Volume 1

Capítulo 58: Passado do ancião (Parte 5)

Após minha clara demonstração de superioridade sobre aquele ser estranho, Rodes de Vere, o patriarca da família Vere, deixou de lado quaisquer preconceitos em relação a mim. Para ele, a força superava qualquer consideração por status social. Por isso, consentiu que sua filha, Andra, me acompanhasse.

Meus dias seguintes foram dedicados a treinos incessantes, uma vez que ela precisava ganhar mais força. No entanto, havia algo que sempre demonstrava dominar.

— Acerte aquele alvo — apontei para um círculo vermelho a cem metros de nós, literalmente na outra extremidade do campo de treinamento.

— Certo… — respondeu ela, erguendo seu arco de madeira, alinhando-o com seus olhos e fechando um deles.

O vento era ameno, quase não fazia seus longos cabelos negros balançarem, mas ainda assim poderia interferir na trajetória da flecha.

Observei-a enquanto apoiava o queixo com a mão. Sua concentração era imensa, sua respiração em pleno controle. Ela parecia uma estátua, sua visão parecia dar zoom no alvo. Em um instante, seus dedos soltaram a corda do arco, e a flecha voou.

Inicialmente desviou para a direita, dando a impressão de que erraria o alvo. Porém, o suave vento que soprava da própria direita corrigiu sua trajetória enquanto cruzava a distância, e como eu previra, ao final, a flecha estava cravada no centro do alvo vermelho.

Para ela, cem metros eram insignificantes; sua habilidade era verdadeiramente impressionante. Nunca testemunhara tal precisão, mesmo entre aqueles da classe arqueira, que geralmente empunhavam os melhores arcos feitos pelos reinos, não possuíam essa destreza.

— Ufa… — Ela soltou o ar, suas costas iam se curvando ligeiramente. — E então? Como me saí?

Ela sempre parecia em busca de aprovação, algo que não era saudável para uma pessoa. No entanto, não me importava em elogiar.

— Incrível! Sua precisão é surpreendente! — Toquei levemente suas costas enquanto ria. — Parabéns!

Ahh… obrigada! — Enquanto ainda se recuperava, notei suas bochechas corarem e seu olhar se desviar para mim.

Então percebi o que estava acontecendo, retirei minhas mãos de suas costas e as levei para a nuca, rindo desconfortavelmente.

— Bem… é… — Minhas próprias bochechas começaram a esquentar, algo que nunca acontecia nem na presença da princesa. — Continue o treino… Eu preciso ir!

Decidi sair dali imediatamente, primeiro porque não queria tornar as coisas mais estranhas e, segundo, porque estava confuso em relação aos meus próprios sentimentos. Durante o tempo que passamos juntos, algumas semanas para ser mais preciso, experimentei sensações estranhas que nunca havia sentido antes. Sempre que estava perto dela, meu coração disparava e as palavras fugiam da minha boca. Às vezes, me pegava apenas observando-a em silêncio por minutos a fio.

Ela parecia demonstrar o mesmo. Como mencionei, estava confuso sobre tudo naquela época. Ao retornar ao palácio naquele dia e caminhar em direção ao meu quarto, fui interceptado por um guarda.

— Senhor Dolbrian — Ser chamado de "senhor" ainda era estranho para mim, mas não havia o que fazer, esses caras insistiam nisso. — O Mago Supremo requisita sua presença na torre.

Isso era algo que não esperava ouvir, desde o dia em que provei minha força, ele partiu sem olhar para trás, e nunca mais o vi. Seus hábitos eram desconhecidos para mim, pois ele passava a maior parte do tempo na sua torre. No entanto, estava curioso, então assenti para o guarda e me encaminhei para a torre.

Se o campo de treinamento ficava à esquerda, a torre ficava à direita do palácio. Seguindo por um caminho de pedrinhas, pude vislumbrar sua imponência que rasgava os céus. Seu diâmetro devia bater os trinta e cinco metros, e sua altura acima de sessenta metros.

Ao adentrar pela única porta disponível, senti-me transportado para um mundo completamente mágico. Borboletas douradas voavam ao redor, e os objetos pareciam mover-se por conta própria. De acordo com as informações que obtive, ele costumava residir no topo da torre.

— Terei que subir todos esses degraus? — Havia uma infinidade deles até o cume; só de pensar, minhas pernas tremiam.

No entanto, avistei um círculo no chão com a palavra "topo" inscrita nele. Sem nada a perder, pisei nele. Instantaneamente, meu corpo começou a se mover, mesmo que eu permanecesse imóvel. Em questão de segundos, minha visão escureceu e, ao recuperá-la, vi-me diante do Mago Supremo.

— Teletransporte — disse ele, enquanto lia um livro em suas mãos.

— O quê?

— Você provavelmente iria perguntar o que aconteceu, como chegou aqui, coisas desse tipo... — Ele fechou o livro e me encarou. — Apenas adiantei meu trabalho. Agora, se deseja saber o que é teletransporte, leia e estude.

Eu estava tão confuso que mal havia percebido onde estava. À minha frente, estendiam-se mesas e mais mesas, repletas de livros empilhados, alguns frascos e gaiolas espalhadas por todo lado, algumas contendo seres. Havia uma cama num canto e diversos utensílios. Tudo parecia uma mistura de quarto com área de trabalho, bastante desorganizada.

— Eu sei que está uma bagunça. — Ele arremessou o livro pelo ar e virou-se. — Mas não precisa ficar olhando assim.

— Eu não... — Baixei a cabeça, percebendo que estava realmente julgando o estado do seu quarto. O livro que ele havia lançado não caiu no chão; em vez disso, começou a flutuar até se juntar à pilha de outros livros. — Magia é realmente impressionante.

— Isso é apenas o básico. — Ele sentou-se em uma mesa e cruzou os braços, fitando-me. — Deve estar curioso sobre por que te chamei aqui.

Ele não estava errado; o chamado tinha sido repentino, e ainda estava confuso sobre o motivo.

— Bem, vou direto ao ponto: sua vitória sobre aquele ser não se deve ao seu título de escolhido... — Ele esticou a mão, e um livro saiu da pilha, parando em sua palma. — Mas sim à sua classe.

Naquele momento, senti minha respiração se descontrolar, minha mente entrar em turbilhão, enquanto minha expressão se tornava cada vez mais perplexa. Sempre imaginei que não tivesse uma classe, afinal, meus pais nunca mencionaram ter.

— Vejo sua confusão. Como mencionei, vou direto ao ponto: sua classe é pugilista.

"Pugilista?" Nunca tinha ouvido falar dessa classe e não tinha ideia se era boa ou não. Cocei os cabelos, ponderando sobre isso, e quando estava prestes a lançar minha pergunta a ele, vi o livro que estava em sua palma voar na minha direção. Apenas tive tempo de agarrá-lo no ar.

— Ei! Estava tentando me acertar? — Virei o livro e vi o título em sua capa: "Classes?"

— Você ia me perguntar o que é essa classe "pugilista". — Ele se levantou da mesa e caminhou até mim, passando ao meu lado. — Todas as respostas estão aqui. Leia e eu já volto.

— Espere!

Quando me virei para falar, ele já não estava mais lá, desaparecendo como o vento. Fiquei sozinho na sala, sem outra opção a não ser começar a ler. Minha curiosidade estava aguçada.

Pelo que li, descobri que existiam muitas classes divididas em dois grupos principais: as mágicas e as físicas, sendo posteriormente adicionadas as híbridas. Devido à imensa variedade, o livro se concentrava principalmente nas classes comuns.

Entre as classes mágicas, estavam a arcana, a maga, a bruxa, o druida, o necromante e o médium, cada uma com suas particularidades e habilidades únicas.

Por exemplo, as bruxas tinham o poder de lançar maldições, enquanto os necromantes podiam trazer os mortos de volta à vida.

Entre as classes físicas, estavam a guerreira, o cavaleiro, o espadachim, a arqueira, o lanceiro, o assassino, entre outras, mas a que mais eu queria saber era a pugilista.

Bem, a classe pugilista era focada em lutas desarmadas, onde o lutador usaria apenas seus punhos para batalhar. Uma das habilidades da classe era os "Punhos Aural", foi isso que ativei durante minha batalha contra aquele ser. Essa habilidade me permitiu envolver meus punhos com minha própria aura ou outra forma de energia, aumentando assim sua força e resistência.

— Entendo... — Olhei para Escolion em minha bainha; minha classe funcionava melhor desarmada, mas eu precisava usar minha lâmina, pois ela continha habilidades de extrema importância. — Bom, vou dar um jeito.

Encostei-me à mesa e depositei o livro sobre ela, esperando por sua volta. Ele havia prometido um retorno rápido, mas as horas se arrastavam sem sinal dele. O tédio começava a pesar sobre mim, até que finalmente uma faísca de esperança acendeu quando vi o círculo de teletransporte brilhar. Porém, quando o brilho se dissipou, uma figura inesperada surgiu.

— Vithória... — pronunciei seu nome com seriedade, surpreso ao vê-la ali. Na verdade, não tinha nada contra ela, mas parecia que estávamos nos evitando deliberadamente.

Eu entendia o porquê; afinal, seu pai estava forçando-a a se casar comigo. No entanto, não compreendia por que ela descontava em mim. Afinal, eu também estava sendo compelido; nunca quis me casar com ela. Deveríamos estar unidos em um único propósito: impedir esse casamento. Não deveríamos nos envolver em brigas infantis de ignorar um ao outro.

— Preciso conversar com você... — disse Vithória, com os braços cruzados atrás das costas, parecendo apreensiva e desviando o olhar. — Por favor...

Ela não precisava pedir, afinal, eu também estava interessado em esclarecer as coisas e acabar com essa briga infantil de uma vez por todas.

— Claro — respondi, recostando-me na mesa. — Pode começar.

— Eu... me perdoe por estar agindo dessa forma com você... É só que, aquele em quem eu confiava, de repente se tornou a fonte de todo o meu sofrimento. — Ela ergueu o olhar, soltando os braços. — Mas percebi que você não tem culpa de nada; na verdade, está na mesma situação que eu.

Ouvir essas palavras foi como desatar os nós que apertavam meu coração, proporcionando um alívio instantâneo. Pela primeira vez em muito tempo, um sorriso sincero surgiu em meu rosto diante dela.

— Eu te perdoo... — Disse, afastando-me da mesa e indo em sua direção. — Na verdade, desejo nos unir, não em casamento, mas sim em uma aliança para nos opormos a isso.

Estendi minha mão em sua direção e vi um sorriso radiante surgir em seus lábios. Sua mão encontrou a minha enquanto os raios do sol invadiam pela janela, como se estivéssemos selando nosso acordo.

— Conte comigo, escolhido... Opa… — Ela desviou o olhar, deixando-me confuso. Será que algo estava errado? Mas então ela voltou seus olhos para mim. — Dolbrian, 'escolhido' é apenas um título, não define quem você realmente é.

A gentileza inerente aos membros da linhagem Stormheart sempre foi uma realidade. Eles eram os únicos que verdadeiramente respeitavam todos. Após o aperto de mãos, dirigi-me até a janela e apoiei-me em seu parapeito.

— Sempre me intrigou, de o porque seu pai decidiu oferecer sua mão para mim.

Essa questão sempre pairou em minha mente. De repente, o rei ofereceu a mão de sua filha, uma princesa, a um simples camponês sem nenhum título de nobreza. Era algo inimaginável. Ela se aproximou, postando-se atrás de mim enquanto eu contemplava a paisagem pela janela.

— Você não entende mesmo? — Ela perguntou.

Respondi negativamente, e então ela começou a explicar. Era algo bastante simples, na verdade. Não importava se eu era nobre ou não; o título de "escolhido" transcendia todas as barreiras sociais. Era considerado o título mais importante do continente. Os reis sempre mantiveram os escolhidos sob sua proteção, mimando-os para ganhar influência política. 

No entanto, os escolhidos nunca podiam se envolver em assuntos que ultrapassassem suas responsabilidades ou beneficiassem apenas um país. Eles eram pessoas criadas para o bem comum de todos. Mas, pense comigo, se apenas estar próximo de um escolhido já lhe garante influência, imagine se ele fizer parte de sua própria família…

No fim das contas, o rei buscava apenas aumentar seu poder político. Havía uma assembleia geral composta por representantes de todos os países do continente, onde os monarcas se reuniam para determinar o destino de todos. 

Nesse cenário, aqueles com maior influência teriam mais peso em suas palavras e votos, permitindo-lhes aprovar leis que os beneficiassem ou cometer atos considerados criminosos ou antiéticos sem sofrer as devidas consequências. 

Em termos simples, se eu fosse genro do rei de Aldemere, ele poderia fabricar provas falsas para incriminar um país menor, com menos poder político, e ordenar sua destruição como punição. Suas palavras teriam tanto peso que todos concordariam sem questionar.

— Eu realmente possuo tanto poder assim? — Meus olhos se arregalaram enquanto observava as pessoas lá embaixo, parecendo tão pequenas.

— Sim, seu poder transcende as habilidades de um simples escolhido.

Eu já imaginava que tinha alguma influência, mas a esse nível? Era algo além da minha compreensão, o poder de influenciar o destino dos outros. Isso, de alguma forma, nunca me pareceu empolgante, apenas autoritário.

— No entanto, Dolbrian, lembre-se de que um poder como esse, pode ser considerado uma maldição — Senti o peso em sua voz. — Muitos virão atrás de você por causa dele, tanto para o bem quanto para o mal. As relações que você construirá, muitas vezes serão baseadas apenas no interesse da outra parte em seu poder...

Ela estava certa. As pessoas não me enxergariam como um ser humano, mas como uma fonte de influência. Amizades verdadeiras seriam raras; muitos apenas tentariam me utilizar. E outros tantos tentariam me eliminar. Essa seria minha vida a partir do momento em que me tornasse poderoso o suficiente.

— Mas você é minha amiga de verdade, né? — Mesmo diante de tudo, eu ainda valorizava as relações baseadas na simplicidade do sentimento. Com pessoas como Vithória, pessoas genuínas.

Antes que ela respondesse, uma sensação estranha percorreu meu corpo e, mais uma vez, o brilho irradiou do círculo. Ao me virar, deparei-me com a figura de um velho.

— Desculpe pela demora... — Ele pareceu ficar levemente surpreso. — Senhorita Vithória, o que faz aqui?

— Como assim você que me chamou aqui... — respondeu ela, visivelmente confusa.

Aquele velho havia nos convocado ao mesmo tempo para nos fazer conversar? Ele era perspicaz e, apesar de seu jeito estranho, parecia ter um coração bondoso.

— Bem, estou partindo agora — declarei, já me preparando para ir embora.

— Espere! — O velho exclamou. — Não quer saber o que era aquele monstro que fiz você enfrentar?

Embora a curiosidade existisse, já havia obtido informações suficientes naquele dia. Virei meu rosto em sua direção e ofereci um sorriso confiante.

— Na verdade não. Seja o que fosse, parecia fraco. Enfrentaria uma dúzia deles sem suar.

Com isso, saltei pela janela, deixando-os observando com olhos arregalados. Enquanto caía em queda livre, deitado no ar, podia ver o colar de Vitória balançando. Sentia curiosidade sobre ele, mas optei por não perguntar.

Durante a queda, milhares de pensamentos inundaram minha mente, como se a morte estivesse próxima. Entre eles, surgiu um sobre Zetrian: teria ele desaparecido por estar cansado de ser apenas usado? Cansado de não ter relações verdadeiras? No fim, ser escolhido parecia ser mais uma maldição do que uma bênção. Assim que ele desapareceu, seu nome foi esquecido, sem glória, sem reconhecimento. Concluí que talvez o título de "escolhido" fosse, de fato, uma maldição reservada apenas para os azarados.

No final, aterrissei de joelhos. Qualquer pessoa comum teria se espatifado, talvez até quebrado alguns ossos. Mas minha resistência era incomum, superior à de qualquer humano comum. Ao me levantar, admirei o céu, que estava deslumbrante naquele dia.

— Acho que vou encerrar o dia por hoje — murmurei para mim mesmo, enquanto retornava aos meus aposentos e me entregava ao sono.

Nos três anos seguintes, permaneci no palácio, dedicando-me ao treinamento diário sem falhar. Não podia partir antes de completar dezoito anos.

Durante esse período, acumulei um vasto conhecimento, incluindo a compreensão dos poderes da escolion. O, Mago Supremo, que acabou se chamando Herdes, uma revelação surpreendente para mim.

Me contou que, geralmente, os escolhidos levavam cinco anos para descobrir os poderes da Escolion e mais dez para dominá-los, mas eu consegui em apenas três anos e sintia que os dominava melhor que qualquer um. 

Além disso, havia desenvolvido técnicas novas, algo que o velho disse nunca ter sido feito antes, exceto pelo criador original da lâmina. Também havia aprimorado minhas habilidades de classe, o que se mostrou bastante útil para os momentos em que não podia utilizar meus poderes ou a espada.

Durante esse período, Vithória e eu conseguimos resolver a questão do casamento. Surpreendentemente, não foi uma tarefa difícil, pois contamos com o apoio de Herdes. 

Ele parecia possuir mais influência do que o próprio rei, uma vez que era o antigo Rei Mago de Alexandria. Essa constatação me deixou pensativo: por que alguém com tanto poder e prestígio se submeteria à autoridade de um rei tão ganancioso como Bartolomeu IV? 

No entanto, ficou claro que sua influência entre os magos era de enorme importância, assim como o respeito que recebia de muitos reis do continente, que o consideravam um representante direto dos deuses. Diante desse cenário, o rei teve que recuar em sua decisão.

Ah, havia até me esquecido. Para evitar que os nobres ficassem incomodados com um camponês agindo como alguém da realeza, utilizando os campos reais e até mesmo dormindo no palácio, o rei me concedeu um título de nobreza: "Cavaleiro". Embora tradicionalmente reservado para aqueles que estavam diretamente ligados à proteção do rei ou que possuíam a classe cavaleiro, pessoas sem essa classe ou sem formação militar também poderiam receber o título como uma honra especial.

No fim, isso era tudo que importava. Poderia haver mais detalhes, mas, no momento, eles escapavam da minha mente. O que realmente importava era que naquele dia eu daria o primeiro passo em direção ao início da minha jornada. Era nesse momento que tudo começaria, e eu me tornaria o maior e mais poderoso Escolhido a percorrer esta terra.



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