Volume 1

Capítulo 10: Orem por mim

 

Mesmo depois que os aldeões foram dormir, eu continuei encarando a tela do computador.

 

Como pode alguém que tem uma vida tão real ser apenas um NPC de um jogo?

 

Rodis está dormindo em uma cama junto de sua família.

 

O Gamz e a Chem estão dormindo no mesmo quarto, mas o Gamz está deitado no chão, em um “colchão” improvisado, feito de folhas secas e pele de animais, enquanto sua irmã dorme na cama. 

 

E o Murus está silenciosamente dormindo em um quarto separado, sozinho

 

— Não tem como, eles parecem muito seres humanos reais.

 

Eu tento evitar pensar neles como se fossem apenas personagens que são fruto de uma inteligência artificial extremamente avançada, mas eu não consigo pensar em nenhuma outra explicação do porquê eles são tão humanos assim.

 

Quero ajudar os personagens a fundarem um vilarejo, claro, eu fico feliz em receber esses tributos em troca, mas… será que eles realmente estão bem com isso?

 

Fora que dentro de dez dias eles serão atacados por monstros, talvez até mesmo uma horda deles.

 

Se eu trouxesse mais alguém à eles, para ajudar na defesa, o peso nas costas do Gamz diminuiria drasticamente e as chances de sobrevivência de todos subiria bastante.

 

O problema é que: eu não tenho como saber o caráter, o tipo de personalidade, da pessoa que vai vir.

 

Normalmente, as pessoas costumam pensar em jogos assim - com esses tipos de decisão, como um jogo tático, mas a inteligência artificial prova que esse jogo exige muito mais do que apenas estratégia. Aqui, existem inúmeros fatores que devem ser levados em consideração e não só aumentar o poderio militar do vilarejo.

 

Mesmo se o personagem que vier for habilidoso, se seu comportamento for problemático ele só traria problemas para os outros aldeões. Talvez a harmonia entre os personagens possa ser destruída antes mesmo do dia do ataque chegar.

 

É por isso que hesito tanto em aumentar o número de personagens.

 

E não faz sentido eu tentar armar os personagens não combatentes, já que as únicas pessoas que sabem usar as armas que estão disponíveis lá na caverna são o Gamz e o Murus. Claro, melhorar a cerca de madeira em volta da caverna para um muro de pedra também é uma ideia válida, mas a questão é: como que eu vou arranjar os materiais e a mão de obra? Será que o muro ficaria pronto a tempo?

 

Claro, tem alguns minérios sobrando na caverna e tudo mais, mas com certeza não seria o suficiente para reforçar o muro inteiro, fora que o processo provavelmente é bem mais complicado do que eu imagino.

 

Deixa eu ver quais milagres seriam úteis para ajudar nessa situação.

 

Hmm… tem esse “um grupo de mercenários visita e temporariamente presta seus serviços”, é uma opção barata e pode ajudar na defesa. Um outro que eu achei interessante foi o “Um grupo de caçadores passa três dias na aldeia”, esse também seria uma opção válida.

 

Se eu calcular bem o tempo, e usar o milagre na hora certa, pra eles estarem com os aldeões no dia do ataque seria uma boa…

 

O foda é que as pessoas que aparecerem podem ser perigosas. Talvez eu tenha dado sorte com Murus ser alguém tão confiável e de bom coração.

 

— Se fosse um jogo normal… eu não ia precisar ficar me preocupando com esse tipo de coisa.

 

Mas esse jogo é fora do comum, pode acontecer de tudo e toda ação traz uma consequência.

 

Uma outra opção boa também é comprar aquele Familiar, o Golem, que eu estava interessado antes.

 

Como sou eu que vou estar controlando o Golem, é garantido que ele não vai causar mal nenhum aos outros personagens,  e outra - os golens não falam. Além disso, o Golem também pode ajudar com sua força no trabalho físico e ele não precisa de descanso.

 

— O único problema dessa opção é que o Golem é caro, bem caro, ele custa muitos pontos.

 

Eu tenho só metade dos Fate Points que eu preciso pra comprar o Golem.

 

Ultimamente eu tenho ganhado mais pontos do que antes por causa das oferendas, mas ainda assim eu não conseguiria juntar tudo que eu preciso em menos de dez dias.

 

— É, o jeito vai ser gastar dinheiro de verdade.

 

Se eu tivesse dinheiro sobrando, eu não pensaria duas vezes antes de escolher essa opção. Mas eu não tenho nada, nada, nada de dinheiro na minha conta do banco.

 

Na verdade, sendo mais preciso, eu tenho cerca de cem ienes, mas não dá pra comprar nem um chiclete direito com isso.

 

Olhei em volta do meu quarto, vendo se tinha alguma coisa pra vender ou não, mas todos os jogos, mangás e romances que eu tinha já foram vendidos. Só sobraram alguns halteres que eu uso pra me exercitar, se eu vendesse os equipamentos de exercício também só ia sobrar poeira pra vender.

 

Será que eu peço emprestado da minha família?

 

… Não, melhor não. Não quero prejudicar minha relação, justo agora que finalmente estou voltando a me dar bem com eles.

 

Pedir dinheiro emprestado pra minha irmã… Nah, nem ferrando. Nem a pau eu vou fazer isso.

 

E se eu vendesse as oferendas dos aldeões?

 

Não vou vender aquelas frutas exóticas que eles me mandam, mas os troncos podem acabar sendo uma boa ideia. Vou dar uma pesquisada aqui em como funciona a venda de madeira.

 

— Hmm… então eu não é necessário nenhum tipo de autorização especial pra conseguir vender a madeira, a única coisa que pedem é que a madeira seja processada antes.

 

É, tá aí uma coisa que eu não consigo fazer.

 

E outra, mesmo se eu conseguisse anunciar os troncos de madeira à venda, não ia ser garantido que alguém ia comprar em menos de dez dias.

 

— Será que vale a pena mesmo gastar tanto dinheiro nesse jogo? Talvez seja melhor eu jogar outra coisa…

 

Fugir sempre é a alternativa mais fácil, mas eu não quero abandonar os aldeões.

 

Agora, abandonar esse jogo seria uma tarefa impossível pra mim. Jogar Village of Fate já virou parte da minha vida.

 

— Na verdade, eu sei de um jeito…

 

Um jeito garantido de ganhar dinheiro.

 

Entrei em um site específico pra isso no meu computador.

 

— O site de vagas de emprego.

 

Sim, dá pra ganhar uma grana boa trabalhando em meio período.

 

A maioria das pessoas considera essa opção como a mais simples e direta.

 

Mas… eu nunca trabalhei antes. Na época do ensino médio e da faculdade eu passei muito tempo estudando em casa, então nunca procurei um emprego de meio período.

 

Quando eu estava na faculdade, eu tive a oportunidade de fazer um estágio em uma empresa interessante, mas eu acabei ficando muito ansioso durante a entrevista e acabou não dando certo.

 

Claro, ficar nervoso durante a entrevista não foi o único problema. Talvez o que tenha me atrapalhado na hora de falar foi o meu orgulho. O salário não era bom e as condições não eram interessantes pra mim e eu acabei fazendo pouco caso dessa oportunidade.

 

Se eu tivesse aprendido alguma coisa sobre esse erro na época, hoje em dia eu com certeza estaria em uma situação melhor. O ruim é que, depois, quando eu estava procurando outras vagas de emprego eu acabei cometendo o mesmo erro de novo e de novo. Eu só enviava meu currículo para empresas multinacionais e de alto patamar, querendo cargos que pagassem bem e que tivessem várias vantagens, desnecessário dizer que não deu certo.

 

Mas mesmo assim, meu orgulho ainda não havia sido completamente destruído.

 

Já se passaram dez anos desde então. Eu até pensei em tentar arranjar um emprego algumas vezes, mas nunca corri atrás de verdade.

 

Sim, eu queria trabalhar, mas eu tinha medo de me decepcionar de novo, eu estava assustado. Eu nunca tinha feito nada sozinho até então.

 

Tipo, até mesmo os procedimentos para entrar na faculdade, matrícula, documentação etc, foram os meus pais que fizeram pra mim. Depois que me formei, até consegui chegar em outra entrevista de emprego, mas dizer que eu fiz isso sozinho seria uma mentira.

 

Meu pai usou suas conexões para me indicar em algumas empresas, mas ainda assim… tudo que consegui fazer foi decepcioná-lo.

 

Já estou nos meus trinta. Era pra eu estar começando uma família com essa idade, tendo filhos já.

 

Mas por causa do meu orgulho, por culpa dele eu acabei nessa situação de merda. Eu tô no fundo do poço, esse é o fim da linha pra mim, eu sempre usei desculpas pra fugir da realidade, e agora estou aqui.

 

“Amanhã eu começo” ... “Amanhã eu vou me esforçar mais” … “Amanhã eu faço isso” … “Amanhã eu faço aquilo” cansei disso… droga, eu não quero continuar assim mais.

 

Esse “amanhã” nunca chegou.

 

Minha mãe estava sempre me apressando, meu pai sempre me criticando e a minha irmã sempre me chamando de estúpido, burro… e de idiota. E mesmo assim eu não tentei ir atrás de melhorar.

 

Essa é a minha última chance. Se eu não tentar hoje, vou acabar continuando assim pro resto da minha vida.

 

— Eu quero mudar, droga! Eu tenho que mudar!

 

Fui olhando as ofertas de trabalho de meio período no site. Minhas mãos estavam tremendo.

 

Se eu não conseguir o tanto de Fate Points que preciso, os aldeões vão ser exterminados no final do mês. Eu tenho que achar um emprego que eu consiga ganhar a quantia de dinheiro que falta para comprar o Golem antes do dia trinta.

 

Praticamente não tem nenhum emprego de meio período que seja possível conseguir o que eu quero, e eu não tenho as qualificações necessárias para trabalhar nos que pagam bem e rápido.

 

O contrato de trabalhos em lojas de conveniência varia, pedindo entre alguns meses ou meio ano de serviço. O problema é que já faz um bom tempo desde que eu conversei com alguém que não seja da minha família.

 

Também tem os trabalhos braçais, que exigem bastante esforço físico - tipo ajudante de pedreiro, mas será que eu consigo trabalhar nessas condições? Ainda mais que eu tô fora de forma.

 

Não tenho muito tempo sobrando, é melhor eu me decidir logo.

 

Não existem muitas opções de empregos assim aqui perto de casa. O ruim é que eu moro meio que no interior, e a maioria dos empregos exigem que o funcionário tenha uma carta de motorista. Nossa, seria muito mais fácil encontrar um bico bom pra fazer se eu pudesse dirigir.

 

Melhor eu dar uma olhada nas revistas de vagas de emprego também, já que eu não achei muita coisa na internet.

 

Logo me arrumei e desci as escadas.

 

— Êh… você vai sair agora?

 

— Sim. Mais tarde eu volto.

 

Após responder minha mãe fui até minha bicicleta.

 

Tô nem aí pro que os vizinhos vão pensar de mim hoje, podem ficar me olhando à vontade. Por mais que eles não tenham mudado nem um pouco, hoje eu não vou me deixar abalar - quem mudou fui eu.

 

Comprei algumas revistas e jornais anunciando vagas de emprego, uns na livraria mesmo e outros no mercadinho.

 

Quando eu estava voltando para o meu quarto, me deparei com minha mãe, ela parecia bem surpresa ao ver as revistas que eu tinha comprado.

 

Chegando no meu quarto, comecei a circular as vagas de emprego que eram do meu interesse com uma caneta vermelha. Fazer isso deixou mais fácil separar as opções boas das ruins e pesquisar melhor sobre elas na internet.

 

— Filho, a comida tá pronta!

 

Ouvir a voz da minha mãe me chamando para jantar me fez sair do mundo da lua e voltar pra vida real.

 

Caramba, já está bem escuro lá fora. Pelo visto eu acabei me concentrando demais e não percebi o tempo passando.

 

Quando cheguei na sala de jantar, meus pais estavam lá. E a minha irmã também.

 

Ela ainda estava vestindo sua roupa social de trabalho.

 

— Nossa, você chegou cedo hoje.

 

— O que tem? Algum problema com isso?

 

Como sempre, ela me respondeu com duas pedradas.

 

Antigamente, ela costumava dizer “Quando eu crescer, eu vou casar com o meu irmãozão!”, mas hoje em dia ela sempre fala assim comigo - de um jeito frio e distante.

 

 — Acontece que hoje o meu serviço terminou mais cedo, não tive muito trabalho para fazer.

 

— Ah, erm… que bom.

 

Fiquei surpreso com o quão naturalmente essa resposta saiu de mim.

 

Sério… até esses tempos, sempre que alguma coisa do tipo acontecia, eu arranjava uma desculpa pra ficar de mau humor e voltar pro meu quarto. Eu me recusava a conversar com a minha irmã porque eu tinha medo de me machucar.

 

Quando sentei, notei que a minha irmã estava me olhando. Talvez ela esteja um pouco pensativa, já que faz bastante tempo desde que todos nós jantamos juntos, assim.

 

— Mãe, hoje é algum dia especial ou alguma coisa assim? É impressão minha ou… a comida parece um pouco mais extravagante que o normal?

 

— Ué, vocês não sabiam? O Yoshio começou a procurar um emprego.

 

— Gweh! Coff! Coff! Ahem…

 

Que que é isso?! Do nada ainda! Acabei me engasgando com chá depois dessa.

 

— Erm.. sim, mas –

 

— Até que enfim ele está motivado.

 

Meu pai levantou uma sobrancelha e então ele e minha irmã lançaram seus olhares em minha direção.

 

Poxa pessoal, não me olhem assim. Eu vou acabar ficando vermelho.

 

— Sim, mas é só um trabalho de curto prazo em meio período.

 

— Tudo bem. O importante é estar motivado.

 

Meu hashi parou de se mover depois que meu pai fez esse comentário.

 

O jeito que meu pai se porta ao falar comigo é como se ele estivesse conversando com algum funcionário.

 

— Irmão, você anda meio diferente ultimamente… será que você arranjou uma namorada?

— Não, não é por isso que o Yoshio está motivado.

 

Ué, por que que a minha mãe respondeu por mim?

 

Nossa, parando pra pensar… faz tempo desde que a minha irmã me chamou assim.. de “irmão”. Normalmente ela me chamava de “ei, você” ou de “sai da minha frente, cara”.

 

Tô me sentindo meio desconfortável com o rumo da conversa, então acabei desviando meu olhar pra baixo inconscientemente. Meu rosto ficou meio quente, acho que minhas bochechas devem estar coradas agora.

 

— Hmm… então tem a ver com aquele vilarejo que te envia algumas coisas?

 

De vez em quando, o meu pai que recebe as entregas do Village of Fate, mas é meio raro isso acontecer.

 

— Uhum… sim, por mais que eu já esteja ajudando a vila um pouco, eu queria fazer alguma coisa a mais por eles, dar algo em troca por todos presentes que eles me enviam. Se não, eu ia acabar me sentindo mal.

 

Querendo ou não, eu falei a verdade.

 

Meus pais acham que eu estou ajudando a desenvolver uma vila chamada “Vilarejo do Destino”.

 

Eles parecem bem convencidos, já que eu sempre recebi várias encomendas sem pagar nada em troca.

 

— Vilarejo? Que vilarejo? Por que parece que só eu não tô por dentro do que vocês estão falando?

 

Minha irmã nem tentou esconder sua curiosidade e acabou se inclinando na mesa, pra mais perto de mim enquanto me encarava com um olhar questionador.

 

— Filha, isso é falta de educação. Mais tarde a mãe vai te explicar melhor. Vá comer antes que sua comida fique fria.

 

Minha mãe bateu de leve na cabeça da minha irmã com um hashi.

 

Não quero ter que contar as coisas para a minha irmã mais nova, vou deixar a minha mãe explicar no meu lugar mesmo.



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