Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 9 – Arco 4

Capítulo 21: Liberdade

A mudança de cenário deu-se imediatamente quando a luz desapareceu após consumir sua consciência por um período menor do que o piscar de um olho.

E foi dessa forma que aquele mundo silencioso gradualmente recebeu pequenos ruídos de mãos em movimento, mexendo em materiais de trabalhos manuais que eram como sussurros em seus ouvidos.

A visão que antes foi preenchida por estrelas agora visualizava uma mesa de trabalho onde mais três pessoas a rodeavam, iniciando uma tarefa que lhes garantiria uma grande nota. Ao longo de toda a sala de aula, os estudantes pareciam ter acabado de iniciar o teste prático com as estátuas.

Manipulações e pensamentos envolvendo argila refletiam no olhar de todos — inclusive no de Ryota, que ainda segurava aquele mineral liso sem qualquer modificação ou escrita como anteriormente possuía.

A garota de cabelos negros, ainda com o queixo abaixado, ergueu as íris azuis escuras apenas para observar seus arredores por um período minúsculo de tempo antes de se concentrar em sua tarefa. Foi em uma velocidade insignificante para alguém que desejava colar ou prejudicar seus colegas de receber uma boa nota, mas para a aplicadora foi o bastante para que o olhar de suspeita deslizasse em sua direção.

Ryota e Amane se encararam por apenas um segundo antes dos olhos azuis voltarem para a argila nas mãos, começando a trabalhar antes mesmo que sua mente sequer começasse a considerar que tipo de escultura produziria.

Sofia.

Lentamente, os pensamentos começaram a serem processados conforme as memórias da transição entre a provação e o mundo exterior se uniram.

Sabedoria.

Sua expressão de serenidade e neutralidade não mudou de forma alguma, e as mãos que trabalhavam na escultura não hesitaram por nem mais um segundo conforme prosseguiam moldando e construindo.

Entidade.

A conversa e as promessas feitas com um ser que se considerava superior a um humano comum foram revividas. O rosto da beldade, as palavras que atraiam, o olhar que repelia, a necessidade de conhecer o desconhecido, a razão para sua presença e a origem daquela anfitriã.

Deusa.

Talvez assim algumas pessoas a vissem; outros poderiam nomear sua existência como um anjo caído repleto de bênçãos a serem distribuídas neste mundo. 

A argila pareceu entregar-se completamente aos moldes de seus dedos e mãos. Os olhos que se estreitaram não enxergavam nada além daqueles sentimentos, pensamentos e descobertas que há pouco ocorreram.

Universo.

A imensidão daquele espaço desconhecido era como um céu noturno infinito. Os brilhos que cintilavam eram como uma quantidade exuberante e imensa de purpurina. Pareciam longe, mas ao mesmo tempo tão perto como se pudesse tocá-los.

Estrela.

Aquele era o nome dado aos pontos de luz. 

E também à sua criação feita em argila.

Sol.

A maior e mais brilhante estrela daquele mundo… Não, daquele universo. Ou melhor, de toda a existência em que se baseava aquela realidade.

Sem ele… Nenhum deles existiria.

“Existir”.

Com as Entidades, ele ainda resplendia.

“Não existir”.

O espaço de estrelas manipulado pela vontade da Sabedoria e que condecorava seus convidados com os maiores deleites para as almas, exaustas, famintas e tristes.

Aquele era o maior regalo possível. Um meio de chegar à satisfação e estabilidade. Obter tudo aquilo que necessitava e desejava, livrando-se dos problemas e incômodos de longo prazo.

Em outras palavras, o Empíreo… As Entidades… Elas eram… 

… Liberdade.

— Tempo encerrado. 

A voz de Amane Akai ressoou pela sala no mesmo instante que o relógio marcou as três horas da tarde, os estudantes largaram seus materiais sobre a mesa de trabalho e suspiraram. O clima de tensão de foco na sala ainda se mantinha, mas havia certo alívio quando todos foram libertados daquela pressão.

— Retirem-se e mantenham suas esculturas nas respectivas mesas que usaram. Marquem seus nomes nos papéis colados na borda. Se houver tentativa de usurpar o trabalho de outrem, o estudante será imediatamente desqualificado do teste com a nota zerada.

A aplicadora assim falou com certo tom de ameaça, mas não parecia que qualquer um daqueles jovens se atreveria a desobedecer seus comandos. Portanto, em duplas relativamente organizadas, os estudantes começaram a sair da sala de aula, deixando para trás suas esculturas com nomes escritos como foram indicados.

Como uma das últimas a sair enquanto ainda encarava sua própria criação, Ryota piscou seus olhos azuis escuros e virou-se para sair ignorando os olhares em sua direção — incluindo as íris vermelhas que pareciam analisar sua postura e expressão de completo foco e seriedade.

A garota de cabelos negros então marchou a passos firmes em direção à saída do instituto. Atravessou os corredores e escadas preenchidos por jovens uniformizados sem olhar para trás, então saiu pelas portas duplas.

Seus passos prosseguiram mais e mais além do campus, atravessando-o e chegando nas ruas de Urânia. Como recém havia começado a tarde, não haviam muitas pessoas andando de um lado para o outro como normalmente teria durante as manhãs ou ao meio dia.

Não demorou muito para que chegasse ao hotel e, por conseguinte, ao seu quarto. Ryota adentrou os cômodos, retirou seu uniforme e colocou suas roupas casuais, então partiu em direção à estação de trem.

Ela não se importou nem um pouco que Bellatrix provavelmente se sentiria magoada por tê-la deixado para trás sem sequer avisar.

Muito menos com Dio confuso com seu desaparecimento.

Serão apenas algumas horas.

Convenceu a si mesma.

Eles não tem nada a ver com isso.

Os pensamentos não paravam de vir.

Mas se interromperam ouviu os passos dispararem em sua direção e um corpo colidir com o seu por trás, mas não forte o bastante para derrubar ou machucá-la.

— Espera!

A voz aguda e trêmula alcançou seus ouvidos, e os olhos marejados encararam os dela quando virou seu rosto na direção do menino que agarrava suas roupas como se sua vida dependesse disso.

— Me leva junto com você!

As pequenas mãos de Dio puxaram sua roupa quando ele implorou, as dobras de seus dedos praticamente brancos do esforço. 

— Não.

A resposta foi imediata, mas não parecia que o garoto tinha se abalado ou se surpreendido com ela. Pelo contrário, seus olhos se arregalaram por apenas um mísero instante antes de seu corpo se aproximar ainda mais, praticamente colando-se ao dela.

— Por favor!

— Não.

— Me leve com você!

— Não.

A expressão de Ryota não mudou nem um pouco mesmo depois de negar tantas vezes, mas Dio pareceu se abalar cada vez mais. Ele ergueu a voz, colou seus corpos e puxou ainda mais sua roupa com a pouca força que havia em seus braços como se aquilo fosse convencê-la.

Ouviu a voz infantil choramingar e os olhos encherem-se de lágrimas enquanto ainda a encaravam, mas as respostas não mudaram.

O mundo ao redor de Dio pareceu desaparecer por um instante. Foi como se tudo tivesse se tornado vazio enquanto focava-se em nada além do rosto apático e centrado dela. 

E era justamente por ela ter aquela expressão — ou a completa falta dela — que seu coração contorceu-se e decidiu que não a permitiria ir sozinha.

— … Por favor. Eu imploro.

Com as gotas quentes escorrendo pelo rosto pequeno com as bochechas vermelhas, o menino abaixou a cabeça e encostou a testa no corpo dela. Ainda segurava firmemente suas roupas para que não pudesse escapar, mas a voz perdeu a força e apenas conseguiu sussurrar profundamente aquelas palavras.

Ryota sentiu as lágrimas mancharem o tecido que cobria seu corpo. Ela viu os ombros dele tremerem. Notou imediatamente como continha os soluços da emoção estranhamente desesperada.

E mais uma vez indagou-se a razão disso.

Mesmo que as justificativas fossem ditas várias vezes, nenhuma delas foi capaz de suprir seus questionamentos e dúvidas.

Não porque apenas não entendia as vantagens daquela preocupação e laço que um dia acabaria, mas principalmente porque elas não eram uma resposta boa o bastante para seu “eu” teimoso aceitar.

Mas será que realmente havia alguma coisa que pudesse lhe ser dito para que a convencesse do contrário de uma vez?

Se esse era o caso…

Ryota virou o rosto em direção à estação de trem, ouvindo o apito agudo que anunciava sua eventual partida.

… Ela esperava que nunca escutasse essas palavras.

E com essa conclusão mental, enquanto via Dio chorar e se agarrar nela, a garota apenas endireitou a postura e começou a andar.

Foi um movimento tão brusco que arrancou as roupas das mãos pequenas que a seguravam, deixando o garoto que ficou para trás tropeçar nos próprios pés quase caindo pela falta de equilíbrio.

Entretanto, ela não tornou a olhar para trás ou se permitir sensibilizar-se com aqueles que apelavam para o emocional.

… Que hipocrisia.

As portas para o trem fecharam-se imediatamente quando entrou, e ele partiu com um som agudo ecoando por seus ouvidos e por toda a estação. 

Sentou-se na janela e aguardou que a viagem ao seu destino chegasse ao fim.

E para evitar que a mente voltasse a pensar naqueles que deixou para trás, fechou seus olhos e apenas pensou no sorriso presunçoso da beldade que havia lhe dado as indicações da localização.

Conforme as horas passaram, o cheiro de oceano e a brisa familiar do mar pôde ser sentida.

Como esperado, os passageiros do trem sempre desceram com antecedência, permanecendo apenas ela quando a locomotiva parou na Baía de Dione.

Ryota desceu do trem e caminhou pela estrada de terra. 

O que preencheu seu corpo foi um sentimento estranho. Era um misto de nostalgia com um frio na barriga levemente incômodo graças às memórias sensoriais.

Ainda que nunca tivesse ido até aquele lugar, ele era assustadoramente semelhante ao de suas origens.

Talvez fosse pelo oceano azul que se aproximava a cada passo que dava em direção à praia.

Ou talvez pela linha preta sempre visível à distância, que trazia consigo no ar um cheiro sutil de podridão.

De toda forma, a baía era um lugar visivelmente pouco visitado. Não era possível ver qualquer sinal de vida humana à distância, ou sequer sentir a presença de qualquer ser vivo que não fossem animais ou insetos.

Sua testa se franziu um pouco enquanto lembrava-se das palavras de Sofia em relação à localização encaminhada. Se a Baía de Dione era nada mais que um local isolado para visitas — se é que alguém teria coragem de visitar um lugar tão próximo ao Mar Sombrio quanto aquele —, era relativamente compreensível que alguém como a Maga Veridian pudesse se esconder ali.

No horizonte, o sol começava a se pôr. Os arredores, a areia, o oceano e o céu foram agraciados com as tonalidades amarela, laranja e vermelho. Era como uma verdadeira pintura.

Uma visão da natureza tão graciosa e abençoada que Ryota sentiu não tê-la visto por centenas de milhares de anos.

Mas mal fazia um ano desde que Aurora fora destruída, resumida a cinzas e chamas.

Enquanto caminhava pela praia, banhada pela luz suave do sol e olhando para o horizonte, seus passos foram marcados na areia.

Sendo justamente graças a essa sensação de sonho, nostalgia e um leve, mas viciante, terror, que Ryota voltou seus olhos azuis escuros para frente na praia, enxergando perfeitamente a grande parede de rochas que interrompeu o seguimento da areia.

Mas revelou, por outro lado, uma escuridão das sombras da noite que lentamente alcançou a sua própria… Incluindo a aparição de um pequeno garoto de cabelos negros.

Os pares de olhos azuis como o oceano e violetas como uma jóia se encararam em ligeiro espanto.

E esse foi o marco do reencontro na praia entre Ryota e Kuro.



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