Sakurai Brasileira

Autor(a): Pedro Suzuki


Volume Único

Capítulo 28: Presente

Um por um, cada sentido de Hiroshi foi se apagando. 

Mesmo com os olhos fechados, a claridade ainda o incomodava, então ele imaginou a escuridão, e mesclou essa imagem com a da luz. A visão se apagou completamente. 

O cheiro de grama molhada causada pela leve chuva passageira infestava seu olfato e irritava seus ouvidos. Para superar isso, ele imaginou um cheiro mais forte ainda, o do ferro líquido, o do sangue fresco que ele mesmo acabou de capturar, um cheiro familiar que facilmente vinha a memória. Esse cheiro dominou sua mente e partiu, levando consigo todos os outros.  

Para a audição, não foi difícil imaginar um som mais forte que a da chuva, os gritos de Aki girando enquanto era levado pela ovelha foi o suficiente para o fazer esquecer de seu ambiente.  

O último restante, tato. Para superá-lo, Hiroshi se jogou nas profundezas do imenso lago Biwa. Essa imaginação trouxe à tona os outros sentidos, mais fortes que antes, então Hiroshi usou outra memória para sobrepor essa. 

As memórias, agradáveis e desagradáveis, vieram e se foram inúmeras vezes, até que Hiroshi encontrou em si mesmo, o vazio. 

Esse vazio foi lentamente preenchido por tímidas, apagadas, cores pastel. De início, as mudanças eram perto de serem imperceptíveis, mas em certo ponto, de uma só vez, o nada deixou o lugar para grandes e fortes cores, brilhantes como estrelas, que rapidamente se misturaram e se espalharam como tinta na água, dominando todas as cores menores que apareciam timidamente no começo.  

Essa era a forma que Hiroshi via a essência da vida. 

O ambiente estava inundado dessa energia que, após tudo isso, havia se tornado um grande gradiente vivo, em constante movimento, formado por uma mistura de muitas cores, de muitas fontes, de muitas formas de vida. Por isso é necessário filtrá-las, caso contrário, seria impossível identificar um humano nesse mar de cores.  

Primeiro, Hiroshi apagou a maior dessas cores: a sua própria e a que emanava, que fugia com toda a força de si mesmo, para retornar ao mundo. Depois, as em maior quantidade: as cores livres no ar, a energia dos mortos, facilmente reconhecíveis pelos seus movimentos livres, formadas por diversas cores escuras, que fluem rapidamente, seguindo as correntes de ar, bagunçando todas as outras cores, e os vestígios de energia daqueles objetos que uma vez já tiveram vida como o chão de madeira, as roupas de couro ou pelo animal, os fios de seu próprio cabelo caídos no chão, a comida e as duas lâminas de sua espada, também de cores parecidas.  

Por último, ainda restavam cores significativamente grandes. Usando sua memória, ele reconstruiu mentalmente a casa, então um por um, juntou os pontos nessa imagem mental que coincidiam com elementos familiares.  

Algumas eram fáceis, como a grama insignificante que rodeava a casa, a energia que superava a dos homens, vinda das longevas árvores e as singelas, mas fixas energias das plantas; mas outras não batiam em nada com a imagem mental de Hiroshi, como os milhares de pontos que andavam debaixo da terra e os escondidos em todos os cantos de sua casa: os insetos e os que voavam e andavam por aí, os pequenos e médios animais.  

Apagando todas essas presenças, Hiroshi retornou ao vazio e percebeu que nada estava fora do lugar, então respirou fundo, sentiu o choque de recuperar os seus quatro sentidos de uma vez e abriu seus olhos. Esperou sua visão se acostumar com a luz e recuperar seu foco, olhou para os dois lados e pegou suas espadas.  

Essa cerimônia era exclusiva apenas para dias incomuns em que sua vida podia estar em risco.   

Hiroshi esperou, sentado em sua cama, agora fazendo o inverso, apagando sua habilidade, se concentrando em aguçar seus reflexos ao máximo.  

Após dez minutos, nada aconteceu, então ele seguiu sua rotina normalmente.  

Primeiro fez uma limpeza geral, depois procurou os cantos em que sentiu as pequenas energias de insetos. Após isso, colocou seu perfume de gengibre, meditou e foi preparar o café da manhã. 

Hiroshi juntou todos os ingredientes que precisava e pensou em preparar um pão simples, mas nesse dia, decidiu esperar para comprar um mochi da Akira. Caso tivesse que comprar a quantidade de comida necessária para saciar a Smile, da vendedora, todos os dias, rapidamente ele iria à falência, por isso, todas as manhãs se tornou um hábito preparar algum tipo de massa. Mas como ela estava viajando nesse dia, isso não era mais tão urgente. 

Hiroshi saiu da casa e se sentou na grama, estava atrasado para ver o nascer do Sol, mas se contentou com a visão repleta de folhas vermelhas caídas no chão e do padrão complexo dos galhos das árvores, que agora possuíam toda a atenção dos que passavam, trazendo comentários sobre a estação, a passagem do tempo e frio que crescia. Essa era uma visão exclusiva, proporcionada pelo outono, que Hiroshi aproveitava sempre que tinha a oportunidade.  

O tempo passou, seu corpo esquentou devido à luz do Sol, ele se deitou na grama molhada, fechou seus olhos e começou a ouvir com atenção a seus arredores para passar o tempo. 

Um canto de um pássaro, os passos desesperados de um pequeno animal, provavelmente fugindo de seu predador, as fofocas dos moradores, algum morador praticando um instrumento estranho de corda, provavelmente iniciante pelas notas desafinadas e os passos de um cavalo, seguido do barulho das rodas batendo no terreno irregular, provavelmente de um mercante a caminho da capital. 

O tempo passou, mas a Akira não apareceu. 

— Será que aconteceu alguma coisa? — Hiroshi estranhou, mas decidiu ficar mais um tempo, perdido em seus pensamentos. 

Ele havia dito para os Sakurai não saírem, Smile estava viajando, Will havia se atrasado e até a Akira parecia ter se esquecido dele. Após muito tempo, Hiroshi estava completamente sozinho. 

Nos dias antes deles, ele não se sentia solitário, não havia como se sentir estranho com algo cotidiano. Hiroshi começou a pensar se estava cometendo um erro.  

Mesmo com o imperador anunciando sua aposentadoria, como Sota, poderia sempre haver aqueles que buscassem vingança, mas diferente de Sota, eles poderiam não ter escrúpulos algum, e usarem aqueles próximos a ele para o ameaçar. Algo poderia acontecer e ele poderia, um dia, ter que ser obrigado a se mudar para um lugar pior, com moradores que ouviram histórias ainda mais exageradas, com menos pessoas corajosas para tentarem se aproximar, ou até nenhuma.  

Talvez essa vida monótona, esse pequeno sentimento que poderia se expandir, não fosse uma experiência tão dolorosa se ele não tivesse tido o gosto de uma vida feliz.  

Hiroshi balançou a sua cabeça e deu um tapa em seu rosto para espantar esses pensamentos sombrios. Esse péssimo hábito sempre voltava toda vez que seu aniversário chegava.  

“Se estou vivendo uma vida feliz, é um motivo para se comemorar, não ter medo.” 

Essa era uma paranoia desnecessária que em todos esses anos se provou completamente inútil. Os medos vindos de suas piores imaginações nunca chegavam à realidade. As tragédias de sua vida sempre vinham de formas inesperadas, quando sua guarda estava mais baixa. Portanto, era uma perda de tempo pensar em coisas assim, mas ele tinha tempo para perder, graças a essa ocasião especial, seu aniversário. 

Hiroshi cansou de esperar, se levantou, desembainhou sua espada e começou a treinar. 

“Aquele sonho... Com certeza, aquele homem deve ter alguma coisa a ver com o que eu preciso para superar essa barreira”, pensou Hiroshi. 

Ele seguiu com seu treinamento comum. 

“Ainda não está certo...” 

Repetiu o cenário da luta contra Sota e tentou imitar seus movimentos. 

“Definitivamente não é isso.” 

Então, apagou todos seus sentidos e usou da sua habilidade para o guiar. 

“Será que é isso?” 

Hiroshi sentiu que estava no caminho certo, apertou sua espada com toda a sua força, mas antes que pudesse cortar a barreira, as cores começaram a agir de forma atípica. Tudo começou a caminhar para uma só direção, toda energia começou a ser consumida por um só ponto.  

Hiroshi abriu seus olhos, temendo o pior, mas viu um homem completamente diferente.  

O homem olhou para Hiroshi de cima para baixo, como se estivesse procurando algo, mas sua feição indicou que falhou. Ele suspirou e resmungou:  

— Sei que são raros, mas considerando todas as vezes que eu procurei, já era para eu ter achado, por que nunca teve sequer um!? — Ele abaixou o tom ao ver a seriedade de Hiroshi. — Não... O fato de ter duas pessoas tão promissores em uma cidade tão pequena já é bom o suficiente, esse lugar é mesmo incrível. 

— Duas pessoas?... — O homem tentou o acalmar, mas só acabou piorando a situação.  

Hiroshi imediatamente avançou nele. 

Enquanto isso, Will observava tudo se desenrolar de um morro distante.  

"Aguente só mais um pouco, porque essa será a última vez que precisarei usar essa fraqueza."  

— Odeie eles tanto quanto eu, então eu farei meu papel e sacrificarei tudo para te dar a força que deseja. — Após a luta terminar, ele sorriu e começou a andar em direção aos dois. 

— Se mudar de ideia, a Torre sempre estará de braços abertos para grandes talentos como você — disse o homem. — Caso queira me contatar, vá até o monte mais famoso do país, que estarei lá a partir do ano que vem. 

Hiroshi não respondeu, o homem partiu.  

— Droga! — Hiroshi jogou o cabo de sua espada para longe, caiu no chão, cortando seu joelho nos pequenos fragmentos de metal e começou a gritar em agonia, por uma mistura de dor e desespero. 

Sua Katana estava estilhaçada, Hiroshi havia sido derrotado de uma maneira tão unilateral que não havia nada a se aprender, ele não havia nem sequer entendido como havia perdido, o abismo entre os dois, novamente parecia insuperável. 

— Da primeira vez te mostrei que era possível, da segunda vez te ensinei em partes, como fazer, dessa vez chegou a hora de você receber o segredo para superar eles — disse Will, que se aproximou sem Hiroshi nem perceber. — Esse será o meu presente de aniversário. 



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