Volume 1

Capítulo 57: Passado do ancião (Parte 4)

Após revelar minha identidade e ela descobrir que eu era o homem ao qual seu pai a estava obrigando a se casar, um silêncio pesado pairou sobre nós. Vi o abatimento em seus olhos, seu olhar caindo enquanto sua mão pressionava a guarda de sua espada com força.

— Você... — Sua voz mal conseguia articular uma única sílaba, e logo ela embainhou sua lâmina, as lágrimas obscurecendo sua visão. Sem me encarar, ela virou-se para partir. — Desculpa...

Impotente diante da situação, observei-a se afastar sem poder oferecer consolo algum. No fim, eu era sua maldição. Contudo, algo brilhava fugazmente entre a areia do campo de treinamento, capturando minha atenção. Curioso, me aproximei e, ao revirar a areia, descobri ser um colar, provavelmente pertencente a ela. Ergui-o, e a chamei:

— Ei! Acho que isso é seu!

Ela ouviu minha voz e virou-se, surpreendida. Lancei o colar em sua direção, e ela o pegou no ar, expressando gratidão antes de desaparecer de minha vista. Um sentimento de tristeza me invadiu, mas como já mencionara, nada podia fazer. Com um suspiro resignado, enfiei a Escolion na bainha e fiquei ali, imóvel, mergulhado em meus pensamentos. Só então percebi que o crepúsculo se aproximava e que era hora de seguir adiante.

Após mais um dia de treinamento exaustivo, busquei refúgio em meus aposentos, permitindo que meu corpo cansado encontrasse um merecido descanso. 

Nos dias que se seguiram, minha rotina se repetiu inexoravelmente: acordar, me alimentar, treinar e então, finalmente, entregar-me ao sono restaurador. Às vezes, nos corredores do castelo, encontrava-me com Vithória. No entanto, tais encontros eram breves e marcados pela frieza de suas despedidas, evitando qualquer contato visual comigo. Era evidente que o seu ressentimento em relação a mim estava prestes a atingir seu ápice. Seu irmão, por sua vez, também não demonstrava simpatia, embora suas hostilidades se limitassem a insultos. Era evidente que ele reconhecia sua inferioridade diante de mim, pois em um confronto direto, a vitória era garantida do meu lado.

Durante esse período, mergulhei nas intrigas e no funcionamento da família real de Aldemere Dominium. Descobri que eles eram divididos em três linhagens distintas: os Stormax, os Stormheart e os Stormblade. O primeiro patriarca e líder da família era conhecido como Vatriano Storm, sendo o "Storm" uma herança de seu nome. Pelo que entendi, essa divisão ocorreu em um momento crucial da história, quando o rei Vatriano teve três filhos de três mulheres diferentes, e a questão da sucessão das terras tornou-se motivo de disputa e potencial conflito.

Para evitar uma guerra familiar iminente, o rei adotou uma estratégia única: criar as três linhagens derivadas do nome original, atribuindo cada uma delas a um dos seus filhos. Assim, instituiu uma competição entre os herdeiros, onde o vencedor seria considerado o verdadeiro sucessor do trono. O desenrolar dessa disputa foi marcado por uma sangrenta batalha, que culminou na vitória dos Stormax, tornando-os os herdeiros legítimos. Em seguida, vieram os Stormblades, enquanto os Stormheart, considerados os mais rejeitados e inferiores, ocuparam o último lugar na hierarquia real.

No desfecho, cada uma dessas linhagens revelou habilidades distintas e características marcantes. Os Stormax, dotados de imensas capacidades físicas e mágicas, ostentavam uma variedade de habilidades invejáveis. No entanto, sua força era acompanhada por uma aura de arrogância e prepotência, uma "maldição" decorrente de sua histórica sucessão ao trono, o que os levava a se considerarem superiores aos demais.

Por outro lado, os Stormheart se destacavam mais pela sua aptidão mágica do que pelas habilidades físicas. Este aspecto contribuiu para sua derrota, especialmente devido a um campeonato mal planejado. Além disso, sua natureza gentil e benevolente também os prejudicou, já que não possuíam o mesmo ímpeto competitivo que outras linhagens.

Por fim, os Stormblade se destacavam pela maestria na esgrima, superando todas as outras linhagens nesse aspecto. Sua habilidade única residia na capacidade de mesclar magia de forma hábil aos golpes de espada. Durante o campeonato, quase conseguiram derrotar os Stormax, demonstrando sua formidável destreza. No entanto, sua derrota acabou sendo causada pela confiança excessiva do primeiro Stormblade, uma característica emblemática da linhagem, que era conhecida por sua confiança, sarcasmo, ironia e, muitas vezes, arrogância.

Um aspecto fascinante a se observar é o desenlace dessas dinastias, marcado por um conflito que eclodiu em algum ponto da história: uma guerra pelo trono. Embora as linhagens reais já estivessem estabelecidas há anos, a guerra se tornou inevitável. Os Stormblades, em oposição aos Stormax, engajaram-se em uma batalha sangrenta pelo controle do reino. O resultado foi a insurgência de uma parte do território, que os Stormblades assumiram como seu, batizando-o de Reino de Astot.

— Essas famílias…

As intricadas tramas e as questões de linhagens complicadas eram algo do qual eu agradecia todos os dias por não fazer parte. No entanto, isso estava prestes a mudar assim que me casasse com Vithória. Ela era uma descendente dos Stormheart, uma linhagem que, embora ridicularizada, ainda ostentava um status real.

O confinamento dentro daquele palácio estava começando a me sufocar. Já havia explorado todos os cantos e estudado tudo o que podia sobre a família real. No entanto, aprofundar-me nesse conhecimento era estritamente proibido, assim como descobrir mais sobre suas habilidades, que eram guardadas a sete chaves dentro da biblioteca real.

Após alguns dias, fui convocado pelo próprio rei para comparecer ao campo de treinamento. Embora não soubesse o que esperar, decidi aceitar a convocação, pois não tinha nada a perder.

Ao chegar ao local designado, fui surpreendido pela cena diante de mim. Uma centena de pessoas vestidas com trajes nobres e olhares penetrantes me observavam a cada passo, analisando até mesmo minha maneira de andar.

No centro do campo de areia, próximo a um guarda-sol imponente, estava um trono ricamente decorado onde o rei estava sentado, emanando uma aura de autoridade. Ao me ver, ele ofereceu um breve sorriso, mas logo seu semblante se tornou sério.

— Majestade… Poderia me dizer para que tudo isso? — perguntei, estava confuso com tudo.

Ha! Então este é o tal escolhido? – Uma voz grave ecoou ao lado do rei, pertencente a um homem imponente com os braços cruzados, cujo olhar parecia atravessar minha alma. — Tão pequeno... Você quer que minha! Filha! Acompanhe ele!? Tá de brincadeira!

O comentário me pegou de surpresa, deixando minha mente em um turbilhão de confusão e desconfiança. Pelo tom com que ele se dirigia ao rei, percebi que era alguém de grande importância. Seus olhos escrutinadores pareciam analisar cada fibra do meu ser, sugerindo que fosse um guerreiro experiente. 

E a menção à palavra "filha" fez com que eu forçasse um olhar na direção indicada, avistando uma silhueta feminina tímida por trás da imponente figura masculina. Ela parecia observar-me de soslaio, mas como uma sombra, voltava para trás do protetor manto de seu pai.

— Você precisa de um grupo para enfrentar os males que assombram o mundo — o rei falou com firmeza, desconsiderando a imponente figura ao seu lado. Sua atenção estava totalmente voltada para mim. — Por isso, trouxemos a primeira candidata a se juntar ao seu grupo. Andra de Vere, uma distinta representante da renomada família Vere.

Embora eu não conhecesse a garota nem sua família, conseguia entender a intenção do rei, e até concordava que enfrentar um grande mal exigiria uma equipe preparada. No entanto, o pai da garota não parecia feliz com a decisão, lançando um olhar descontente para o monarca antes de voltar sua atenção para mim.

— Eu não permitirei que minha filha se una a alguém fraco! — ele declarou firmemente.

— Se deseja testar sua força — o rei respondeu com um suspiro, revelando um sorriso arrogante digno da linhagem Stormax —, não me oponho.

— O quê!? — Eu estava completamente perdido. Ninguém havia me informado sobre nada. Só conseguia observar aquele grande homem, cujo sorriso parecia maior do que minha confusão, chamando um velho que estava atrás dele.

— Velhote! — o patriarca da família Vere começou, interrompendo minha tentativa de entender a situação. — Invoca teu melhor monstro! Vamos ver a força deste suposto escolhido.

O velho de túnica preta, envolto em sua grande barba branca, tomou a dianteira, sua presença impunhou um respeito silencioso a todos os presentes. Ninguém ousava encarar seus olhos diretamente. Ele se detinha, me analisando com uma expressão que misturava seriedade e curiosidade, enquanto os dedos acariciavam sua barba encaracolada.

Subitamente, um cajado de madeira, adornado com uma fita preta enrolada quase na ponta, materializou-se em suas mãos enrugadas. Com um movimento fluido, ele começou a girar o artefato no ar, preenchendo o ambiente com um zumbido hipnótico. Consciente de minha vulnerabilidade, dei um salto para trás, pronto para enfrentar o desafio iminente.

— Seu nível de mana é baixo — declarou o velho, suas palavras ecoaram como um trovão silencioso no campo. O comentário provocou olhares surpresos e inquietos entre os presentes. Enquanto o cajado girava em seu movimento circular, uma aura de luz começou a emanar dele, preenchendo o espaço com uma luminosidade mística. — Por isso, irei invocar um ser que testará não apenas sua habilidade mágica, mas também seu nível físico.

Ele pareceu captar minhas fraquezas com apenas um breve olhar, como se lesse minha alma com precisão desconcertante. Essa habilidade me fascinou e ao mesmo tempo me encheu de temor. Era evidente que alguém com tal perspicácia analítica só podia ser ele: o homem que ostentava o título de Mago Supremo de Aldemere. As lendas que eu havia lido sobre ele sussurravam façanhas extraordinárias, alimentando ainda mais meu assombro. 

Dizia-se que ele foi capaz de derrotar três Lords  sozinho, um feito que desafiava as expectativas e desafiava a própria lógica. E não parava por aí; a misteriosa figura havia cativado até mesmo o infame Vlad Drácula com seu poder incomparável. Histórias ainda mais incríveis afirmavam que ele havia enfrentado inúmeros Arquidemônios em batalhas solitárias, desafiando as forças do mal com uma coragem e habilidade que transcendiam a compreensão humana.

— Que os céus me entreguem uma alma, que as trevas expulsem um espírito errante. O mal e o bem se unam em corpo, venha! Calidriun!

O eco das palavras reverberavam no campo de treinamento permeando o ar com uma tensão palpável. O ministro, habitualmente sereno, agora estava inquieto, seus olhos se arregalaram em desespero enquanto ele se dirigia ao velho.

— O que você está pensando!!?? — Ele exclamou, sua voz carregada de agonia. Eu permaneci imperturbável, tentando compreender a razão por trás de sua súbita perturbação, até que:  — Você trouxe um ser capaz de destruir-

Antes que ele pudesse concluir sua frase, uma fissura sinistra se abriu no meio do ar, como uma cicatriz na própria realidade. Dedos negros e pontiagudos emergiram da fenda, as mãos forçando a abertura com uma intensidade assustadora. O ambiente ao nosso redor pareceu distorcer-se, as nuvens enegreceram, o vento ganhou força, enquanto raios rugiam ameaçadoramente nas proximidades.

As pessoas se seguravam com firmeza para não serem arrastadas pela ventania impiedosa. O guarda-sol do rei foi levado pelos ventos turbulentos, mas ele permanecia sereno e inabalável, como se estivesse alheio ao caos ao seu redor. Ao seu lado, o homem forte mantinha os braços cruzados sobre o peito, exibindo um sorriso confiante e seguro em seu rosto. Sua filha, permanecia encolhida em sua sombra.

— Ora, fui incumbido de invocar um ser para o testar — ele virou seu olhar penetrante para o primeiro-ministro, um sorriso sarcástico brincando em seus lábios. — O único ser capaz de provocar um desafio que exija o mínimo de sua capacidade é este. 

— Isso é absolutamente insano! — O primeiro-ministro expressava seu descontentamento. — Esse ser... ele...

Hahaha! Isso está ficando cada vez mais interessante! — O homem corpulento interrompeu, seu entusiasmo transpareceu em suas palavras.

Eu não entendia o motivo da comoção, até… o ser emergir completamente da fenda. Sua presença era desconcertante. Sua figura assumiu uma forma estranhamente familiar, exibindo um corpo humano saudável e robusto. No entanto, sua pele era uma escuridão profunda, interrompida apenas pelas asas brancas que se estendiam majestosamente. Seu rosto, desprovido de olhos, era dominado por uma boca sinistra, enquanto seus dedos terminavam em pontas afiadas.

Diante daquela estranheza incompreensível, meu coração acelerou enquanto minhas mãos buscavam a Escolion. Pelas palavras trocadas ao meu redor, ficou claro que aquele ser era algo além do comum, uma ameaça que exigiria toda a minha habilidade e coragem para enfrentar. Assim, com a determinação gravada em meu semblante, preparei-me mental e fisicamente para o iminente embate que se aproximava.

— Por favor, acalmem-se — pediu o velho, virando-se na direção do ser com autoridade. — O escolhido possui plena capacidade para derrotá-lo. E caso por alguma razão ele não consiga, eu mesmo me encarregarei de lidar com ele.

— Qual a força desse jovem? — indagou o rei, mantendo a calma em sua voz.

O velho dirigiu seu olhar ao rei por um momento antes de voltar-se para mim. Com uma breve coçada na barba, ele logo exibiu um sorriso empolgado.

— Ele possui uma força considerável, minha majestade... uma força admirável.

O rei reclinou-se no trono, deixando seus braços repousarem nos apoios, enquanto o primeiro-ministro, ainda apavorado e profundamente consternado, deu alguns passos para trás. Todos os outros observavam o embate que se desencadeava com a investida do monstro em minha direção.

Suas asas batiam vigorosamente, concedendo-lhe a habilidade de voar em um rasante perigoso próximo ao solo. Testemunhei o sorriso bizarro se alargar em seu rosto, enquanto seus dedos, que mais pareciam garras afiadas, se erguiam em um golpe ascendente. Num rápido reflexo, dei um passo para trás e inclinei meu torso para trás, senti as garras passarem rente ao meu peito. Aproveitando o momento, recuei ainda mais para ganhar espaço.

— Que reflexos incríveis… — disse o homem robusto, admirado, enquanto sua filha começava a observar o embate com fascínio. — Eu mal vi o ataque...

"Por pouco..." O pensamento de ser dilacerado pelas garras atormentou meu coração, acelerando seus batimentos, minhas mãos tremiam. Pressionei a mão que segurava a Escolion, conseguindo controlar o tremor, e avancei na direção do ser. Desferi um golpe horizontal, a lâmina cortou o ar em alta velocidade, mas senti uma força contrária em meio ao movimento. Ao desviar o olhar para o adversário, meus olhos se arregalaram ao presenciar aquele sorriso repulsivo se alargar ainda mais, e ver suas garras impedirem a espada de continuar o avanço.

A outra mão, portando garras afiadas, viajou na direção do meu corpo. Minha única reação foi saltar para trás. Minha respiração estava descompassada; por pouco, quase morri. 

O vento agitava meus cabelos enquanto os raios desciam com violência dos céus. Naquele momento, lembrei-me de um ensinamento de Zetrian: "concentrar... né".

A instrução era simples: concentrar-me e deixar fluir tudo o que meu ser possuía, como um rio correndo livremente. Decidi seguir esse conselho, sabendo que precisava agir com rapidez. Logo, senti algo percorrer minhas entranhas, como se fosse minha própria alma, e depois se espalhar por minha corrente sanguínea. Minhas mãos começaram a ser envoltas por uma aura alaranjada, e instantaneamente senti um aumento de força nelas.

— Acabarei com isso neste golpe! — proclamei, surpreendendo a todos. Por algum motivo, uma onda de confiança me invadiu naquele momento. Enquanto alguns me olhavam com espanto e desdém, pensando que era apenas um blefe.

A jovem que ainda se escondia na sombra de seu pai ouviu minhas palavras e saiu completamente de trás dele, posicionando-se à frente para poder observar melhor o embate. Finalmente, pude vê-la claramente: uma garota da minha idade, com longos cabelos negros. Suas mãos permaneciam entrelaçadas, mas seus olhos irradiavam um brilho contagiante. Sorri para ela, o que a fez desviar o olhar por um momento.

"É agora..." Assumi uma postura de batalha, observando meu inimigo, que parecia aguardar meu movimento com aquele sorriso repugnante estampado no rosto. Naquele momento, senti-me confiante como se fosse um deus, meu sorriso se alargou em completa convicção, e um olhar irônico surgiu em meu rosto.

— Ele... — O homem forte finalmente perdeu sua postura, descruzando os braços, quase boquiaberto. — Tem certeza de que ele não faz parte dos Stormblade? Afinal, apenas aquela linhagem teria tamanha confiança diante de um ser que transcende demônios…

— Não… — O velho falou antes do rei. — Essa é a confiança que acompanha um escolhido…

Avancei em direção ao monstro, minha velocidade tão intensa que distorcia tudo à minha frente. Apesar da resistência do ar, cruzei minha espada diante de mim e, ao me aproximar do ser, desferi um golpe horizontal da esquerda para a direita. Os espectadores observavam incrédulos, sem acreditar no que testemunhavam.

— Como pode ver, patriarca Vere — começou o rei, seu sorriso transbordando confiança. — Ele possui uma força formidável.

Todos me observavam, abaixado, atrás de mim, um corpo escuro que agora se dividira em dois. Ergui-me, girando a Escolion e encarando o ser com um sorriso sarcástico. Aquele que antes exibia uma expressão nojenta, agora deixava seu semblante cair em desalento, os cantos de sua boca curvavam-se para baixo. Seu corpo começava a se dissolver, decretando assim o seu fim e minha vitória perante a criatura.



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