Sakurai Brasileira

Autor(a): Pedro Suzuki


Volume Único

Capítulo 43: Decepções, barcos e fedores

Pavlov que já estava acostumado com esses tipos de ataques, sempre andava com uma equipe de mecânicos em viagens longas, graças a isso, em uma hora o trem foi concertado e logo todos estavam de volta ao seu caminho, como se nada tivesse acontecido. 

Todos, menos Hiroshi. 

Ele, que confiava plenamente em seus sentidos aprimorados pelo vazio, ainda estava com toda a cena fresca em sua memória, revisando cada pequeno detalhe, em busca de tentar compreender algo que não fazia sentido. 

Sua visão certamente era boa o suficiente para conseguir enxergar com tranquilidade até uma bala, além disso, com base na luta passada, Mário não era rápido a esse ponto, muito longe disso. 

“Ele usou algum truque? ele estava se segurando? Ou eu que estou ficando fraco? Será que nunca fui forte, só estava sendo iludido por estar rodeado de pessoas fracas?”, essa luta incompreensível despertou um sentimento há muito tempo congelado no coração de Hiroshi. 

— Eu preciso ir treinar... Não! Eu já decidi que iria largar para sempre isso. — Como um recém ex-alcoólatra tentando resistir a uma garrafa de sua bebida favorita deixada a sua mesa, Hiroshi lutava contra seus antigos impulsos, que pensava que já havia superado. — E se o Mário não for o único enviado dessa vez? E se o guarda ainda não tiver voltado? Então eu tenho que ficar mais forte, eu preciso treinar. Não posso deixar todos morrerem... Droga, por que estou assim!? 

Hiroshi abriu a janela e colocou sua cabeça para fora do trem, com a esperança da agradável brisa e aroma da natureza limparem esses pensamentos. 

— Que cheiro ruim... Fecha isso aí... — disse Boris, sonolento. 

Porém, o que recebeu foi um cheiro terrível vinha da fumaça de um lago distante, que fedia como enxofre. O que sem querer acabou sendo ainda mais efetivo para distrair a mente de Hiroshi, que fechou a janela assim que se acalmou. 

— Isso me lembrou de um prato. — Só o cheiro não havia sido completamente efetivo. No momento sua mente estava vazia de pensamentos além do arrependimento de ter aberto a janela, mas logo as tentações de ir voltar a treinar retornariam, então ele decidiu fazer o que havia funcionado até hoje. — Vou cozinhar, já volto. 

— Que prato quer fazer? 

— Um ovo milenar. 

— A gente até deve ter alguns ovos na dispensa, mas nenhum estragado. 

— Não precisa ser literalmente milenar, eu posso tentar simular o gosto. 

— E por que você faria isso? Não tem nada mais razoável não? 

— Posso fazer uma omelete comum, mas não teria graça.  

— Vou ter que discordar com você, o Victor me ensinou algumas receitas malucas usando ovos. Teve um dia que ele até me obrigou a comer um prato feito com a casca... Depois disso não tem como dizer que não tem graça. 

— Mesmo que diga isso, ainda não acho que seja o suficiente. Alguma coisa mais estressante, mais difícil... Já sei. Tem soja na dispensa? 

— Provavelmente, mas tem que ir lá ver. 

— Até hoje eu ainda não tentei fazer nenhuma comida fermentada caseira e aqui deve estar faltando todas as ferramentas para isso. Perfeito. 

— O que?  

Na próxima parada, Hiroshi desceu do trem e foi até o vagão depósito para pegar tudo que precisava. Ele improvisou diversos passos da receita com ideias inventadas, usou ingredientes estranhos para compensar os que faltavam, construiu as ferramentas que faltavam a mão, com ajuda dos mecânicos e deixou a soja para fermentar durante a noite. 

— E então? — perguntou Boris. 

— Deixa eu ver... — E Hiroshi hesitantemente provou seu experimento. — Melhor do que parece, mas ainda dá para melhorar bastante. 

Os dias passaram, mais problemas aconteceram nas estações, mais experimentos foram feitos e mais discussões acaloradas aconteceram.  

Eles já estavam próximos do mar quando Hiroshi finalmente ficou satisfeito com o prato. 

— Experimente — disse Hiroshi, oferecendo um prato de arroz acompanhado de um pote de vidro cheio de grãos marrons, de aparência muito mais aceitável que as tentativas anteriores. 

Natto? — perguntou Boris. 

— Isso mesmo, como sabia? 

— Esqueceu que a Yoko é japonesa também? Ela já pediu algumas vezes, mas nunca provei. 

— Que bom que já sabe o que é, pode comer. 

Boris pegou uma colher de madeira e abriu o pote. Sua reação inicial foi indiferente, apesar do cheiro forte, então ele pegou uma colherada, mas ao ver os fios gosmentos que ligavam os grãos de soja fermentada, devolveu a colher ao pote e fechou no mesmo instante. 

— Já provei coisas muito ruins do Victor contra a minha vontade, mas isso é demais até para mim — disse Boris. 

— Entendo. Podemos tentar de novo outro dia. 

— Outro dia não, por favor nunca. 

Hiroshi pegou o prato de arroz, misturou com o natto e comeu. 

— Tudo bem. — Nesses dias, o impulso de treinar havia desaparecido. 

— Finalmente chegamos! — exclamou Pavlov. 

— Mas ainda falta o mar para chegarmos no Japão — disse Mikhail. 

— Seu pai só está animado de não ter que andar mais de trem — disse Hiroshi.  

— Trens são chatos e aqueles barulhos mecânicos me irritam demais. O mar e barcos são românticos! Lendários! Mitológicos!  

— Passo mal nos dois. Qual a diferença? — perguntou Yoko. 

— Só um deles aparece frequentemente nos livros — respondeu Pavlov. 

— Isso é porque trens ainda são novos, tenho certeza de que no futuro o que não vão faltar são histórias e poemas sobre eles. 

Pavlov tentou contra-argumentar, mas percebeu que o que ela havia dito fazia sentido, então só ficou quieto. 

— Qual dos barcos é o nosso? — perguntou Doma. 

— Depende, qual você quer ir? — respondeu Pavlov. 

— O maior navio. 

— E você Mikhail?  

— Tanto faz. 

— Então vai ser o maior! 

— Eles vão ficar mimados desse jeito — disse Hiroshi. 

— Crianças foram feitas para ser mimadas, por enquanto tudo bem. 

Pavlov subiu e negociou o preço do navio por dez minutos, então voltou com boas notícias. 

— Podem entrar e escolher seus quartos! 

E os dois correram para dentro do navio. 

— Realmente comprou um navio de carga só para uma viagem de menos de dois dias? — perguntou Hiroshi. 

— Claro que não, só paguei para ele abrir um espacinho para gente. 

Hiroshi foi entrar no navio junto dos outros, mas foi impedido. 

— Como eu disse, só é um espacinho. Eu ainda tenho outro barco alugado, seria um desperdício não o usar. Por favor tome conta deles. Boa viagem, nos encontramos do outro lado! 

— Eles quem? 

Boris suspirou e apontou para o velho barco que estava quase afundando de tanta agitação.  

“Será que é uma punição por ter falhado?”, pensou Hiroshi, ao ver que iria junto dos cozinheiros que havia desistido de tentar ajudar. 

— Até aqui eles brigam? — perguntou Boris. 

— Acho que vou nadando — disse Hiroshi. 

— Por favor, não me abandone com eles... Ou me leve nas costas. 

— O que estão murmurando aí!? Venham logo! 

No fim, Hiroshi foi com uma expressão derrotada ao barco.  

— Aqui vamos nós!  

Em condições insalubres, o barco partiu da costa. 



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