Volume 1
Capitulo 30: Famílias, festas e incertezas
— Eu venci. — Um rosto neutro, talvez por respeito. Mesmo tendo vencido, aprendeu com Erne, a respeitar seus adversários. Assim, dando a mão para ajudar Dborn a levantar-se. — Dborn Estrikis.
O indivíduo constantemente julgado, menosprezado e desacreditado havia triunfado sobre aquele que era considerado o favorito. Certamente, um marco para o jovem Dorni.
Erne refletiu: “Como agimos após uma derrota revela muito sobre nós”, enquanto observava com orgulho seu pupilo estendendo a mão para Dborn, ajudando-o a levantar-se.
Dborn olhou para a mão estendida, revirou os olhos e, com um impulso, apertou a mão de Dorni, permitindo que o jovem o ajudasse a levantar-se.
— Parabéns, pela vitória. — Uma reação ao qual Dorni não esperava, o que realmente esperava era desprezo ou promessas de vinganças. Mas as próximas palavras de Dborn, clarearam sua mente: — Você é forte.
Num mundo onde a força dita as regras, quem detém o poder conquista respeito e admiração. Ao ser derrotado por alguém que considerava inferior, percebeu a imensa força oculta no corpo aparentemente frágil do rapaz. A partir desse momento, passou a enxergá-lo de forma diferente.
Obri- — Dorni foi interrompido antes de terminar seu agradecimento. A mão de Dborn estendeu-se à sua frente, junto a um sorriso alegre e desafiador. — E….
— Espero por uma revanche. — Tais palavras pegaram Dorni de surpresa, nunca imaginaria alguém como Dborn, querer de novo o enfrentá-lo. — Dorni Dorkvir.
Pela primeira vez, alguém o chamava pelo nome, além de seu mestre. O comum eram os apelidos maldosos, mas o detentor de grande poder, aquele ao qual pertencia a uma família prestigiada, o reconheceu-o a ponto de usar seu nome.
Dorni não podia estar mais emocionado, mas transparecer tal sentimento não era cabível ao momento. Então, respirou fundo, estendeu sua mão, gerando um aperto de mão firme, seguido por uma resposta confiante:
— Pode apostar que, você terá. — Finalmente, alguém tinha visto além de sua aparência externa; finalmente, alguém realmente o enxergou, além de Erne. — Dborn Estrikis
— Foi uma bela luta. — Passou os braços por cima dos dois. — Vocês dois têm um grande potencial.
Erne transbordava de orgulho; seu pupilo compreendia plenamente seus ensinamentos, apesar de algumas técnicas ainda carecerem de polimento. Contudo, isso pouco importava no momento. Erne tinha uma certeza inabalável: Dorni emergiria como símbolo de força no reino, uma visão que Erne sempre nutriu.
Dborn abandonou o campo de treinamento aos risos; mesmo após a derrota, encontrará a felicidade. Dorni, exausto após uma batalha intensa, sentou-se no chão de areia do campo de treino.
— Mestre. — Olhou para Erne, que estava em pé ao seu lado. — Acha que conquistaremos a vitória?
— Bom, se tudo der certo, sim. — Cruzou os braços. — Mas o que me preocupa é Aldebaram.
Aldebaram, um nome que o jovem Dorni ouviu pela primeira vez na corte. A simples menção desse nome parecia alterar o clima. Quem era esse? Por que todos o temiam? E, mais importante, qual era o passado de seu mestre com ele?
Afinal, as reações na sala do trono, que Erne mesmo tentando se conter, acabou expressando, dava a impressão de que algo no passado ocorreu entre esses dois. No entando, Dorni, carecia de respostas, e não sentia total confiança de questionar seu mestre.
— Eu irei lhe proteger, mestre. — Erne estava prestes a rir, considerando aquilo tolice, mas ao observar Dorni e notar sua expressão determinada, sentiu o poder daquelas palavras. O jovem parecia disposto a dar a vida por ele, algo que Erne não queria nem imaginar. — Darei minha vi-
— Não fale isso, você é jovem. — Admirando aquele lindo céu, já alaranjado pelo pôr do sol, continuou: — Tem uma vida inteira pela frente. — Virando o olhar para o chão, falou com pesar: — E, eu já estou velho.
— Mas…. — começou, erguendo um joelho e passando o braço por cima dele. — Eu quero… — Fitou o chão, e um sorriso puro surgiu em sua face. — Afinal, Você é minha única família…
Palavras que carregavam consigo sentimentos difíceis de até se mencionar, um misto acima de outro misto de emoções. Ao alento da alma, por finalmente ter alguém para chamar de família, contrapõe-se ao desalento da mente, com a possibilidade de perder a quem finalmente o deu o sentido da palavra: família.
Erne era um homem solitário; raramente discutia seu passado ou vida pessoal. O que Dorni sabia era que ele não tinha esposa, nem alguém para chamar de amor. Sem filhos, até onde conhecia, possuía apenas uma devoção sublime ao reino.
Mas ao captar a palavra simples, porém bela, conhecida como "Família". Acalentou sua alma, o acalento pouco sentido por um homem que apenas trazia morte, por ser quem era, um general temido.
Talvez por pouco ou nunca realmente importar-se com os sentimentos, nunca nutriu o amor ou carinho por alguém. Contudo, no âmago de seu espírito, uma vontade intrínseca de experimentar o verdadeiro sentimento familiar ressoava, mesmo que de maneira sutil.
— Família, é… — Uma lágrima escorreu por aquele rosto marcado. Cada marca que o pranto desenhava, representava uma história, uma batalha, uma dor, uma perda e, talvez, a falta de amor. Cada cicatriz carregava consigo a ausência de esperança na vida de alguém que apenas seguira cegamente ordens. Mas já era tarde demais para alguém como ele, e ele reconhecia tal verdade incômoda. Entretanto, mesmo que por um instante, Erne queria sentir o verdadeiro significado de sentimentos, o verdadeiro significado de família. — É… Você é minha família, Dorni.
“Por isso, garoto, não dará a vida por mim... Será a minha a ser trocada, caso se encontre próximo ao fim de sua estrada, neste mundo tão tortuoso.” Mentalmente, expressou o que verbalmente não podia; no recôndito de sua mente, essas palavras navegavam, pairavam e afloravam. No entanto, partilhar isso com o jovem Dorni, só acarretaria dor de cabeça, já que o rapaz não aceitaria. Por isso essas vontades e palavras ficaram guardadas a sete chaves, no fundo de teu ser.
— Senhor? — falou, observando Erne, ao que aparentava perdido em pensamentos e idéias. — Tudo bem?
— Estou melhor… — Família, Dorni virou isso para ele, alguém ao qual apenas a presença o afetava positivamente. — Do que imagina, meu caro Dorni.
“Caro Dorni? Nunca ouvi ele falando assim, o que será que ouve? Mestre idiota” Mesmo que o jovem ainda não compreendesse o que se passava na mente daquele velho general, o seguiria eternamente.
Bem, o dia passou como um dragão: voando. O sol se foi, cedendo lugar à lua brilhante. A noite havia caído ou surgido. Todos no campo de treino da elite, haviam deixado suas dependências e partido para suas respectivas casas.
— Primeiro general, Erne. — Batendo continência, uma aparentemente jovem, prestava respeito.
— Porque tanta formalidade, Segunda general Anelise? — perguntou Erne, não entendo porque de tanta formalidade assim, afinal, ocupavam o mesmo cargo. Ou seja, mesmo nível de importância. — Ocupamos o mesmo cargo….
Tais palavras pegaram a jovem general de surpresa. Ela havia conversado pouco com Erne, pois raramente ele saía das dependências do castelo. Quando o fazia, era para visitar campos de treinamento comuns, mas infelizmente ela sempre estava em uma missão ou expedição.
Mas os relatos eram aparentemente reais, destacando a humildade transcendental de Erne, ao ponto de até um mendigo ser bem tratado por ele.
— E-e — Tais respostas, a deixou em um pequeno estado de choque, onde as palavras fugiram de sua mente, e apenas grunhidos pouco significativos eram silabados. Mas, logo recompôs-se e as palavras voltaram a fluir por sua mente, formulando resposta. — Mesmo assim, você é o mais velho aqui, devo-
— Ei, tá me chamando de velho, mocinha? — Com uma expressão séria e um olhar penetrante, Erne a deixou paralisada. Droga, o que ela fez?
— E-eu... não quis. — Com as mãos à frente do corpo, tentava corrigir a situação.
Entretanto, a expressão séria mudou drasticamente para algo leve e descontraído.
— Hahaha! Estou brincando. — Aos gargalhos, ele colocou a mão na barriga. — Tinha que ver sua cara.
Erne adorava brincar com os mais jovens, pois eram ingênuos e cairiam em qualquer pegadinha. O velho general sempre foi um homem descontraído, apesar de sua fama de general cruel. Aqueles que realmente conheciam sua verdadeira natureza discordariam desses apelidos, até considerando-os um insulto.
Então a expressão um tanto quanto pasma da jovem general, transmutou-se para o desagrado, com um cruzar de braços e bater de pés.
— Que jogo sujo….
— Ha,ha… — Com uma risada sem graça, e com a mão na nuca, o General percebeu a besteira que havia feito. — Desculpa?
— Desculpado. — Descruzando os braços, colocou a mão na cintura. — De qualquer forma, vim aqui com um propósito.
"Um propósito? O que isso poderia significar?" Erne carecia dessas respostas e, então, notou a estranheza da presença da jovem. Normalmente, ela treinava as tropas comuns, ou seja, aqueles sem ligações com a elite. Para ela aparecer ali, provavelmente havia algo que desejava.
Com a experiência da idade, Erne notava detalhes que os mais jovens muitas vezes ignoram. Seus olhos experientes capturavam nuances que escapavam aos menos vividos. Erne era um homem velho, e com a velhice vinha a astúcia, e a habilidade um tanto útil de notar certos pormenores que faziam toda a diferença.
Sendo assim, foi sua vez de cruzar os braços, e ficar batendo o pé no chão.
— Então?
— Amanhã será o dia da invasão… — Já haviam passado os dias de preparação para a invasão. Na verdade, o dia da invasão fora adiantado, pois sentiam-se prontos. — Então, gostaria de dar uma noite de confraternização, para os soldados…. Assim, deixar suas morais altas.
Um pedido um tanto ousado; a invasão aconteceria no próximo dia. Homens e mulheres que beberam a noite inteira não eram considerados os mais confiáveis numa batalha. Mas fazia sentido. Podia ser o último dia em que veriam o mundo, talvez seus olhos tivessem a última visão vermelha horrenda, sendo seus próprios sangues, então porque não deixar a última memória ser feliz. Em uma guerra, mortes iriam ocorrer, então por que não deixar os bravos soldados terem uma última noite de festança?
Por que se opor a simplesmente deixá-los aproveitar a vida uma última vez? Seria crueldade negar tal pedido a àqueles que dariam sua vida, alma e ser pelo país. Seria desumano deixar os homens ou mulheres que tanto bradariam, morrerem sem uma última ação que poderia ser considerada a última dança, bebida, comida e cantiga.
— Tudo bem, eu permito. — Tais palavras surpreenderam até Anelise; pensava que teria que barganhar, mas ao que aparentava, o coração do velho general ainda resplandecia com centelhas de bondade e, compaixão por aqueles que dariam a vida por ti. Contudo, sempre havia um "mas", erguendo o indicador à frente do rosto. — Mas, devem estar em seus aposentos até uma hora da manhã. — Apontou para a lua. — Se não souberem quando é uma hora da manhã, é só observar a lua; quando estiver naquela posição, é o horário falado.
Em um mundo onde relógios não existiam, a forma de se manter no horário era observar os astros, lua e sol, o relógio que por tanto tempo a humanidade utilizou.
Assim, a jovem general afastou-se rapidamente, ansiosa para compartilhar as boas-novas. Em poucos momentos, o campo da elite encontrava-se repleto de soldados. Erne pediu permissão para tal ato, e, com Dborn nutrindo agora um certo apreço por Dorni, colaborou ativamente nessa empreitada.
Em pouco tempo, churrasqueiras improvisadas permeavam por todo o campo, mais se assemelhando a fogueiras do que a churrasqueiras, mas quem se importava? No final, a carne estava sendo assada, e de forma sublime. O aroma que se difundia no local era celestial, para além do divino; a saliva na boca de cada soldado atestava a afirmação. Junto ao aroma maravilhoso, surgia a visão de carnes variadas: cervos, alces, lobos e lebres, criando um verdadeiro festim para os olhos e paladares ávidos. Olhares que adquiriam brilhos.
Todo campo era iluminado por tochas, em cabos de madeiras fincados no chão, ao centro de toda a festança uma galera estava reunida apreciando o show do bardo. Óbvio que em uma festa a bebida não podia faltar: cerveja, vinho e whisky, junto a bebidas não alcoólicas.
Soldados... Não, eram pessoas dançando e festejando como se fosse o último dia de suas curtas ou longas vidas. Pois, no âmago de seus seres, sabiam que realmente poderia ser. Talvez ali, seria a última vez que sentiriam nem que fosse um pouco de felicidade, porque a guerra era assim: incerta, triste e desesperançosa. Somente os velhos que apenas mandavam, mas não lutavam, sentiam a felicidade durante tempos conflituosos. Já quem estava vivendo na pele, apenas sentia o inferno, o caos, o abandono da vida e qualquer fonte de esperança.
Mas mesmo que suas mentes lançassem essas indesejadas lembranças, ignoravam, pois sentir qualquer receio agora, significaria não aproveitar talvez o último momento.
— Um viva ao general Erne!!!
— Viva!!!!!!!!!!!! — Todos gritavam, saudavam aquele em quem depositavam suas esperanças, pois aquele homem e só ele, poderia trazê-los vivos de volta para suas casas, como fizera tantas vezes. A esperança de Estudenfel: Erne Dorkvir.
Erne, mais que ninguém, sabia dos perigos e adversidades que bloqueariam seus caminhos e atrapalhariam seus planos, talvez trazendo a morte de soldados. A maior fonte de perigo e adversidade tinha nome, forma e rosto: Aldebaram.
Mas por hoje, ele apenas, como todos, desejava ignorar tais pensamentos intrusivos e relaxar seu corpo e mente. Assim bebia, uma, duas, três e o tanto que aguentasse de garrafas de whisky.
— Vai com calma, mestre. — alertou Dorni, preocupado com a bebedeira desenfreada de Erne. Ao observar os arredores, notou Anelise no meio de seus homens e mulheres, como se fosse apenas mais uma. — Ela parece ser amada pelo povo.
— Ela é. — também a fitando, Erne respondeu. — Venha do povo e o povo apoiará, né? — Olhou para o jovem, aguardando alguma concordância, entretanto, nada… — É um ditado que acabei de inventar… — Dando um sorriso, continuou: — Mas, faz sentido.
Ignorando o papo de bêbado, que aquele alcoólatra discernia, voltou seu olhar para a general.
— General, tão nova e já nesse cargo, como? — perguntou Dorni
— Idade nunca terá ligação com a determinação…. — Deu outra golada na garrafa de whisky. — No fim, ela tinha determinação de sobra e assim ascendeu ao topo. — Balançando a garrafa já entre as pernas. — E, sustentou tal determinação, mantendo-se fiel às suas raízes.
Anelise, mesmo relutante, representava a evidência de que, mesmo em um mundo onde o poder é a essência, qualquer forma de poder, seja financeiro, social ou verdadeiramente o poder em si, alguém que surge de posições mais baixas pode, sim, ascender ao topo. Ao manter-se fiel aos seus dogmas e princípios, pode impedir uma queda abrupta e conquistar o amor e respeito das pessoas ao seu lado.
De certa forma, Erne sentia uma inveja não prejudicial e até melancólica dela. Afinal, tudo o que ela conquistou foi apenas sendo íntegra e fiel a tudo que sempre prometeu e tomou como cerne. Ele, por outro lado, teve que ser temido, odiado e matar incessantemente. Destruir famílias, lares. Tudo para chegar onde ela chegou sem passar por metade disso. Erne não queria que ela tivesse passado pelo que ele passou, até porque ele nunca foi assim. Na verdade, sentia-se feliz por ela conquistar tudo apenas sendo amada. Entretanto, se com ele tivesse sido do mesmo jeito, ele ainda seria assim? Não amado, e pouco gostado, ou as pessoas passariam realmente a apreciar sua presença?
— No final, todos me respeitam pelo que eu fui? Ou pelo que realmente sou? — Ainda balançando a garrafa de whisky entre as pernas. — O que eu realmente sou?
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Notas:
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