Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 9 – Arco 4

Capítulo 13: Significado

Enquanto aguardava uma resposta para todas as perguntas disparadas em direção ao garoto, ela apenas o viu reagir semicerrando os olhos. Era uma expressão de seriedade, quase de indiferença. Mas sabia, e sentia, que pela resposta corporal dele, não era algo assim tão simples de se receber.

Ryota perguntou a Dio diversas vezes a razão para permanecer tanto tempo ao lado dela. As respostas sempre foram vagas, quase desviando-se do assunto em questão. Era como se o garoto se recuasse a explicar a origem daquela determinação. A princípio, havia deixado aquilo de lado — afinal, ele era apenas um menino meio perdido que, àquela altura, possivelmente apenas estava procurando algum refúgio que não fosse ir para um orfanato na capital real de Thaleia.

Conforme os dias foram passando, passou a se perguntar o que faria com ele. Afinal, não poderiam ficar juntos daquela forma para sempre. Era apenas passageiro, independentemente do que ele acreditasse. Eventualmente, ambos precisariam se separar. 

Mas seu ponto de vista começou a mudar a partir do momento em que as cenas que visualizava se tornavam cada vez mais estranhas. Primeiro, na capital. Ela sabia que não fora uma ilusão quando o menino, ao lado de seu filhote, tiveram seus corpos rasgados em pedaços junto às construções. Aquilo foi apenas um pouco antes da cena na igreja, com a Autoridade chamada Alles.

A princípio, teorizou que talvez ele tivesse sobrevivido por sorte. Afinal, Eliza era uma curandeira potencialmente habilidosa, o que a permitiu tratar de seus ferimentos sem problemas. Mas então Dio apareceu desejando viajar ao seu lado para lhe fazer companhia, sem supostas origens ou contatos. Ryota decidiu aceitá-lo momentaneamente, sabendo que precisaria deixá-lo em algum momento. Ela não era capacitada ou tinha vontade de criar uma criança. 

Não precisava de mais preocupações em seus ombros. Haviam poucas coisas que desejava fazer, e caso não se concentrasse apenas nelas, seria incapaz de cumprir com seus deveres. Se estendesse a mão a todos, como se pudesse carregar o mundo, eventualmente aquelas pessoas, aqueles pedidos, aquelas promessas escorreram pelas suas mãos pequenas e desgastadas. Portanto, para que não houvesse decepção ou mais dor, apenas virou as costas, tapando olhos e ouvidos.

Mas em algum espaço de tempo a garota passou a se preocupar. Em determinado ponto, olhou para aquelas ações de Dio com outro ponto de vista. E se aqueles sorrisos, risadas e lágrimas fossem falsas? E se aquele menino, na verdade, fosse um espião mandado para observá-la? Ainda que ele jamais a tivesse ameaçado, tendo inclusive salvo sua vida no banheiro, poderia ser apenas uma forma de conquistar sua confiança.

E, quando isso acontecesse, aproveitaria-se de seu momento frágil — para matá-la? Sequestrá-la? Ryota não sabia quais eram os objetivos da Ritus Valorem, mas o cenário no trem a fez perceber que deveria estar preparada para que pessoas fossem contratadas com o objetivo de buscarem sua cabeça. E se a ameaça direta não funcionou, encaminhar um elemento estranho, mas carismático, sabendo que Ryota dificilmente rejeitaria um pedido de ajuda, era simplesmente cruel.

Acreditou que estava vendo coisas, ouvindo falácias. Ainda que Sasaki se revelasse como um desconhecido desde o começo, tendo sua confiança tomada com facilidade quando ainda desconhecia — ou apenas não queria enxergar — o mundo como realmente era. Mesmo ouvindo de Jaisen e Zero sobre Albert, que os traiu e deu-lhe as costas quando mais precisou.

Se mesmo familiares poderiam tomar aquelas atitudes que a faziam querer chorar, como não suspeitaria de Dio? Agora que estava ciente de elementos como Sasaki, que revelariam suas verdadeiras faces facilmente quando eram descobertos, mesmo pessoas como Fuyuki, que a usariam quando bem entendiam mesmo tomando sua confiança ou compartilhando dias agradáveis, ou aqueles como Fanes que escondiam suas verdadeiras intenções do início ao fim com um sorriso gentil.

Eram exemplos diferentes, mas todos eram baseados na mesma origem da mentira, da manipulação e do controle. 

Talvez você pudesse dizer em livros ou filmes que aqueles que mais usavam os outros eram os frios, os apáticos, os calculistas, os introvertidos, ou como preferisse chamar. Mas, naquele mundo real, as pessoas mais inacreditavelmente gentis, próximas e sorridentes eram justamente as mais perigosas. 

E Ryota não queria ser usada outra vez. Não temia o descarte, pois entendeu que era daquela forma que devia funcionar. Mas preferia ser a única ferida caso inocentes ou pessoas amadas estivessem dentro do jogo daquele que tentava se aproximar — e ela sabia que eles sabiam de sua fraqueza. 

Foi por isso que não quis se aproximar de Bellatrix, mesmo desejando se importar. Que sufocou e a mente vagou para longe quando chegou no hotel e viu os olhos entristecidos de Dio.

Era muito, muito difícil suportar aquele peso. Se acostumar a ser distante para protegê-los — e para se proteger. 

Mas e se ela estivesse errada desde o início? E se sua mente, que dava voltas e voltas em busca de encontrar um culpado, alguém para se afastar e aqueles que precisava salvar, estivesse olhando para o lado errado… E fossem justamente aqueles que desejava abraçar quem a esfaqueariam na barriga quando fechasse os olhos?

Aquele medo, o pavor, a paranóia, a irracionalidade, a perdição e todas as lágrimas derramadas pareciam se acumular em seu peito como se fossem explodir. Ela desejou acabar sozinha com aquela dor, ao invés de esperar que outros o tomassem. Mesmo que Dio a tivesse impedido, aquele peso não desapareceu… E, agora, conforme encarava a face fria do garoto com um cachorro em seu colo, apenas tinha mais e mais certeza.

Ela não podia confiar em ninguém. Não deveria se aproximar, sequer cogitar a possibilidade de deixá-los fazer isso. Sua ingenuidade cavava buracos abaixo dos próprios pés, profundos o bastante para engoli-la. 

O frio que percorreu sua barriga a fez tremer dos pés à cabeça quando Dio segurou a xícara de café com leite nas mãos pequenas, inspirando o odor agradável dos grãos que o compunham.

— … Moça.

O garoto ergueu a cabeça e a olhou, abrindo os olhos frios como normalmente fazia.

— Eu não sei do que você tá falando.

Dio apertou os lábios, percebendo que ela ainda não baixou a guarda.

— Eu… Eu também não sei o que dizer pra te convencer do contrário. Já te contei várias vezes a razão de querer ficar ao seu lado, mas por alguma razão, você ainda assim me deixa pra trás… 

Ele engoliu em seco, mexendo os dedinhos frios na superfície quente da xícara.

— Quero dizer, eu sei que tô sendo egoísta… E que você não é obrigada a nada. Pra ser sincero, depois que chegamos aqui, minha cabeça ficou tão distraída que parei até de pensar nisso. Quando você me deu aqueles doces, pensei que talvez… Desculpe. 

Dio pareceu começar uma explicação emotiva, mas hesitou e parou, abaixando a cabeça. Sua postura era de submissão, os ombros e voz baixas.

— … Eu vou entender… Se você realmente não quiser mais me ver. Não tem problema. Nunca foi minha intenção te preocupar, ou te deixar desconfortável. Eu só pensei que… Ah, não importa. 

Um sorriso melancólico surgiu em seus lábios.

— Eu realmente não entendo muito bem o que tá acontecendo agora, e sei que talvez isso só esteja te incomodando. Desculpa. E… Sobre o que me perguntou antes… Não vou conseguir te dar uma resposta que te deixe satisfeita. A verdade é que eu queria só dizer um “não” pra tudo, mas percebi que isso não vai te deixar menos aflita com a minha presença. Desculpa.

Timidamente, Dio soltou a xícara de café que agora esfriava, encolhendo-se no banco.

— Eu não morri… Ao menos, não lembro disso ter acontecido — riu sozinho, fazendo uma piada que não convenceu nem a ele mesmo — … E, bem, eu não sei de nada, nada mesmo, sobre o que falou antes. Não consigo fazer nada, e nem conseguiria se realmente precisasse.

Dio apertou as mãos no colo, puxando o tecido da própria roupa.

— … Se eu pudesse… Talvez tivesse sido capaz de salvar qualquer um deles… Antes de morrerem.

Ryota baixou seus ombros, percebendo que lágrimas brotaram nos olhos do garoto que lembrava dos amigos perdidos. Quando escorreram, o menino rapidamente as limpou, fungando discretamente o nariz. Em nenhum momento desde então ele ergueu o rosto ou a encarou.

— Desculpa. Me desculpa, moça.

Lion choramingou baixinho no colo de seu dono ao vê-lo chorar, o que fez o garoto sorrir e acariciar suas orelhas peludas com um sorriso pequeno. 

— Não quero voltar pra Hera, mas também não quero ficar aqui sozinho… Se possível, mesmo que em silêncio, ou te pagando por todos os gastos que precisar ter comigo… Eu… Realmente queria ficar com você. Mas se isso não for possível, vou entender. Não quero que a pessoa que me salvou me odeie… Então, tá tudo bem.

Apesar daquelas palavras corajosas ditas com um tom trêmulo, as lágrimas ainda se acumulavam nos olhos do garoto. Seus sentimentos traíam a própria lógica, o impedindo de falar com convicção, como uma vez fez no trem.

Ryota, assistindo aquilo, não soube o que dizer a princípio. Sua garganta secou, a mente trabalhou para enxergar a face da mentira no rosto dele, uma máscara de manipulação para que sentisse pena. Entretanto, não foi capaz de vê-la — e apenas perceber que estava tão desconfiada de uma criança fez seu coração apertar tanto que poderia tê-la matado.

— Ainda que me diga isso, não vou entender.

Repetiu a mesma frase que lhe disse diversas vezes antes, quando o via se aproximar com um sorriso. Suas sobrancelhas se abaixaram, e os olhos que antes o encaravam agora se deslocaram para a própria xícara de café amargo. 

— Talvez para você não tenha importância explicar sobre seus sentimentos, mas para mim…

Ela tinha dificuldade em aceitá-los. Uma coisa, era receber gratidão por algo feito. Outra, era um carinho gerado de forma instantânea. Ryota ficava feliz em ser recompensada por suas ações, pois um de seus maiores prazeres desde sempre foi ouvir e ajudar os outros a sorrirem. Apenas fazendo aquilo sua existência poderia ganhar significado, e as próprias lágrimas seriam insignificantes perante aos demais.

Mesmo quando Zero se declarou, ou a ajudou tanto ao ponto de quase morrer, perguntou-se o porquê. Por que alguém como ele a ajudaria? Por que se sacrificaria? Que valor havia nela, uma pessoa incapaz, sem qualidades chamativas? Por que amá-la? E várias vezes o rapaz pacientemente a abraçou, explicou sobre seus sentimentos, falou lentamente sobre suas dores, sobre seus sonhos e como ela foi essencial para esse caminho ser trilhado.

Ryota queria aceitar tudo aquilo, mas seu coração era teimoso. Enquanto o cérebro não conseguisse uma justificativa, o coração jamais seria recompensado. Era difícil aceitar tamanho carinho, mesmo o desejando tanto ao ponto de se odiar.

— … Para mim, é muito, muito importante. Ainda que sejam emoções abstratas, irracionais, geradas de um dia para o outro… Ainda assim, eu não vou conseguir entender.

Ela dizia isso não como forma de enfatizar sua teimosia ou deixar claro a rejeição, mas justificando as próprias ações, ainda que isso não as redimisse. Ryota percebeu que para que Dio a entendesse, também precisaria revelar um pouco sobre o que estava em seu coração.

O garoto a escutou em silêncio, tendo enxugado as lágrimas e ranho na manga da roupa.

— Foram, e ainda são, situações que não são problema seu. Não quero que se envolva, mas não desejo que parta se sentindo culpado, porque a culpa não é sua.

Foi minha. Eu não salvei os amigos dele, mesmo os ouvindo pedir socorro. Eu deixei que ele os visse morrer. E, agora, eu estou rejeitando seus agradecimentos e carências. 

— … Para compensar isso, vou permitir que fique ao meu lado, ao menos por um pequeno período de tempo. Enquanto eu estiver em Gnosis. 

Os olhos áureos de Dio se arregalaram.

— Mas não quero que se intrometa ou se envolva demais comigo. Você entende os perigos que me rondam, certo? Afinal, viu o que aconteceu no trem. Ameaças ainda maiores podem se aproximar, e talvez não tenhamos tanta sorte no futuro. Sua vida pode correr riscos inimagináveis.

— Sim, está tudo bem.

— Não está “tudo bem”. Você realmente entende a gravidade do que estamos passando agora? De que tudo isso que vivemos é apenas…

… Apenas um jogo? Um teatrinho? 

E que as lágrimas dele a convenceram facilmente demais?

Não importava quanto tempo, ou o que passasse, Ryota realmente não conseguia moldar seu coração. 

— Está tudo bem. Afinal, você vai me proteger.

Dio abriu um sorriso largo, mostrando seus dentes. Ainda haviam manchas de lágrimas em seus olhos, mas o que mais a chocou foi a declaração de certeza definitiva.

— Eu posso não ser rápida o bastante. Ou talvez peguem você como refém… Entende isso?

— Mas não importa o perigo, você sempre vai tentar me salvar, moça. Sempre foi assim, e sempre vai ser. Não é?

— … Por que fala isso com tanta certeza?

— Eu apenas sei.

— Sabe o quê?

Dio finalmente a encarou nos olhos.

— Sei que você é uma pessoa maravilhosa. Sei que mesmo que alguém como eu passe por um problema, vai tentar me ajudar estendendo a mão, ainda que sua própria vida esteja correndo ainda mais perigo.

— … O quê?

— Eu sei que você, moça, tem um ótimo coração. Talvez fique um pouco tímida quando falam isso diretamente, mas todos percebem quando te conhecem. Essas foram algumas das razões pelas quais eu passei a gostar e te admirar… E querer ficar ao seu lado. Sei que, de alguma forma, posso me tornar corajoso e legal como você se eu sempre te observar. 

Ryota se calou completamente, perplexa. Ela realmente não entendia. Não entendia, mas, ao mesmo tempo, era como se entendesse. Como se pudesse ver aqueles cenários. Talvez fossem lembranças de quando se conheceram na capital. Mas seu coração palpitava em resposta àquelas palavras. A expressão visivelmente tocada pareceu encorajar Dio a finalizar:

— Além disso, se eu puder ser útil, quero te ajudar. Vou ficar quieto quando me pedir, e não me envolverei quando for perigoso para não te dar ainda mais trabalho. Mas… Mas se você estiver passando por alguma dificuldade, e eu perceber que posso fazer alguma coisa pra ajudar, não quero hesitar em correr até você e te estender a mão, da mesma forma que fez por mim. Talvez ela seja meio pequena e frágil, mas se te fizer bem nem que seja um pouco, vou ficar feliz.

Dio sorriu, olhando para as próprias mãos. Era como se ambos pudessem enxergar aquilo acontecendo — e de fato, algumas horas atrás, o garoto correu com lágrimas de desespero nos olhos para salvá-la de um ato impensado. Foram palavras de improviso acompanhadas de um esforço físico inútil, mas se ele não estivesse lá…

Ryota imaginou o menino entrando no banheiro, vendo o corpo dela flutuando na água quente que perfluía através da banheira. A imagem veio à sua mente vívida o bastante para remexer seu cérebro, estremecendo-o, desconectando-a daquela realidade. 

Se apoiando na mesa fazendo barulho, soltou um gemido de dor. O disparo em seu coração, o zumbido agudo nos ouvidos, o calor, o frio, as dores, o sangue mesclando-se à água quente… Foram reais demais. Se apenas um cenário hipotético daqueles a afetou tanto ao ponto de ver estrelas, atravessando a imaginação para afetá-la fisicamente…

Ela realmente não estava bem. Sua resistência mental enfraquecia a cada dia. E se não fosse capaz de controlá-la, talvez precisasse de alguém que chamasse sua atenção nestes momentos. Assim, poderia recuperar a sanidade e entender seus arredores outra vez — mesmo que os sentimentos e visões praticamente a cegassem.

E Dio, mesmo sendo apenas uma criança de onze anos, parecia ter uma maturidade impressionante. Ainda não era capaz de confiar plenamente, mas seus sentimentos eram reais. Ao menos, pareciam o suficiente para tocar seu coração. Não queria rejeitá-los ou desprezá-los. Se as emoções eram verdadeiras, queria aceitar e corresponder. 

Caso fingisse não ver ou ouvir, aquilo certamente o magoaria. Ela sabia perfeitamente como a rejeição profunda doía. Portanto, se tudo o que aquele jovem menino era sua companhia…

— … Está bem. Não entendi direito porque começou a falar isso tudo de repente, mas também não quero saber. Apenas prometa não se envolver ou falar quando for desnecessário. 

— Sim!

E mesmo tendo esfriado, Dio finalmente devorou seu lanche.

***

Deitada na cama, Ryota ligou o abajur que refletiu uma luz alaranjada em seus olhos. Estava sozinha, pois Dio e Lion dormiam em outro quarto. Em meio à noite, a garota que não conseguia pregar os olhos despertou e lembrou-sen de algo, sacando o caderninho com uma caneta de quatro cores presa para seu colo.

O bloco de Zero estava intacto desde a última vez que o pegou. Ainda que sua tentativa de ler no trem tivesse sido interrompida, ela ainda seria capaz de consumir um pouco das palavras daquele rapaz. Demandou muito tempo para que a coragem lhe desse forças, mas agora finalmente poderia ser capaz de fazer isso.

Inspirando fundo, Ryota sentiu suas mãos tremerem um pouco quando virou a capa, sendo revelada às escritas do garoto. Zero tinha uma escrita legível e bonita, bem diferente da dela. 

“Do Zero ao Um”

— O quê?

Ryota leu aquela anotação da primeira página com uma expressão de desentendimento. Então, acompanhou com os olhos o restante das escritas, parecendo ser uma citação.

“O zero significa nada. É vazio, oco e solitário. Um algarismo que representa a ausência de valor, mas que se acrescentado à direita de outro, multiplica seu valor.”

Ryota baixou as sobrancelhas para a última anotação da primeira página.

“Sozinho, ele não possui razão para existir; ao lado de alguém, é capaz de elevar seu valor.”

Seus dedos se apertaram nas páginas, bem como seus lábios. Ryota não entendeu em que momento o rapaz começou a escrever aquelas passagens, mas presumiu que foram ligeiramente recentes pela caligrafia. No mínimo, há pouco mais de um a dois anos. 

— … Por que essa foi sua primeira anotação, Zero? Por acaso… Eram seus pensamentos quando abriu este bloco?

Fechando o caderno e prendendo a caneta, a garota soltou um suspiro pesado. Com apenas algumas palavras, aquele pequeno objeto pareceu esmagar seu peito com um peso insatisfatório, bem como com pensamentos desagradáveis.

Ela sentia a falta dele. Queria ouvir sua voz. Sentir seu cheiro. Seu abraço. 

— … Acho que foi o bastante para mim, por hoje.

Incapaz de ler mais do que aquilo, Ryota guardou o bloco e apagou à luz, deitando sozinha na cama. 

Da fresta indetectável na porta, um Dio com indiferença a observava.

***

— Sejam bem-vindos. Fui encaminhada pela senhorita Sofia para aplicar o seu teste, senhorita Ryota.

— E euuuzinho aqui vou aplicar o do rapazinho! Acho que estamos em sintonia hoje, não é, Amane?

A guardiã com cara de poucos amigos desviou a atenção de Sasaki quando ele surgiu por trás dela e se apresentou com um sorriso largo. Tendo retornado ao Instituto Gnosis após uma noite de sono, Ryota e Dio acordaram pela manhã, tomaram café e se prepararam para voltar ao campus.

Porém, para a surpresa de ambos, aparentemente Sofia havia dado o primeiro passo por conta própria, preparando as provas para a dupla indecisa fazer imediatamente assim que voltassem. 

— Ela realmente não está pra brincadeira…

— De fato. A senhorita Sofia nos ordenou a aguardar sua chegada, pois presumiu que seu retorno seria uma resposta naturalmente afirmativa. 

— Eu realmente odeio pessoas que tomam a iniciativa pelas minhas costas.

Ryota teve uma experiência desagradável com Edward no começo, quando começou a trabalhar como guardiã de mentira para ele, mas conforme o tempo passou, ambos foram capazes de se dar bem. Entretanto, a reitora de Gnosis era uma persona com personalidade e discurso difíceis de serem manobrados, algo que a garota deveria ter esperado desde o começo que fosse acontecer.

— Podemos prosseguir, então? Não quero perder mais tempo.

— É pra já, senhorita.

— Ooooh, hoje vocês parecem determinados, hein? É assim que eu gosto! Então, nos acompanhem!

Andando lado a lado, Amane e Sasaki adentraram a instituição, com Ryota e Dio caminhando logo atrás. Os estudantes ainda passeavam pelos corredores e apresentavam seus projetos na área externa, mas certamente o corredor pelo qual passaram estava estranhamente silencioso.

Parecia que estavam cientes de que uma prova aconteceria, então isolaram aquela área para que os participantes não tivessem suas concentrações afetadas.

Ryota sentiu Dio puxar sua manga, e o olhou.

— … Eu não sei muita coisa do que ensinam na escola, mas vou me esforçar pra passar na prova. Por isso, hm… B-Boa sorte.

— Pra você também.

Eles deram um sorriso tímido um para o outro. Como de costume, o cachorro do garoto havia permanecido no hotel, pois não seria permitido sua presença dentro de uma escola — ao menos, não durante o teste. 

— Acompanhe-me.

Quando trocaram palavras, Ryota ouviu um pedido vindo de Amane, então a seguiu pela esquerda. Dio e Sasaki andaram para a direita, entrando em uma sala vazia diferente. 

A garota estava um pouco nervosa. Se Sofia preparou um teste escrito com o propósito de testar seus conhecimentos, havia muito pouco que poderia apresentar. Entretanto, esperava que houvesse tempo o bastante para que pudesse refletir a respeito das questões e suas respostas. 

Mas antes que pudesse perguntar à guardiã sobre quanto tempo teria para terminar a prova, Ryota encarou chocada o estado da sala de aula — afinal, havia apenas uma carteira com uma cadeira bem ao centro. O espaço vazio dava ao cômodo uma sensação de desconforto, mas ao mesmo tempo de liberdade. Era desconcertante, principalmente porque Amane parou diante da mesa, aguardando que a garota se sentasse.

— Quanto tempo tenho para responder as perguntas?

— O tempo que for preciso.

— O quê?

— Então, contarei três segundos antes de virar sua folha e iniciar o teste.

Ryota percebeu que Amane não estava disposta a responder suas perguntas, então apenas baixou os ombros e olhou para a folha de sulfite virada de cabeça para baixo. Atrás dela, estariam as questões enumeradas que precisariam ser respondidas. Era um pouco cruel da parte de Sofia esperar que Ryota fosse capaz de tirar uma nota boa, mas ela deveria ter esperado uma resposta cruel e egoísta de alguém da nobreza.

Além disso, seria um momento bom para a própria Ryota, também. Afinal, poderia descobrir em que nível seus conhecimentos estariam, e o quão tanto precisaria estudar para alcançar o mínimo esperado por alguém da alta classe ao qual entrara.

Ela queria orgulhar Zero de tê-la escolhido.

— Três.

Não poderia falhar.

— Dois.

Se falhasse, ele mesmo acabaria perdendo seu valor.

— Um.

Ryota inspirou fundo e segurou a caneta preta em sua mão direita.

— Comece.

Ela virou a página em branco.

Sua face empalideceu.

Afinal, havia uma única coisa escrita naquela folha.

NEGAÇÃO

Ryota sentiu o ar ser roubado de seus pulmões, e um baque em sua cabeça a fez perceber que sua pressão caiu. Ou melhor, a tontura foi profunda o bastante para que caísse contra a mesa, batendo a testa.

E, assim, perdesse a consciência.



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