Volume 9 – Arco 4
Capítulo 20: In Reverie
— … Como vou saber se não está mentindo pra mim sobre isso?
— Comprove minhas falas com seus próprios olhos. Quando sair do Empíreo, busque pela localização que lhe indiquei e encontre-a pessoalmente.
Sofia respondeu ao questionamento de Ryota, ainda sentada em sua cadeira com a xícara em mãos, com uma naturalidade assustadora. Mas a essa altura, ela não deveria ficar impressionada com a falta de características humanas naquela mulher.
— Estou certa de que não confiará em mim ou em meus guardiões para comprovar o que digo, então siga minhas instruções e converse diretamente com a curandeira… Embora eu tenha minhas dúvidas se isso a fará confiar ou desconfiar mais de mim.
— Como assim?
A Entidade balançou os ombros e suspirou, parecendo rir internamente de algo que sabia mas a outra não.
— Descobrirá quando encontrar a Maga Veridian pessoalmente. Meu trabalho é apenas lhe dar as respostas que lhe prometi no começo de tudo.
— Isso é muito vago… Mas acho que não tenho escolha, não é?
Ryota falou baixo, quase como se sussurrasse para si mesma em frustração. Naturalmente, ela esperava que Sofia comprovasse sua veracidade de outra forma, mas não havia como exigir isso. No mínimo, suspeitava que a Entidade diante dela poderia provocar dois possíveis futuros caso procurasse pela localização da Maga Veridian: a primeira era realmente encontrar a mulher, a segunda era ser pega em algum tipo de armadilha.
Obviamente o segundo caminho parecia mais óbvio no momento, mas se Sofia realmente precisava de Ryota não havia razão para enganá-la dessa forma. Ao menos, não conseguia ver como isso a beneficiaria. Aquela mulher não parecia precisar de dinheiro ou status, pois esbanjava daqueles luxos. Se haviam outros objetivos por trás, não havia como deduzir naquele momento… Precisava de mais informações.
Ela precisava saber mais sobre Sofia… Sobre as Entidades como um todo.
Caso se aproveitasse da posição em que estava de convidada, talvez até mesmo pudesse descobrir mais sobre a Ritus Valorem, que supostamente estava envolvida com as Entidades… Eram possibilidades infinitas acrescentadas graças à presença de um único ser diante dela com tamanha sabedoria e confiança nas próprias palavras.
Embora Ryota não necessariamente acreditasse tanto assim nela.
Mas que escolha havia?
Sofia anteriormente lhe apontou com ar de provocação a falta de opções que ela tinha, mas era apenas um fato. Se negar a arriscar tudo em prol de proteger-se com medo das consequências, a essa altura, não era nada mais que uma forma de desistir.
Todos eles haviam sacrificado tanto por ela — colocaram vida, orgulho e dores à prova apenas para protegê-la. Como poderia recuar agora, depois de tudo o que prometeu para eles e para si mesma?
E, mesmo que no fim falhasse e precisasse oferecer também a própria vida como forma de conseguir suas respostas, não haveria problema.
Desde que as informações chegassem às mãos de Fuyuki, Sora e Edward, estava tudo concluído.
Ryota não tinha nada mais a perder desde que não envolvesse mais ninguém além dela mesma.
Temera criar um voto com Sofia após as consequências do anterior feito com Edward, mas era uma das únicas formas de garantir a segurança de que conseguiria aquilo que foi prometido. Se ainda havia uma maneira de salvar a todos…
— Eu não faria isso se fosse você.
— H-Hã?
— Um voto com uma Entidade pode ser fatalmente perigoso. Tem certeza de que ofereceria sua alma a um “monstro manipulador e nojento” como eu?
Após terminar seu chá, Sofia assim interrompeu seus pensamentos enquanto apoiava os cotovelos na mesa e sorria casualmente. Ryota engoliu em seco com suas palavras, demorando um mero instante para perceber aquilo que era óbvio.
— … Que tal deixar minha privacidade livre do seu conhecimento, sua stalker esquisita?
— Infelizmente, não faz parte do meu controle. Saber a verdade faz parte da minha natureza tanto quanto respirar. Então, peço desculpas de antemão se isso te enoja.
As duas trocaram provocações no mesmo tom venenoso e pareceram finalmente encontrar uma forma de se entenderem, ainda que ao custo de uma interação estranha como aquela.
Era quase como discutir com Sora, mas sem a clara amizade por trás das trocas de palavras.
Após esse pequeno instante, Ryota sentou-se na cadeira outra vez e suspirou fundo.
— Diga-me os detalhes da Maga Veridian.
Sofia concordou com a cabeça, parecendo satisfeita com a postura da outra. Então, ainda com os cotovelos apoiados na mesa, começou a explicar:
— Essa mulher é a curandeira principal de Urânia e, tal como todos vocês devem ter presumido, ela está vivendo aqui neste país.
— Em que lugar? E como ela consegue se isolar tanto ao ponto de nem mesmo a Eliza entrar em contato com ela?
— Digamos que essa curandeira não tem um histórico tão comum quanto as outras. Na verdade, isso reflete não apenas em sua personalidade complicada de lidar, mas também nos lugares onde se isola.
— Lugares? Então, ela fica mudando de esconderijo?
— Fala como se estivéssemos discutindo sobre um animal, e não um ser humano.
A Entidade riu um pouco da forma como Ryota falou, mas a seriedade não mudou na postura da garota de cabelos negros quando continuou a conversa:
— E onde ela está morando agora?
— A Maga Veridian, no momento, está morando na Baía de Dione. Fica localizado a algumas horas de trem daqui, à beira do oceano.
— … Hã? Espera, ela está vivendo assim tão perto da água? Mas isso é perigoso!
— O povo de Aurora vivia igualmente próximo ao oceano, mas nada de incomum ocorreu.
Ryota franziu a testa com a menção de sua terra natal, então apertou os lábios ao falar:
— Incomum? É claro que aconteceram coisas horríveis! Você não… — ela hesitou um segundo — … Você deve saber bem que alguns dos moradores sucumbiram à doença do Mar Sombrio, mesmo nunca tendo chegado perto dele.
O tom de voz da garota diminuiu ao ponto de se tornar um sussurro com as memórias.
— Estou ciente.
— Então, por quê?
— … Talvez seja capaz de entender melhor ao perguntar diretamente a ela.
— Achei que você soubesse de tudo.
— E eu sei. Mas, algumas vezes, existem respostas que são melhores sendo ouvidas diretamente da pessoa ao invés de outrem.
Mais uma vez, a expressão de Ryota se tornou um pouco ranzinza, mas Sofia não alterou sua postura.
— … E como faço para entrar em contato com ela?
— Quando chegar à baía, entenderá imediatamente o que fazer.
— Eu já falei que odeio quando você… Não, quando vocês Entidades falam assim?
Dessa vez, a Entidade riu de forma sincera. Essa postura da beldade sempre irritava Ryota, que não conseguia encontrar um meio minimamente “educado” de responder. Enquanto cruzava os braços como se estivesse frustrada, escutou Sofia soltar um suspiro de alívio.
— Escuta, Sofia.
— O que foi?
— Você disse que responderia às minhas perguntas sobre este lugar, certo?
— E eu respondi, certo?
— Bem, não todas. Ainda tem algumas coisas que preciso saber… Mas por que tenho a impressão que você já sabia que eu perguntaria isso?
— Porque eu sei.
As duas mulheres se encararam por o que pareceu uma eternidade. Era como se a Entidade a observasse com um certo carinho, mas ao mesmo tempo o mesmo ar de presunção; em contrapartida, Ryota sentia arrepios com esse olhar, mas não conseguia desviar sua atenção dela em busca de entender o que é que realmente estava diante de si.
Quando voltaram a conversar, a garota de cabelos escuros disse em tom baixo:
— Então, se sabe, por que apenas não adianta o processo e me diz o que quero saber?
— Porque assim não teria graça.
— … Por que vocês são sempre assim?
Sofia inclinou a cabeça para o lado, como se inocentemente não entendesse a pergunta. Por um segundo, houve a tentação de indagar diretamente a respeito das Entidades, mas ela sabia que a negação seria imediata. Afinal, o que fora prometido eram respostas sobre onde estavam, não sobre quem ela era.
Com isso, dessa vez foi Ryota quem suspirou.
— … Esse lugar que vocês chamam de Empíreo, pelo o que me falou, pode ser acessado por qualquer um que vocês queiram. Mas como isso funciona na prática? Se esse lugar “existe”, estamos aqui com corpo e alma? O que aconteceu com a prova prática no instituto?
— Como eu disse anteriormente, a existência desse local é relativa a nós, as anfitriãs. Em relação ao mundo exterior… Vejamos que forma devo lhe explicar.
Sofia pareceu pensar por um instante, mas Ryota sentiu que aquela era apenas outro costume dela de comprar tempo para não passar adiante a informação que estava em seu cérebro desde o início.
— Em termos mais simples, este lugar apresenta seu corpo, alma e chi. Em suma, sua existência como um todo. Quase como se você tivesse sido teleportar para cá… Embora seu receptáculo original, seu corpo de carne humana, ainda exista na realidade.
Ainda que as palavras parecessem ligeiramente confusas, Ryota assentiu com a cabeça.
— Se está preocupada em relação ao tempo, não há razão para tanto. A forma como as horas, minutos ou segundos passam no mundo humano não se adequam a este local que “não existe”. Portanto, ainda que passe cem, duzentos ou mil anos aqui dentro, jamais envelhecerá de verdade… Apenas em seu interior.
— O que quer dizer?
— Como eu disse, este mundo apenas representa o que seria seu “eu”. Não é você de verdade. Quando retornar ao mundo exterior, sua consciência despertará dentro do receptáculo de carne com as memórias, sensações e experiências deste ambiente, mas dentro do ponto em que sua percepção daquela realidade se extinguiu.
— Então, basicamente, eu vou acordar no começo do teste prático como se apenas tivesse piscado os olhos e tivesse tido um sonho muito longo… Algo assim?
— … Podemos ver dessa forma. Embora o que esteja presenciando aqui seja imensamente mais realista do que um sonho. Afinal, você sente fome, sede, cansaço e todas as demais necessidades humanas. Isso está relacionado ao seu verdadeiro “eu”, representado neste espaço.
Apesar de Ryota ter zombado internamente de Sofia por parar um segundo para pensar, era realmente um conceito de existência estranho demais para ser compreendido por completo. Entretanto, ainda era possível de entender vagamente.
Então, ela deu continuidade à conversa:
— Então, todos os convidados precisam passar por um teste para entrar aqui?
— Não. Apenas um número bem pequeno.
— Por que isso?
— Porque são graças às provações que conseguirei aquilo que desejo.
As sobrancelhas negras se franziram outra vez em seriedade e reflexão.
— E qual o seu desejo?
— Não posso responder.
Ryota estalou a língua, um pouco frustrada por ter tentado perguntar algo que já sabia que aquela seria a resposta.
— Ora, por acaso, o fato de ter perguntado significa que possui algum tipo de interesse em mim?
— Eca, não.
— Mais uma resposta cruel e fria. Como esperado de você.
Era um pouco estranho que Sofia interagisse tão informalmente com Ryota daquela forma, como se fossem amigas. Aquilo a incomodava profundamente ao ponto de sentir arranhões no estômago.
Ignorando a risada divertida da Entidade, Ryota interrogou:
— Então, como essas “provações” estão ligadas a esse lugar?
— Outra pergunta deveras difícil para resumir em termos simples… Respondendo especificamente sobre seu caso, as provações que possuem um resultado de sucesso lhe garantem a passagem para o Empíreo.
— Se eu falhasse, voltaria para o mundo real?
— Exatamente. E assim, não receberia sua recompensa: a resposta para uma de suas perguntas.
— Espera. Se será uma provação para cada pergunta…
— … Então ao todo, contando com a provação anterior, serão cinco.
Ryota engoliu saliva em seco, afundando um pouco na cadeira.
— Não há razão para preocupação. As provações estão diretamente ligadas com o indivíduo que as realiza, especialmente suas memórias, sentimentos, experiências e desejos. Com eles, a resposta ideal será atingida conforme as suas vontades.
— … Ainda assim, eu quase falhei na primeira provação.
— Porque você ainda não estava preparada para enfrentá-la.
Era uma conclusão simples, mas que estava longe de parecer errada. Sofia respondia com uma sinceridade, serenidade e sabedoria dignas de sua posição. Apesar dos arrepios em sua espinha, não havia quem não se sentisse tentado a acreditar nela.
— … Entendo.
— Há mais alguma coisa que deseje me perguntar?
Por alguns segundos, Ryota apenas ficou em silêncio. Sua mente vagou pela imensidade de dúvidas e questões sem resposta que haviam, e como nenhuma delas seria respondida quando não estavam diretamente conectadas com as provações ou ao Empíreo. Portanto, perguntar seria apenas perda de tempo e uma nova razão para a Entidade rir de sua tentativa.
Mas, então, ela ergueu as íris azuis escuras na direção de Sofia, encarando-a outra vez.
— … Posso estar errada, mas há algo que gostaria de lhe perguntar.
— Claro. O que é?
— Existe algo estranho acontecendo comigo desde que cheguei em Urânia. Ou melhor, um pouco antes disso. Quando estive no trem, a caminho daqui, algumas… Coisas aconteceram.
A cabeça da Entidade se inclinou para o lado como se refletisse sobre suas palavras com inocência, incentivando-a a continuar sua explicação.
Um pouco de suor escorreu por sua testa enquanto tentava imaginar uma forma de explicar os eventos que discorreram, mas foi nesse instante que Sofia interrompeu.
— Não há necessidade de preocupar-se com meios de chegar ao seu propósito ou objetivo. Desde que dedique-se ao máximo para que não hajam dúvidas ou arrependimentos, apresente-se como sua alma verdadeiramente se reflete.
— … O quê?
— Sabe qual a verdadeira origem do conhecimento, Ryota?
A mudança de assunto a deixou um pouco perplexa, mas como Sofia parecia dedicada a continuar, a garota apenas negou com a cabeça.
Então, a beldade abriu seus braços, ainda com os cotovelos na mesa, e explicou com ar de exibição e um brilho forte em seu olhar que representava a paixão por aquilo que dizia.
— Conhecimento reflete ao estudo e a experiências. Em suma, é viver, ouvir, aprender… E ensinar.
Sua expressão normalmente presunçosa pareceu suavizar um pouco.
— Essa é minha crença como a Entidade da Sabedoria.
— … A Entidade da Sabedoria.
Ryota sussurrou para si mesma aquele pseudônimo que Sofia parecia tanto prezar.
— Existe algo que ocorre em sua vida que pode ou não estar relacionado com as provações. Cabe a você mesma descobrir… Ou melhor, ainda que não queira, em breve descobrirá. E quando entender, talvez suas prioridades mudem um pouco agora… E para sempre.
As palavras da Sabedoria soavam como o sussurro de uma profecia, como um encanto que prendia a atenção por completo do início ao fim.
— Enquanto esses “eventos” ainda não possuem uma verdade em seu coração, em respeito aos seus sentimentos, chamaremos o estado em que estiver dentro deles de In Reverie.
— In Reverie?
— Em outras palavras, devaneio.
— Está dizendo que as visões… Ou os eventos que presenciei… São devaneios?
— Não. Estou apenas lhe dando a oportunidade de rotular e descobrir por si mesma a origem do que está acontecendo.
— E por que não me diz a verdade de uma vez?
Ryota se levantou um pouco irritada daquela conversa prolixa, mas o sorriso presunçoso retornou ao rosto de Sofia imediatamente.
— … Porque não teria graça.
— No fim, pra vocês, tudo se trata de diversão, não é? Era assim com aquela psicopata, e agora você também…!
— Independentemente disso, o trabalho das anfitriãs é guiá-la ao longo das provações. Portanto, no momento, enquanto suas perguntas que refletem à sua recompensa por atingir o sucesso chegarem ao fim, sua estadia no Empíreo também se encerrará.
Ryota estalou a língua com o tom de voz de Sofia, que se tornou um pouco baixo e sério. Em reflexo a isso, a garota se ergueu da cadeira outra vez e começou a andar em direção à escadaria. Mas, dessa vez, Sofia não a impediu.
Por alguma razão, não se surpreendeu quando a porta que outrora havia levado-a para aquele espaço fantasioso surgiu diante de seus olhos, convidando-a para abri-la. E foi exatamente isso o que ela fez, parando um segundo ao segurar a maçaneta para dizer:
— … Eu vou participar desse seu joguinho idiota pelo bem das pessoas que precisam de mim. Desde que envolva apenas a mim para tirá-la do seu tédio, vou passar por todas as provações e pegar minhas recompensas. Mas…
Ela virou a cabeça um pouco por cima do ombro, olhando para a Entidade que não moveu um músculo do lugar.
— … Não me trate como se fôssemos amigas. Isso me enoja.
Foram essas suas últimas palavras antes de abrir a porta e dar um passo adiante sem qualquer hesitação, sendo engolida pela luz branca que sugou sua consciência outra vez.