Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 9 – Arco 4

Capítulo 15: Inconsistências

— Yo! Já faz um tempinho, hein? Como foi a prova, conseguiu passar? Pela careta sempre séria da guardiã da senhora Sofia, fica um pouco difícil de decifrar, sabia?

A garota de aparência colorida e excêntrica começou a falar imediatamente ao ver aquela que abriu a porta da sala de aula, alargando um grande sorriso. Ryota ficou momentaneamente surpresa ao vê-la ali parada, então apenas piscou silenciosamente em resposta.

Bellatrix inclinou sua cabeça, fazendo balançar os cabelos cor de cenoura com uma energia única. Os grandes e brilhantes olhos encaravam Ryota, esperando por suas palavras. Mas não importava o quanto se esforçasse, nada vinha-lhe à mente. Na verdade, quanto mais tentava, menos conseguia entender. 

— Aaaah, então foi realmente difícil, não é? Não me diga que não conseguiu passar?!

— … Não, não foi isso. Na verdade, foi o oposto… Eu acho.

— Aaaaah?! Sério?! Meus parabéns!

Agarrando as palmas das mãos dela, Bellatrix deu pulinhos de alegria ao ouvir aquelas palavras. Ainda que tenham sido ditas com ar confusão, não parecia que a menina de patins reparou na expressão de amargura da outra.

— Então, então, então! A minha balinha de hortelã foi de grande ajuda, não foi? Ela te acalmou quando o coração começou a bater bem rápido, não é?

— … O quê?

— A balinha de hortelã! A balinha de hortelã!

— … Ah, bem, isso eu entendi, mas… Balinha?

Ryota franziu a testa para Bellatrix, que ainda insistia em repetir as mesmas palavras, mas virou lentamente seu rosto na direção da sala de aula outra vez. Ali, ela podia ver perfeitamente o local onde há pouco tempo ocorreu o teste de admissão, com a carteira e cadeira ainda no mesmo estado em que foram deixadas. 

E, além disso... Sobre a mesa, havia uma bala de hortelã. Um pouco de saliva ainda repousava sob o doce, como se estivesse sendo consumida apenas alguns segundos antes de ser cuspida. Sua testa se franziu enquanto raciocinava um pouco a respeito da cena.

— Você me deu aquela bala?

— Hã? Aaaaah! Você cuspiu ela, que crueldade! E era a última que eu tinha!

Bellatrix inclinou a cabeça e olhou para dentro da sala, fazendo então uma expressão de melancolia e batendo um pé no chão com ar de tristeza para o que Ryota fez. Entretanto, nem uma única faísca de culpa surgiu em seu rosto, e a garota de cabelos negros apenas olhou a ruiva com um pouco de curiosidade.

— Então, você realmente a deu para mim antes de eu entrar na sala?

— É claro que sim! Você parecia estar toda nervosa ao ponto de segurar a bexiga pra ir no banheiro, então eu te dei minha última balinha como consideração… E agora você cuspiu ela! Malvada!

— … Ah, sinto muito por isso.

Ryota torceu a expressão quando Bellatrix a cutucou com o dedo indicador no rosto parecendo magoada, mas ao ouvir seu pedido de desculpas a ruiva pareceu se recuperar rapidamente, dando um suspiro enquanto mexia os pés. Seus patins deslizavam no chão suavemente, fazendo um barulho agradável.

— Só te perdôo porque você passou na prova.

— … Eu disse aquilo antes, mas ainda não tenho certeza se realmente passei.

— Não se preocupe! Tenha sempre uma visão otimista e o mundo vai abrir portas para você! Se você pensar o oposto, ele vai achar que você não queria tanto assim o que você desejou, então pá! Cabou!

— … Certo.

Apesar de Bellatrix estar fazendo um pequeno discurso motivacional, Ryota realmente não estava muito interessada. Sua mente ainda estava presa na sala de aula e na bala de hortelã. Sua expressão se tornou um pouco mais séria conforme pensava, olhando então para a ruiva ao seu lado.

— Eu estava com medo quando entrei para fazer a prova?

— Bem, você não disse nada sobre isso, mas parecia um pouco ansiosa.

Ryota escutou suas palavras com atenção, piscando em silêncio.

— Nós nos encontramos do lado de dentro ou do lado de fora do prédio?

— De dentro. Você entrou com o garotinho e se separaram, lembra? Vai me dizer que a prova te deixou tão nervosa que perdeu a memória?

Bellatrix fez uma piada sem graça e cutucou sua barriga com o cotovelo, mas isso apenas fez Ryota ficar ainda mais pensativa.

— … Nós nos encontramos… Dentro do prédio. E você me deu uma bala.

Ela sussurrou assim enquanto refletia, os olhos tremendo um pouco pelo esforço do cérebro em tentar entender a sequência de acontecimentos que não se lembrava.

Afinal de contas, aquilo não tinha acontecido.

Ryota adentrou o instituto com Dio, era verdade. Entretanto, eles haviam se separado e ela imediatamente foi em direção à sala de aula onde Amane lhe aplicaria o teste de admissão. Em momento algum ela e Bellatrix haviam cruzado caminho ou trocado palavras naquele dia. 

— … Mas que merda?

Ryota soltou um xingamento sussurrado ao sentir seu corpo queimar com o sentimento de confusão e atordoamento. Ela estava enlouquecendo? Ou aqueles acontecimentos… As cenas que não faziam sentido… Estavam relacionadas?

A princípio, havia achado que o problema estava em Dio. Afinal, até o momento, todos os cenários absurdos em que o vira morrer e surgir como se nada tivesse acontecido pareciam obra de algum poder sobrenatural dele. Entretanto, o mesmo menino havia agido como se não soubesse de nada e ela acabou decidindo deixar o assunto de lado.

Mas o que Bellatrix relatou fazia as coisas mudarem completamente. Então havia de fato algo de errado, mas não com Dio… Ela era o problema. Havia algo de errado com ela… 

Por que aqueles cenários estavam acontecendo? Por que via mortes que nunca aconteceram? E agora como era incapaz de lembrar de um cenário que deveria ter acontecido, mas não se recordava?

Se fosse apenas a palavra de Bellatrix, ela talvez não teria acreditado. Entretanto, a prova estava na bala de hortelã que havia cuspido após a finalização do teste de admissão. Aquela era uma evidência circunstancial irrefutável de que a menina de cabelos ruivos não estava tentando mentir com alguma intenção oculta.

Ryota refletiu sobre todas aquelas informações com uma grande agitação em seu estômago. Era forte ao ponto de fazê-la ver estrelas e o corpo amolecer de nervoso. Havia algo de errado com ela, ou com aquele lugar? Ou eram as pessoas ao seu redor? O que estava acontecendo, e por que isso a afetava tanto?

— Ugh!

Foi enquanto pensava profundamente sobre isso, ao ponto de sequer ouvir os chamados de Bellatrix, que uma pontada poderosa em sua cabeça fez seu cérebro estremecer. Ryota soltou um grunhido de dor e tapou um de seus olhos enquanto se apoiava na parede, suas pernas quase cedendo perante à dor que parecia martelar um prego invisível em seu crânio.

— Ei, ei, ei! Você tá bem?!

A menina de dread imediatamente a apoiou em seus braços, vindo ao seu socorro. Mas Ryota não foi capaz de responder, e apenas se concentrou em recuperar a respiração que se tornou descontrolada conforme a dor se aprofundava em seu cérebro. Gemidos soaram de sua garganta e os dentes rangeram conforme sua cabeça latejava cada vez mais profundamente, como se pudesse rasgá-la de dentro para fora.

— … Eu… Eu estou bem.

— Não, não, não! Cê não parece nem um pouquinho bem!

— … Foi apenas uma dor de cabeça passageira… 

Ainda que suas palavras de teimosia viessem, a tonalidade que eram ditas não faziam Bellatrix acreditar nem um pouco nelas. Mas Ryota inspirou fundo para controlar as sensações desagradáveis e forçou as próprias pernas que estremeciam a permanecerem firmes, endireitando a postura enquanto ainda estava com a mão no rosto.

— Olha, você parece um pouco mal de verdade… Devia sentar um pouco de descansar.

— … Não precisa. Eu vou tomar um ar fresco.

Ryota dispensou com um resmungo a preocupação de Bellatrix e se desvencilhou de seus braços, marchando para fora do prédio sem olhar para trás. Quando a luz de fora clareou sua visão, pareceu que a dor se intensificou e outro gemido escapou de seus lábios.

Mas o que é isso? O que tá acontecendo?

Conforme o tempo passou e suas perguntas se tornaram mais frequentes, era quase como se as pontadas de dor apenas ficassem mais e mais fortes.

Isso dói. Isso dói. Mas por quê? Por que dói tanto?

 — Algum problema, mocinha? Você tava com uma cara bem feia agora pouco, hein?

Abrindo os olhos devagar, Ryota voltou sua atenção para o homem de cabelos negros encaracolados que se aproximou ao seu lado. Sua expressão de seriedade e dor não mudou, embora seus pensamentos que trabalhavam em loop tenham perdido seu foco.

— O que foi? O teste de admissão te deixou assim tão nervosa?

Sasaki olhou para Ryota com uma expressão mista entre a preocupação genuína e sua travessura casual. Ele parecia estar tentando entender seu olhar de seriedade e ao mesmo tempo melhorar seu humor, provavelmente tendo ouvido de Bellatrix que ela havia saído após a prova. Mas a garota de cabelos negros apenas olhou para o curandeiro durante alguns segundos em silêncio antes de baixar a mão que ainda estava em sua testa, dizendo em voz baixa:

— O que você sabe sobre o teste de admissão?

— Fora que é uma prova escrita? Nada. As perguntas sempre mudam durante os anos e dependem bastante do aluno, então nós nunca sabemos com exatidão o que vocês recebem.

Sasaki balançou seus ombros e respondeu com naturalidade, mas o olhar de suspeita de Ryota não cedeu.

— Não me diga que foi assim tão difícil… Não posso acreditar que minha Sofia tenha feito algum tipo de pegadinha nas perguntas apenas pra não te aceitar aqui. Ou será que na verdade você é meio burrinha e não soube responder?

— … Por quanto tempo eu permaneci na sala durante o teste?

— Uns trinta minutos, mais ou menos.

— Meia hora…?

Ryota sentia que seu tempo no outro mundo fora muito mais extenso do que aquele dito por Sasaki, mas talvez ela não devesse esperar algo diferente envolvendo um poder estranho como aquele. Talvez houvesse uma diferença na forma como as horas passavam ali e durante o teste — afinal, ela havia sido, de certa forma, transportada para um “outro mundo” durante um curto período de tempo.

— Bem, o garotinho até que demorou um pouco mais pra fazer a prova do que você, mas ele acabou de sair da sala.

— O Dio terminou?

— Sim, agora mesmo. Eu apliquei a prova dele.

Ryota franziu a testa outra vez, o encarando. Isso fez Sasaki sentir arrepios na espinha e ele abraçou o próprio corpo, usando sua tonalidade dramática usual.

— Aaaah, que medo. Não sei porque tá me olhando assim, mas eu também não sei o que ele respondeu ou as perguntas. Eu só posso observar à distância ele escrevendo as respostas e não dizer nada durante esse tempo. Mas o menino demorou um pouco pra poder terminar, ao contrário de você que saiu até bem cedo.

Ryota baixou seu olhar, ainda pensando, e deu meia volta para entrar no prédio outra vez. Sua mente ainda estava focada em uma quantidade exorbitantes de dúvidas que apenas cresciam, mas a dor que latejava em sua mente desapareceu após um tempo ignorando-a. 

Não demorou para que ela trocasse olhares com o garoto de cabelos áureos sentado em um banco, colocando a mão no próprio peito enquanto inspirava fundo. Ela parou próxima a ele, encarando-o sem dizer uma única palavra. 

Dio abriu um sorriso doce ao vê-la se aproximar, suspirando nervosamente.

— Aaah, eu consegui acabar. Fiquei um pouco ansioso no meio porque algumas perguntas foram realmente difíceis, mas acho que consegui responder todas.

Ainda que sua expressão parecesse exausta após exercitar seu cérebro, havia um ar de satisfação que deixou claro para Ryota sua serenidade. Ela apenas suavizou sua expressão em relação às suas palavras, intimamente aliviada ao ver que o garoto não havia passado por uma experiência estranha como ela.

— … Entendo.

— E como foi o seu teste? Conhecendo você, moça, tenho certeza de que respondeu facilmente todas as perguntas.

Dio tinha uma expressão de confiança em seu rosto enquanto dizia isso, como se tivesse certeza absoluta da inteligência dela. Isso fez Ryota se sentir um pouco mal e desviar o olhar, apertando os lábios.

— Ainda não recebi o resultado.

— Mas eu sei que ao menos você vai conseguir, moça. Não tenho qualquer dúvida sobre isso.

— Como consegue ter tanta certeza?

Eles trocaram olhares outra vez. Era o mesmo clima de quando Ryota uma vez lhe perguntou — ou melhor, tantas vezes o indagou — sobre suas razões, sobre suas falas e motivos. Ela realmente não conseguia entender, e algumas vezes esforçar-se para isso parecia doer fisicamente nela. Mas Dio, assim como em todas as demais ocasiões, apenas respondeu com uma naturalidade e sorriso agradáveis:

— Porque você é muito inteligente, moça.

Dio riu baixinho de si mesmo, ainda confiante. 

Ryota apenas desistiu do assunto e apertou o olhar.

Ao contrário de um tempo atrás, ela sentiu seu corpo relaxar estando ao lado dele. Ainda que algo dentro dela não fosse capaz de aceitá-lo completamente, ao contrário dos demais em Urânia — e talvez além do país —, Dio era uma pessoa confortável para se conviver. Ele estava sempre agindo com naturalidade e mantendo um sorriso na face, e o clima enquanto conversavam era suave como uma brisa de verão.

— De toda forma, não precisamos mais aguardar aqui no instituto. Podemos voltar para o hotel e nos encaminharão os resultados em breve.

— Certo!

Dio não hesitou um segundo em sua resposta e saltou do banco, aproximando-se de Ryota para andar ao seu lado. A garota passou algum tempo o observando com a expressão neutra, o que chamou a atenção dele.

— … Você está bem, moça?

— … Sim. Acho que tem alguém nos esperando do lado de fora.

— Hã? Ah!

Um pouco confuso, Dio voltou seus olhos para fora do prédio enquanto andavam, e sua expressão se iluminou como um raio de sol quando avistou seu grande amigo. Ele correu para fora do instituto e abraçou Lion, rindo enquanto sentia a língua do filhote por seu rosto. 

— Eu cuidei dele pra vocês enquanto estavam fazendo o teste. Pode me agradecer agora.

— Obrigado!

— Ah, ao contrário dela, você é um menino muito educado, sabia?

Bellatrix abriu um sorriso doce para Dio ao vê-lo agradecer imediatamente, e olhou com acusação para Ryota. 

— A moça está apenas um pouco preocupada com o teste, Bella. Não fique brava com ela.

— … Está bem, vou perdoar apenas porque você pediu.

Bellatrix mostrou os dentes em um sorriso ainda maior e passou a mão nos cabelos de Dio, ao que o menino sorriu com o rosto um pouco vermelho. Aparentemente, eles haviam feito um pequeno laço de amizade naquele curto período de tempo.

— Mas não precisam se preocupar. Eu tenho certeza que vocês dois vão passar, então vamos comemorar com um grande bolo!

— Bolo?!

Bellatrix ergueu seu braço e soltou uma exclamação enquanto girava no lugar com seus patins, fazendo seus cabelos ruivos balançarem. Dio a olhou com um brilho nas íris digno de uma criança, e sua expressão sonhadora se voltou para Ryota imediatamente como se pedisse permissão para uma mãe.

Ryota não queria estragar a felicidade do garoto ou a animação de Bellatrix, mas não estava se sentindo confortável para comemorar. Então, apenas baixou os ombros e falou com seu tom baixo:

— Eu passo. 

— O quêêêê?!

Os dois ergueram a voz em espanto para ela, e trocaram olhares antes de se aproximarem da garota para segurar seus dois braços.

— E-Ei!

— Vamos, Ryota! Não seja assim tão chata! Vamos comer uns doces juntas e ficar ainda mais amigas!

— … Não, eu não-

— Por favor, moça! Come com a gente!

— … Eu…

Ryota foi presa pelos dois lados e cercada completamente. Mesmo Lion parecia encará-la com expectativa. Era uma situação um pouco desagradável, não porque ela detestava passeios ou algo semelhante, mas… 

Estava preocupada com coisas mais importantes. Haviam perguntas a serem respondidas, e ela sabia que Sofia teria essas respostas. Poderia conversar com Amane também… E talvez, ainda mais informações poderiam chegar aos seus ouvidos se insistisse com Sasaki.

— Por favoooor!

— … E-Está bem. Eu vou. Apenas me soltem.

Após ambos implorarem em uníssono outra vez, Ryota cedeu e soltou seus braços, se afastando um pouco nervosa enquanto abraçava o próprio corpo e desviava o olhar. Dio e Bellatrix abriram um grande sorriso e deram um high-five comemorativo, ao mesmo tempo em que Ryota lutava para conter o estranho sentimento quente que percorria seu corpo.

Ela não teve outra escolha a não ser acompanhá-los pela cidade.



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