetro mais próximo, como um aviso de perigo iminente.

Ele quis desistir e recuar, mas sob o olhar penetrante do general, quase o obrigando a cumprir a ordem, ele fechou os olhos e, finalmente, tocou o símbolo... Nada aconteceu. Com um suspiro aliviado, abriu os olhos e virou-se sorrindo para o general.

— Veja! Não aconteceu nada… — Ele começou a dizer. 

Mas parou ao ver os olhos de Túlios se arregalando, pois ao observava o símbolo atrás do rapaz, começar a irradiar um vermelho intenso, e em poucos segundos...

— Hã? — Ele virou-se para trás. — Ah, mer...

Explodiu, levando consigo tudo em seu caminho: a parede de concreto, o corpo frágil do pobre rapaz, fazendo com que sangue e vísceras voassem para todos os lados, manchando os companheiros próximos em um carmesim doloroso.

— Hahaha! Vão se ferrar! — gritou um dos combatentes inimigos, entre risadas estrondosas, antes de ser dilacerado por outra explosão.

— Hahahahah! Viva Aldemere! — exclamou outra pessoa atrás de Túlio, erguendo os braços para o céu. — Re’loyal é meu saco!

E mais um corpo foi reduzido a pedaços e, assim, se seguiu, com gritos ofensivos, seguidos da morte. 

— O que diabos está acontecendo!? — Túlios indagou a si mesmo, e a resposta veio instantaneamente. — Não me diga... É um plano suicida! Maldição! Maldição! Maldição!

Ele virou o cavalo e galopou em direção aos portões a toda velocidade, chamando os soldados que ainda estavam vivos, aqueles que não estavam paralisados pelo choque, para segui-lo. Mas quando chegaram aos portões...

— Abram! Rápido!

Alguns homens correram até os portões e tentaram abri-los, mas nada aconteceu, eles não se moveram um centímetro sequer.

— General! Eles não abrem! Devem estar trancados por fora!

Túlios sentiu as próprias forças o abandonarem, os  braços amolecendo, deixando cair a espada ensanguentada no chão. Os olhos se esvaziaram, a pele empalideceu. 

De repente, o estrondo ensurdecedor de mais uma explosão o arrancou do transe, fazendo-o voltar o cavalo e testemunhar a cena infernal diante de seus olhos. Aliados e inimigos transformados em meros fragmentos, misturando-se nas ruas enquanto casas e estabelecimentos desmoronavam sob as ondas de choque. Homens eram arremessados pelos céus, seguidos por blocos de concreto despedaçados, enquanto a poeira subia, criando um cenário mais apocalíptico do que o de uma guerra convencional.

— General! General! — Os homens o sacudiam no cavalo, aguardando alguma ordem, esperando que aquele homem os salvasse. — General! Responda!

— Seu desgraçado! Você nos condenou! — exclamou outro, arrancando-o com força do cavalo, lançando-o ao chão. — Maldito! Você nos trouxe a desgraça da morte!

Túlios era chutado sem piedade, já não havia receio de punição, pois todos ali sabiam que aquele era o fim. O general não revidava, parecia imerso em seu próprio mundo de desespero. Alguns soldados enlouquecidos foram afastados por outros, enquanto alguns ajudavam Túlios a se levantar.

Ele agradeceu com a voz fraca, mal audível, os olhos vidrados, incapazes de desviar-se do caos ao seu redor. A batalha já não tinha sentido; tanto aliados quanto inimigos lutavam para salvar suas próprias vidas, sem se importar com quem estava do outro lado. 

No entanto, os soldados de Aldemere pareciam possuídos por uma loucura, agarrando os loyanos e os arrastando em direção aos círculos, aguardando a explosão iminente, morrendo com sorrisos macabros estampados nos rostos, como se fossem demônios encarnados.

— É o fim...? — murmurou Túlios, sem reação, seu coração já não tinha forças para bater forte. Foi como uma iluminação momentânea, onde tudo cessou e os pensamentos clarearam. — Esse é meu castigo?

— Não, não… — Um ser todo escuro, encostado em uma parede ainda intacta, falou. — Isso é apenas o começo. Você irá pagar por seus pecados em outro lugar...

Túlios o observou e logo deduziu quem seria; nesse momento, já sabia que estava morto.

— Hades… — Ele sorriu, talvez um sorriso de alguém já sem noção de nada. — O próprio senhor do submundo veio me buscar?

— Não se sinta importante. — Não era possível ver o corpo de Hades; era como uma sombra roxa com pernas e braços se movendo, aproximando-se do general. — Apenas estava a fim de contemplar a loucura do rei deste país...

— ...Me diga, eu irei sofrer muito...?

— Hã? Sofrer? Se teme ser penalizado por seus atos, já deve saber a resposta… — De repente, ele já estava ao lado de Túlios, passando a mão por seu ombro. — Mas saiba que você teve muita sorte. Hela e Osíris também queriam vir, e posso garantir que eles são deuses da morte bem mais cruéis que eu…

O general deu um salto para frente, desvencilhando-se de Hades, que o observou com calma. Mas em vez de enfrentá-lo, o general optou por correr e se ajoelhar aos pés do deus da morte.

— Hades! Me salve, por favor! Estou disposto a lhe oferecer tudo... minha alma e as almas de todos os meus homens! Apenas me salve! — Implorou, desesperado.

— Engana-se ao pensar que sou um ser que busca almas, me confundiu com demônios ou deuses errantes... — Os olhos roxos escuros de Hades surgiram da névoa sombria, estreitando-se com ódio. — E para piorar, acabou de cometer o pior dos pecados ao meu ver, traição...

Túlios, num instante, encontrou-se de joelhos diante do vazio, ouvindo o som das paredes rachando ao seu lado. Ao olhar temeroso para o local do som, viu o prédio da guarda começando a desmoronar. Ao tentar levantar-se para fugir, deparou-se com um pequeno círculo mágico que aprisionava suas pernas, e sem piedade explodiu, despedaçando-as.

— Aaaaaaaaah! Inferno! — gritou, tombando a cabeça para trás enquanto via a construção desabar em sua direção. — Hades! Seus desgraça...

Os blocos imensos caíram sobre ele, esmagando seu corpo. No entanto, uma força externa parecia impedi-lo de sofrer danos fatais, mantendo-o vivo, mas submetido a uma dor excruciante.

— Você começará a pagar na terra — Do alto da muralha prestes a ceder, Hades observava o triste, porém satisfatório, fim de Túlios. — No submundo, isso será multiplicado, então prepare-se.

Ele voltou seu olhar para trás, avistando Dorni no alto do morro, e sorriu.

— Um jovem sedento por vingança... Para onde isso o levará? E onde a vingança levará o outro jovem... — Ele observou o símbolo marcado na parte de trás da mão, e depois na outra. — Estarei observando vocês, Alaric e Dorni.



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