Volume 1

Capítulo 3.5: Reconciliação

— O escolhido se orgulhará de mim — disse Alaric, com um sorriso de satisfação no rosto e os olhos fechados, mas abertos para o novos tempos que viriam.

— Ei... Como sabe que sou o escolhido? — perguntou Gideon, enquanto ajudava Alaric a se levantar do chão. 

— Ouvi os guardas conversando assim que me jogaram aqui e me agrediram. Eles disseram: "Olha o escolhido ali". Só consegui ver um pedaço seu daqui de baixo, mas sempre serei capaz de te reconhecer, Gi.

— Guardas? — Gideon lembrou-se instantaneamente dos dois guardas que passaram por ele quando ia comprar ovos, murmurando: "Devia ter batido mais".

A raiva se acendeu dentro dele. Seus punhos se cerraram, e ele vociferou:

— Eles estavam falando de bater mais em você!? Eles vão pagar por isso!

Alaric, com um tom de tranquilidade quase infantil, respondeu:

— Ei, calma, Gi. Acho que é normal que os órfãos pobres não sejam bem tratados por aqui em Riven.

— Mas isso está errado. Ninguém deveria ser tratado assim — falou com uma intensidade que ressoava como um manifesto contra os opressores. — Ninguém merece esse tipo de tratamento, seja qual for a sua condição familiar, seja rico ou pobre.

Num piscar de olhos, Alaric deu um salto e abraçou Gideon com um fervor inesperado. Suas palavras, carregadas de uma confiança reconfortante, ecoaram suavemente:

— Calma, Gi. Tudo vai ficar bem. Eu confio que um dia você transformará tudo isso.

O abraço apertado não apenas oferecia conforto, mas também uma promessa de solidariedade para enfrentar os desafios que surgiriam.

Gideon, inicialmente atordoado, sentiu uma nova determinação crescendo dentro dele. Pensou: "Ainda não compreendo totalmente meu papel como o Escolhido. O que verdadeiramente me foi designado? Qual é a minha verdadeira importância? Mas uma coisa eu sei com certeza: como escolhido, tenho um vasto leque de opções diante de mim. Entre essas opções, considero a possibilidade de me tornar um rei ou uma figura de poder não para buscar luxo, mas para acabar com a desigualdade que assola este reino."

— Não será só eu a transformar este pedaço de terra. Nós dois, meu amigo, mudaremos a nobreza e a realeza. Faremos uma revolução neste reino pelo bem do povo humilde! — ele declarou, com eloquência e convicção; o "Escolhido" havia decidido.

— Estarei com você até o fim, não importa o que decida ou faça. Sempre acompanharei sua jornada, Gi — respondeu Alaric, com uma lealdade inabalável.

Podia ser apenas aspiraces de uma crianca, que achava que poderia agarrar o mundo com as mãos. Que tudo poderia ser resolvido com facilidade, era uma visão idealizada e inocente. Ainda assim, os ventos da mudança se aproximavam, iluminados pela luz prateada da Lua, que se tornaria a testemunha de uma nova era. Uma era onde os fortes protegeriam os fracos, caso o escolhidoou melhor, Gideon, cumprisse suas ambições.

A noite se tornava cada vez mais fria, avançando para a madrugada e se aproximando do amanhecer. Alaric e Gideon passaram horas conversando, como se fossem velhos amigos ou irmãos que finalmente tinham a chance de colocar o papo em dia. A alegria genuína era visível em seus rostos, iluminados pela luz pálida da lua.

— Olha o sol, Alaric. Vamos tentar encontrar uma saída daqui — disse Gideon, apontando para o horizonte onde o céu começava a clarear.

— Vamos, Gi — respondeu, já se pondo em pé, com êxtase.

Ao ouvir o apelido carinhoso, Gideon corou intensamente, a vergonha tomando conta de seu rosto.

— Para de me chamar de Gi...

Rindo, os dois começaram a seguir o curso da água que serpenteava pelo esgoto. A esperança de que o fluxo os levaria a uma saída parecia promissora. E não era em vão: após poucos metros, encontraram uma escadaria que ascendia de volta ao mundo exterior. Ao emergirem, a liberdade parecia ao alcance, e começaram a correr, seus passos rápidos e ansiosos.

De longe, duas figuras emergiam na penumbra, suas silhuetas delineadas pela luz fraca do amanhecer. Eram dois homens de pele clara e estatura mediana, cuja semelhança era inconfundível. Seus cabelos negros caíam suavemente sobre os ombros, criando um contraste marcante com as túnicas azuis que vestiam, as quais emanavam uma aura de mistério e sabedoria. Cada movimento dos homens era calculado, e seus olhares demonstravam uma determinação inabalável. Os traços de seus rostos revelavam uma história de experiências compartilhadas, e a harmonia em seus visuais indicava uma conexão profunda entre os dois.

Eles avançavam pela rua de terra, que se estendia pela favela de Reven, seus passos meticulosos sugerindo um certo desprezo pelo ambiente ao redor. A diferença entre seus trajes e os dos moradores locais era evidente, atraindo olhares curiosos e inquietos.

— Ei, o que é aquilo? — perguntou o primeiro homem, seus olhos demonstrando uma expressão de confusão.

— Imagino que sejam apenas dois órfãos, mendigos que se amontoam nos esgotos, Dalian — respondeu o segundo homem, Delilian, com um tom que misturava superioridade com um leve toque de pena. Seus olhos, embora desdenhosos, carregavam uma sombra de compaixão.

— Devemos nos preocupar com isso? Digo… devemos exterminá-los? Eles apenas emporcalham nossa cidade e a tornam alvo de críticas — Dalian falou com seriedade, seu tom carregado de preocupação. — Você sabe o que quero dizer, Delilian. Na última reunião do reino, fomos ridicularizados por situações como esta.

— Eu entendo — respondeu Delilian com uma calma que parecia desproporcional ao tema em discussão. — No entanto, somos de uma das famílias mais poderosas do reino, filhos de um mago renomado. Não seria prudente nos tornarmos conhecidos por exterminar crianças, não acha? — Ele falava enquanto continuava a caminhar, seu olhar fixo à frente, sem se desviar.

Dalian ponderou as palavras de Delilian e, resignado, continuou seu caminho. 

"Ufa, consegui persuadi-lo, graças a Athena", pensou Delilian, soltando os ombros com um suspiro de alívio, enquanto a tensão se desfazia lentamente.

— Aliás, irmão, você estava procurando o livro "Da Morte e da Vida", não estava? — perguntou Dalian, lançando um olhar inquisitivo para o irmão. — O "Equitiliun" foi encontrado?

— Não, irmão, ainda não. — Delilian fez uma pausa, uma expressão de tristeza obscurecendo seu rosto. — Já gastamos tantos recursos na busca, e com a guerra iminente, não posso me dar ao luxo de desperdiçar mais esforços nisso.

Os dois irmãos prosseguiram em direção ao seu destino, imersos em seus pensamentos. À medida que caminhavam, observavam o ambiente ao redor, notando a sujeira e o abandono que marcavam a paisagem. O cenário que se desdobrava diante deles era um reflexo sombrio da decadência que, de alguma forma, também os envolvia.

— É lindo aqui, não é, Alaric? — perguntou Gideon, um brilho de entusiasmo nos olhos.

— É mesmo, Gi, eu adorei. — Alaric olhou ao redor, sentindo uma mistura de surpresa e encantamento. — Não lembro de ter visto algo igual antes... Não que eu lembre de muita coisa. De qualquer forma, quero viver aqui para sempre!

Gideon e Alaric estavam imersos na atmosfera peculiar do lugar. À primeira vista, o cenário parecia pobre e desordenado: a estrada principal, coberta de terra batida, serpenteava ao lado de um esgoto a céu aberto, cujo odor nauseante pairava no ar. As vendinhas simples se alinhavam ao longo da rua, oferecendo uma variedade de produtos que contrastavam com a aparência desgastada do ambiente. As casas próximas à estrada eram construídas de tijolos e concreto, um testemunho do esforço para manter algum nível de dignidade em meio à adversidade. No entanto, conforme se afastavam para o interior da favela, as construções de madeira começavam a se tornar mais comuns, muitas delas em avançado estado de deterioração.

Apesar do aspecto áspero do local, Gideon e Alaric absorviam cada momento com uma alegria quase ingênua. Eles respiravam fundo, não se importando com o cheiro desagradável que emanava do esgoto. Para eles, o que importava era a conexão profunda que estavam experimentando, o fato de terem se encontrado e estarem compartilhando esse instante.

Enquanto caminhavam juntos em direção à casa de Gideon, os dois avistaram uma tropa de soldados. No entanto, o uniforme que usavam não era familiar. Os soldados estavam vestidos com uniformes vermelhos adornados com listras amarelas, e um brasão que Alaric e Gideon nunca tinham visto antes. A visão dos soldados trouxe uma mistura de curiosidade e apreensão.

Gideon, com o coração acelerado, decidiu se aproximar. Suas mãos tremiam ligeiramente; o nervosismo era palpável, dado que ele nunca tinha conversado com adultos estranhos antes, especialmente com soldados desconhecidos. Ele respirou fundo, tentando esconder a insegurança, e deu um passo à frente, pronto para iniciar uma conversa com os estranhos que cruzavam seu caminho.

— E-ei, olá… — Gideon gaguejou, sua voz trêmula traindo o nervosismo. Suas bochechas estavam tão vermelhas quanto tomates maduros, um sinal claro de sua timidez.

— Ah, olá, garotinho — respondeu o soldado com um sorriso afável, a voz carregada de simpatia. — Em que posso te ajudar?

Aquelas palavras tiveram um efeito instantâneo em Gideon. Seus músculos, que antes estavam tensos como cordas de violino, começaram a relaxar. Com um esforço visível para manter a confiança, ele avançou um passo e estendeu a mão para o soldado, oferecendo um cumprimento adequado..

Eles se encontravam próximo a uma tenda improvisada, suas paredes adornadas com o mesmo padrão de cores dos uniformes dos soldados. No topo da tenda, um enorme brasão balançava suavemente com o vento. O soldado, que estava sentado em um caixote de madeira desgastado, parecia estar à vontade, quase como se fosse uma parte integrante da estrutura da tenda.

Com um esforço consciente, Gideon tomou coragem e falou:

— Bom, é que nunca havíamos visto esse brasão antes, nem esse padrão de uniforme. — A tensão em sua voz havia diminuído, substituída por uma determinação crescente.

O soldado olhou para o garoto com uma expressão de interesse e, de forma inesperada, colocou a mão em sua espada, ainda sentado. Gideon, visivelmente assustado pela atitude, deu um passo para trás, recuando instintivamente. Alaric, percebendo o desconforto de Gideon, imediatamente avançou e se posicionou à frente do garoto, encarando o soldado com um olhar firme e resoluto.

O soldado, ao notar a atitude protetora de Alaric, relaxou sua postura e retirou a mão da espada, um sorriso brincando em seus lábios.

— Relaxa, mas você tem um amigo realmente corajoso, hein? Esse olhar…

Enquanto observava Alaric, o soldado não pôde deixar de pensar: "Esse olhar… é o olhar de alguém determinado. A única pessoa que eu vi com um olhar assim foi nosso senhor."

A tensão no ar começou a dissipar, substituída por uma atmosfera de respeito mútuo e reconhecimento silencioso. A tenda, com seu brasão balançando lentamente ao fundo, parecia testemunhar esse pequeno momento de compreensão entre os jovens e o soldado.

— Ele é, sem dúvida, o mais corajoso que já encontrei — afirmou Gideon, enquanto repousava a mão firmemente no ombro de Alaric e se adiantava para assumir a liderança da conversa. Seu tom era grave e repleto de respeito, refletindo a profunda admiração que sentia pelo amigo.

— Em consideração a essa coragem, revelarei um pouco sobre nós.

O soldado começou a expor a sua história com uma voz que tremia ligeiramente, não de medo, mas de uma emoção contida. Ele revelou que eles faziam parte de uma revolução oriunda do reino vizinho, Re'Loyal. Sua luta era contra a opressão brutal do rei atual e a corrupção desenfreada que haviam mergulhado a nação em fome e desigualdade social. Era uma guerra desesperada, travada não apenas com espadas e escudos, mas com a esperança de um futuro mais justo.

O líder da revolução era Espinhard, um príncipe outrora nobre, agora rebaixado a plebeu. Seu destino, inicialmente marcado por uma queda dramática, havia se transformado em uma ascensão ainda mais notável. Espinhard se erguia como a figura que poderia conduzir a revolução ao triunfo e se assentar no trono como o futuro rei, se a vitória fosse alcançada, é claro.

Para preparar seus ataques ao reino vizinho, a revolução havia estabelecido bases em Aldemere Dominium. A escolha de Aldemere como local de refúgio e planejamento era estratégica, mas também complicada. Embora Aldemere estivesse temporariamente em paz com Re'Loyal, a relação entre os dois reinos era um jogo intrincado de interesses e traições, ainda mais considerando que Re'loyal era uma reino extremista. Contudo, era claro que Aldemere não ofereceu abrigo por pura benevolência; o reino tinha seus próprios motivos, enraizados na ambição e na ganância. O acordo o reino e a revolução estava longe de ser um simples ato de solidariedade.

O soldado não mencionou os benefícios que Aldemere esperava obter com a eventual queda de Re'Loyal, mantendo esses detalhes sob sigilo. A complexidade de tudo isso levou Gideon a pensar em respostas para a situação.

Gideon havia se interessado profundamente pelo assunto, motivado pela sua própria revolta contra o reino desigual que o cercava. Seu desejo de compreender as intrincadas teias da politicagem e da malícia que governavam o mundo era movido pela ambição de, um dia, se inserir nesse jogo de poder. Ele queria entender todos os mecanismos por trás da manipulação e da astúcia que moldavam as decisões dos poderosos.

Alaric, fascinado pelo cenário que se desdobrava diante de seus olhos, observava com uma concentração quase reverencial. Cada palavra, cada movimento, era cuidadosamente absorvido e processado. A mente do jovem estava em um turbilhão, reformulando respostas e ponderando sobre o que via e ouvia. Em um momento de ousadia, ele fez uma afirmação que deixou o soldado visivelmente perturbado.

— São terras, né? — perguntou Alaric, com uma confiança que beirava o desdém.

O soldado virou-se para ele com os olhos arregalados, um misto de surpresa e incredulidade estampado no rosto.

— Como… — Ele fixou seu olhar desconfiado em Alaric. — Você sabe, criança?

— Foi um chute — respondeu Alaric, sem se abalar.

O soldado, embora cético, não podia dar muita importância à resposta de uma criança. Como era apenas um palpite feito por alguém tão jovem, ele decidiu ignorar e expulsar os dois meninos do local, que começavam a se tornar uma fonte de incômodo.

Assim que foram expelidos, Gideon e Alaric se afastaram. Alguém, então, surgiu de dentro da tenda por trás do soldado.

— Quem eram? — indagou Espinhard, seu olhar curioso fixado no soldado.

— Só crianças curiosas, meu lorde — respondeu o soldado, com uma leve reverência.

Espinhard deu uma rápida olhada para os meninos antes de voltar aos seus afazeres, mergulhado novamente em suas responsabilidades.

Enquanto isso, Gideon e Alaric se aproximavam da casa do jovem. De repente, um grito cortou o ar, chamando o nome dele. Era a voz angustiada de seu avô, que, desde o dia anterior, havia percorrido ruas e vielas à procura do neto.

Dolbrian, com o rosto marcado pela preocupação e pelos anos, apareceu na entrada da casa. Seus olhos brilhavam com uma mistura de alívio e desespero. Com passos rápidos e firmes, correu em direção a Gideon, suas mãos trêmulas estendendo-se para o jovem.

Quando o alcançou, não hesitou em envolvê-lo em um abraço apertado, carregado de emoção. Gideon sentiu-se ser levantado do chão, seu corpo acolhido pelos braços fortes e seguros do avô, e imediatamente foi transportado para os dias de sua infância, quando era erguido desse jeito apenas para sentir-se protegido e amado.

O ancião, com um cheiro penetrante de suor misturado com o aroma de envelhecimento e esforço, revelava o quanto havia se dedicado à busca. Gideon não pôde evitar sentir um peso de culpa, a sensação de que sua ausência havia causado sofrimento e preocupação desnecessária. As perguntas não ditas:"Onde você estava?", "O que aconteceu?", "Por que sumiu?"

Pareciam ecoar em sua mente, carregadas de uma urgência desesperada. Ele podia sentir a respiração acelerada do avô, o tremor em suas mãos e o calor de seu corpo, tudo isso contribuía para o peso emocional do momento.

Mas nem sequer houve tempo para Gideon explicar os motivos. Antes que pudesse abrir a boca, seu avô apontou para um garoto próximo e perguntou com uma voz seca e incisiva:

— Quem é ele?

O dedo do avô estava fixo em Alaric, que estava um pouco afastado. Gideon, respirando fundo, começou a apresentar o jovem. Seu avô o escutou em silêncio, sem demonstrar emoção. Quando Gideon terminou, o avô apenas disse:

— Entre.

Ele então abriu a porta da casa, um gesto que parecia simples, mas carregava um peso de acolhimento inesperado.

Alaric observou o ambiente à sua frente com um brilho nos olhos. O sorriso em seu rosto era amplo e radiante, quase visível de longe. A euforia o envolvia, era como se a alegria estivesse prestes a transbordar de seu corpo. A casa diante dele, embora visivelmente envelhecida e com sinais de desgaste, era para ele um refúgio de calor e conforto que ele nunca havia experimentado.

Ele se sentia como se tivesse encontrado um pedaço de lar perdido. Gideon seguiu-o, e os dois se dirigiram para a sala onde Dolbrian já estava sentado.

Gideon se acomodou em uma cadeira em frente ao avô, e com um olhar carregado de tensão, começou a narrar toda a história, cada detalhe com a precisão de quem trazia um fardo pesado. Suas palavras fluíam entrecortadas por suspiros e o tremor da voz, como se cada frase fosse um grito por justiça e compreensão.

— Por quê? Por que você nunca falou sobre minha mãe, avô? — Gideon cerrou os punhos, a raiva e a dor se refletindo em seu olhar fixo no chão, enquanto lágrimas quentes escorriam pelo seu rosto. Sua voz estava embargada, quase quebrando com a força da emoção reprimida. — Você mentiu para mim… Sempre acreditei que ela havia nos abandonado, e eu a odiei por isso...

Alaric, observando a cena com um peso no coração, sabia que a situação era profundamente pessoal. Ele optou por permanecer em silêncio, sentindo a culpa e a tristeza consumirem cada fibra de seu ser. O ancião sabia que havia cometido um erro, mesmo que tivesse sido com a intenção de proteger Gideon de uma dor maior. Era uma falha dolorosa, e ele não podia oferecer mais do que sua própria aceitação de culpa e arrependimento. Com a cabeça baixa, ele absorvia as palavras de Gideon, sem uma resposta ou qualquer tentativa de justificar suas ações.

— Mas sabe, vô… Eu pensei muito sobre isso a noite toda, durante todo aquele tempo no esgoto perdido... E... depois de tudo que passei, tudo que refleti... Eu te perdoo.

Gideon disse isso com um sorriso genuíno começando a se formar em seu rosto, as lágrimas ainda escorrendo, mas agora misturadas com uma luz de compreensão e aceitação. Suas mãos, que antes estavam cerradas e carregadas de frustração, se estenderam na direção de seu avô, abertas e acolhedoras.

O avô e o neto deram um passo um em direção ao outro, e a distância que os separava foi rapidamente reduzida. Quando se abraçaram, o peso das emoções acumuladas se desfez em um abraço apertado. O choro de ambos se misturou em um lamento coletivo, um testemunho da dor e do perdão. Sentindo o vínculo emocional intensamente, o avô, com um gesto de ternura e bondade, estendeu o convite a Alaric para se juntar ao abraço. Sem hesitar, Alaric aceitou, envolvendo-se com eles em um abraço reconfortante. Nesse gesto, a dor e a confusão se dissiparam lentamente, substituídas por um sentimento de unidade e cura.

— Me perdoe, mas agora você conhece a verdade. — Dolbrian se acomodou novamente na cadeira, seu olhar fixo em Gideon. — Vocês falaram sobre Luna? A deusa apareceu para vocês?

Alaric e Gideon se levantaram, um gesto que refletia a seriedade do momento.

— Sim, vô. — A resposta de Gideon foi carregada de um misto de reverência e apreensão.

Dolbrian suspirou profundamente antes de começar a explicar. Ele sabia que poucos tinham o privilégio de conhecer a verdadeira história por trás das deidades. Seus olhos, cansados e cheios de sabedoria, se fixaram em seus netos enquanto começava a narrativa.

— Há muito tempo, os deuses não se limitavam a ser observadores distantes; eles estavam profundamente envolvidos nas guerras entre reinos e em várias outras formas de interferência na vida dos mortais. Sua intervenção, ao invés de promover a paz, frequentemente resultava em devastação. As disputas entre eles, muitas vezes motivadas por egoísmo, apenas intensificavam os conflitos e o sofrimento mortal. Além disso, eles agiam conforme sua vontade, sem qualquer consideração pelas consequências. Muitos deuses que valorizavam o livre-arbítrio e o bem-estar do seres vivos estavam descontentes com essa interferência e com a situação caótica que ela gerava.

O velho se inclinou um pouco para frente, como se a intensidade da história exigisse uma aproximação física.

— Para evitar que tal cenário se repetisse indefinidamente, os seres divinos, que desejavam preservar a autonomia e a própria existência dos mortais, propuseram a criação de um mecanismo para limitar sua influência sobre o mundo terreno. Assim, surgiu a ideia de erigir uma barreira.

Ele fez uma pausa, os olhos brilhando com a intensidade da história.

— Muitos deuses rejeitaram essa proposta, o que desencadeou a "Segunda Guerra Celestial". Esse conflito devastador levou à extinção de inúmeras divindades e à confusão das mitologias que conhecemos. Por isso, não temos uma fé unificada; cada um de nós acredita apenas no deus com o qual se identifica. O mais importante, porém, é que as forças vitoriosas foram aquelas que concordaram com a criação da barreira.

O silêncio que se seguiu era pesado com o peso da história. Dolbrian continuou, sua voz agora mais baixa, quase como um sussurro.

— Com o término da guerra e a vitória dos deuses que aceitaram a proposta, foi erguido um "escudo" mágico, uma barreira que separava o domínio celestial do mundo dos mortais. Este pacto sagrado foi estabelecido para proteger a humanidade da influência direta dos deuses e demônios, e de qualquer entidade que não pertencesse ao plano terreno.

Ele olhou para Alaric e Gideon com um olhar de pesar.

— Entretanto, os humanos ainda necessitavam de uma forma de se comunicar com as divindades, seja por magia ou por outras razões. Foi então que os magos de Alexandria criaram as "Recitações", um conjunto de palavras que abria uma "Porta" entre os reinos celestial e mortal. Essas recitações permitiam a invocação de um deus para ajudar, abençoar, ou para qualquer outro propósito.

Dolbrian fez uma nova pausa, seu rosto expressando a tristeza pela perda dos conhecimentos antigos. Ao mesmo tempo, ele assumiu uma expressão grave, preparando-se para revelar algo sério.

— Infelizmente, com o tempo, essas recitações foram se perdendo... Ou seja, meu neto, Gideon, você não deveria sequer ter conhecimento disso. O segredo que envolve essas palavras era um privilégio reservado a poucos, e, nos dias de hoje, praticamente não existe mais.

Os netos estavam em silêncio, absorvendo o peso das palavras e a complexidade das forças que moldaram o mundo como conheciam, algo grande parecia estar sendo urdido nas sombras.



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