Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 9 – Arco 4

Capítulo 12: Quem é Você?

O fim do dia chegou em uma velocidade acima do normal. Quando Ryota finalmente conseguiu se livrar de Bellatrix, que ainda insistia em arrastá-la por todos os lados, ela partiu de Gnosis e retornou para o hotel, onde Dio aguardava com Lion. Eles trocaram cumprimentos silenciosos, mas o garoto parecia especialmente preocupado.

E ela não soube dizer se aquele sentimento era dedicado a ela ou a si mesmo. Mas também não ousou perguntar.

Com o pôr-do-sol pintando o quarto, o garoto de cabelos áureos acariciou o filhote que dormia calmamente em seu colo. Seu pequeno rabinho felpudo amarelo balançava devagar, indicando que seu sono estava um pouco instável. De certa forma, era quase como se reagisse perfeitamente aos sentimentos de seu dono, que ficou quieto durante todo o dia à contragosto.

Quando Ryota abriu a porta do quarto e trocou olhares com ele, suas íris se arregalaram um pouco ao vê-lo naquele estado. Era apenas uma criança que conhecera por acaso e se apegou estranhamente, mas a forma como suas sobrancelhas se franziram e seus lábios apertaram como se fosse chorar fez seu coração se apertar.

Engolindo em seco, apenas marchou desviando o olhar na direção do banheiro e se trancou. Batendo as costas contra a porta, soltou um suspiro.

Por que ela se sentia assim, tão desconcertada? Estava mesmo se sentindo culpada por fazer algo óbvio? Ou será que estava vendo coisas? 

Precisava se acalmar. Lavou o rosto na pia do banheiro e encarou seu reflexo. 

Quem era aquela pessoa que a olhava de volta?

Certamente não a reconheceriam caso comparassem as duas Ryotas. Uma era sorridente, alegre e entusiasmada. Ela correria pelo pátio de Gnosis, pediria emprestado os livros da biblioteca e se empolgaria com os patins. Talvez ela até comprasse um chocolate para Dio no caminho de volta, pois ele esperaria por ela antes de ir embora. Se o tratasse um pouco melhor do que apenas um encosto, quem sabe ele não a olhasse como se se sentisse humilhado.

Será que era esse o caso? A face demonstrada por ele não era preocupação com ela, mas o sentimento doloroso de rejeição? Ele havia se sentido mal quando fora calado? Por ser obrigado a deixar seu único companheiro escondido no hotel? Ter sido privado de dar sua opinião ou aproveitar o dia na cidade?

Ela sentiu o mundo girar. Enquanto encarava seu reflexo que se borrava, como se o chuveiro quente estivesse ligado, ela apoiou as mãos na pia fria e tentou senti-la. Seu corpo superaqueceu, começando a suar.

E quanto à Scarlet? À Sasaki? Seriam eles pessoas assim tão ruins? E se ela estivesse apenas enganada? E se aquela ruiva fosse apenas um pouco espalhafatosa, mas suas intenções não fossem ruins? E se o curandeiro apenas tivesse se expressado mal? E se, neste momento, ele também se culpava pela forma com que falou com ela? Era por isso que continuou agindo normalmente após aquela conversa?

Será que ela estava enlouquecendo? A experiência em Hera, a fazendo acreditar que por trás de tudo o que era expressado havia uma mentira, uma enganação, alguém tentando usá-la, a traumatizou ao ponto de não desejar o toque ou acreditar em ninguém? 

Bellatrix teria ficado magoada por não ter sido chamada por seu apelido nem uma única vez? Será que ela teria ficado mais feliz caso Ryota a tivesse feito rir, como os outros estudantes? Ela deveria ter comentado sobre seu cabelo, suas roupas e trejeitos incomuns?

— … Minha cabeça tá me matando.

Ela doía ao ponto de fazê-la perder a noção de equilíbrio. O calor, as dores, a culpa, o medo, todos aqueles sentimentos unidos a fizeram cambalear em direção à banheira. Mesmo tendo tomado banho um tempo atrás, ainda parecia como se seu corpo estivesse suado, sujo, podre. Ela retirou as roupas em uma velocidade acima do comum e entrou na água fria.

Normalmente, alguém que entrasse em um banho frio no inverno seria considerado maluco. Durante o dia, ainda poderia ser dito que a temperatura estava relativamente agradável. Mas agora, quando o sol desapareceu do horizonte e os ventos balançavam as folhas das árvores, era impensável considerar um passo como esse.

Sentiu seus dentes baterem uns nos outros. Os dedos, os cotovelos, os joelhos lentamente perderem o tato. Mas o frio era tão, tão agradável. O calor dentro dela parecia se dissolver com o frio daquela água.

— Ah-!

Foi quando escutou um grito. Virando lentamente a cabeça com os olhos azuis quase se fechando na direção da porta, ela viu Dio abrir passagem com uma expressão de choque. Os olhos arregalados encararam a cena diante de si e, ignorando completamente todo o constrangimento, garoto apenas correu na direção dela.

— Moça! Moça, você não pode ficar nesse frio, vai acabar morrendo! E não arranha seus pulsos!

Ele ergueu a voz como nunca fez antes, com lágrimas brotando do fundo de seus olhos. Ryota não entendeu a razão dele ter entrado no banheiro silencioso em uma velocidade alta daquelas. Ela não fez qualquer barulho, e mesmo que ele percebesse a água sendo ligada, poderia apenas ter deduzido que estaria tomando outro banho.

Mas Dio apenas ergueu o rosto dela para que se encarassem. Na visão do garoto, ela tinha o rosto de alguém que perdeu a vontade de viver. Aquilo pareceu assustá-lo profundamente, embora para Ryota não houvesse qualquer problema.

Ela sequer franziu a testa ou ergueu a voz para brigar com ele. Afinal, o calor dentro dela se dissolvia devagar, manchando a água cristalina em vermelho. Ela limpava suas impurezas, retirava dela as chamas que a destruíam de dentro pra fora. Era esperado que a cor do banho mudasse, afinal. 

… Hã? Pulsos?

Baixando os olhos, finalmente foi capaz de entender a razão pela qual não era capaz de senti-los. Era porque a temperatura congelou ao ponto dela sequer ter noção de seu próprio tato. Portanto, enquanto cegamente procurava por uma forma de sentir o próprio corpo outra vez, começou a tocar os próprios braços. Mas pareceu que aquilo não adiantou, e apenas as unhas foram capazes de expor para fora o calor, a ardência do ferimento.

Os rasgos nos pulsos e braços eram poucos, mas explícitos e recentes. 

— M-Moça…!

Dio ficou preocupado ao vê-la encarar os braços ensanguentados sem dizer nada. Seu nervosismo era visível, e mesmo Lion veio correndo ao ouvi-lo gritar, começando a latir como forma de protesto. O garoto, após perceber que não conseguiria retirar a garota sozinho daquela água, pensou, pensou… E então:

— E-Eu tô com fome! 

Ryota ergueu o rosto.

— N-Não comi nada o dia todo… E preciso que pague pra mim alguma coisa! A-Agora!

Sua mente o levou a pensar na única solução possível para fazê-la se mover, e que a fizera antes dar-lhe atenção — a comida. Se ela havia lhe dado algo para comer nas duas vezes em que sentira fome, era esperado que o mesmo acontecesse agora, certo?

— … Estou indo. 

Piscando como um robô, Ryota se colocou em pé. Dio ficou de costas de imediato, apenas olhando para seus pés, garantindo que ao menos a visão periférica mantivesse as pernas dela sob sua atenção. Se ele não poderia se virar, ao menos poderia escutá-la caso começasse a se arranhar outra vez.

Mas antes que pudesse incentivá-la com mais palavras a se apressar, a própria Ryota saiu da banheira e caminhou diante dele. Passou a toalha pelo corpo, ignorando completamente o menino, e saiu do banheiro. 

Dio soltou um suspiro trêmulo e enxugou as lágrimas, virando-se então para limpar a sujeira deixada para trás. Quando saiu, viu a garota vestida outra vez, ainda com a pele pálida o bastante para parecer branca de frio. Seus lábios pareciam roxos, e seus olhos azuis estavam especialmente escuros, quase como os de um peixe morto. 

— Vamos.

— … Sim.

Quando ela abriu a porta para sair, Dio sentiu Lion pular em sua cabeça, aconchegando-se. Antes da garota começar a caminhar, o garoto tomou coragem para segurar sua mão. O toque durou uma fração de segundo, pois ela recuou como se tivesse queimado os dedos. Aquilo a chocou mais do que deveria, mas ele ficou ainda mais surpreso.

Seu corpo estava frio demais, quase como um cadáver. Seus olhos se arregalaram, ainda com a própria mão erguida no ar quando Ryota se afastou em choque, batendo o ombro contra a parede. Ela o encarou como se visse uma assombração, as íris trêmulas.

— D-Desculpe… Só não quero me perder.

Como de costume, ele respondeu com timidez. Se ela estivesse em consciência das próprias ações, talvez o garoto se esforçasse um pouco para demonstrar preocupação, mas parecia que agir daquela forma não traria resultados. Então, talvez se propondo a agir como de costume, ela reagisse melhor. 

Ryota baixou os ombros erguidos em alerta e engoliu em seco, sentindo a saliva escorrer devagar o bastante para fazê-la engasgar. 

— … Apenas fique ao meu lado e você não vai me perder de vista.

Ela escondeu as mãos nos bolsos e voltou a andar, mas dessa vez mais devagar. Dio levou as próprias mãos para perto do peito, onde o coração disparado voltou a se acalmar. E, por fim, a seguiu.

***

— O que vai querer?

— … Hã… Bem… U-Uma xícara de café e um… Um misto q-quente…!

— Apenas um café preto para mim.

— Imediatamente.

Ao garçom que se retirou levando os cardápios, Ryota voltou seu olhar antes de descê-lo para Dio. O garoto que encarou durante longos cinco minutos os pratos, porções e bebidas estava com as bochechas vermelhas de vergonha.

— O que foi?

— N-Nada… É que… Bem… Eu fiquei um pouco nervoso.

— Por quê?

— … Eu nunca tomei café feito por outra pessoa antes… E… Nunca comi em uma padaria.

Ele parecia realmente constrangido revelando aquilo. Seu pequeno corpo tremeu sob o olhar frio da outra, e seus olhos se abaixaram ao máximo que podiam. Em apoio, Lion lambeu sua mão, ficando em silêncio dentro do estabelecimento. Aparentemente, Urânia era um lugar em que a presença de animais adestrados não incomodavam outras pessoas, e o filhote de Dio era um exemplo perfeito disso.

— Foi por isso que pegou o combo mais barato?

— … Bem… F-Foi na pressão, então…

Ryota soltou um suspiro que fez Dio erguer o rosto vermelho.

— Se acalme e apenas aproveite enquanto ainda estou de bom humor. 

— S-Sim… Muito obrigado, moça.

Ele abriu um sorriso doce que derreteu o coração dela, mas a garota não se permitiu demonstrar, desviando os olhos de imediato. 

— E como foi a conversa com a senhorita Sofia?

— … Um pouco boa demais. Mas houveram alguns contratempos, e precisarei permanecer aqui em Urânia durante uns meses. 

— É mesmo? Mas, pelo jeito, você conseguiu fechar um acordo com ela, certo? A-Ah! D-Desculpe, não queria me intrometer desse jeito…

Ele abaixou a cabeça diante do olhar semicerrado dela, mas ao invés de repreendê-lo, Ryota apenas abaixou os ombros.

— Vou ficar aqui por mais seis meses, no máximo. Suspeito que será um período exaustivamente longo para você, e isso me lembra que eu deveria avisá-lo.

— Entendo. Fico feliz que se preocupe comigo, moça.

— Na verdade, minha intenção era convencê-lo a ir embora. Afinal, possivelmente não voltarei ao hotel se estudar em Gnosis durante esse tempo, então não existe razão para ficar aqui.

Ryota achou que seria um bom ponto de partida. Ela desejava mandar Dio para longe o mais cedo possível, para evitar que ele se envolvesse em seus problemas.

— Deixarei com você um pouco de dinheiro para voltar a Thaleia, e talvez ficar em algum hotel ou algo assim. Mas gostaria que voltasse para onde os refugiados-

— Eu não vou.

Dio cortou-a corajosamente. Então, sem se encolher diante de seu olhar, inclinou o corpo em sua direção, mesmo estando frente a frente na mesa.

— Vou ficar aqui com você.

— Eu já disse que estarei ocupada em Gnosis.

— Tudo bem.

— Não vou sair durante seis meses inteiros.

— Então, eu vou estudar lá com você.

— O quê?

Ryota franziu a testa, ao mesmo tempo em que os pedidos de ambos foram servidos na mesa. O garçom surgiu e desapareceu em questão de segundos.

— Vou fazer o teste de entrada com você.

— … Mas você só tem onze anos, certo?

— Idade não importa quando você se esforça pra estudar.

— Bem, acho que sim, mas… Por quê? 

— Eu quero ficar ao seu lado. E… Ficar de olho em você para que não faça nenhuma loucura.

Ryota se calou diante do tom de ameaça dele. Ela havia percebido que sua mente desligou durante o período em que deitou na banheira, ficando um pouco perplexa com seu estado instável. Não havia razões para negar que era um problema sério, e se o menino não tivesse tido o instinto de ir salvá-la naquele mesmo momento, ela poderia ter tirado a própria vida inconscientemente.

— … Aquilo… Aquilo não vai mais acontecer. 

— Não consigo acreditar quando diz isso sem me olhar.

— … Às vezes, você fica um pouco sério demais, sabia?

Ela soltou um murmúrio que não chegou aos ouvidos dele, então suspirou, dando um gole no próprio café. Estava amargo, profundamente amargo.

Ela odiava coisas amargas, mas mesmo assim tomou. 

— Vamos estar em turmas separadas, e nem vamos compartilhar os mesmos quartos. Estarei sob vigia constante lá, então não há razão para se preocupar.

— … Eu não vou embora.

Ryota inspirou fundo, sentindo uma irritação queimar no fundo do âmago. 

— Escuta, eu entendo que talvez você tenha se emocionado um pouco comigo porque te ajudei uma ou duas vezes, mas isso não é razão para se prender a mim, entendeu? Você tem onze anos, é idade o bastante para perceber que não vai me ajudar indo comigo.

Aquilo pareceu tê-lo magoado, mas Dio não mostrou uma expressão abalada.

— Não quero que venha comigo, nem que fique ao meu lado. Eu… Eu ficarei bem sozinha. Apenas volte para Thaleia e cuide da própria vida. 

Foi como se apontasse uma lâmina na direção de seu pescoço e o rasgasse com palavras. Tanto que o garoto, ao ouvi-las, abaixou a cabeça.

Havia sido dura… Mas e daí? Talvez apenas dessa forma ele entendesse a realidade. Ryota não precisava de ninguém cuidando dela, muito menos uma criança. Ele a ajudou uma vez, mas foi apenas golpe de sorte. Não aconteceria de novo. Se estivesse ciente do perigo, não se repetiria.

— Por isso, pegue suas coisas e-

— Eu não vou. 

— … Ugh.

— Eu não vou embora.

Ryota quase tossiu o café quando o viu  erguer o rosto com lágrimas nos olhos. Era a dor da rejeição estampada, mas ele não queria permiti-la sobrepujar suas vontades. Lutava com unhas e dentes contra a dor de ter o coração machucado para que pudesse convencê-la.

Aquela face de determinação, mais uma vez, a assustou. 

— … Eu não entendo.

Ao invés de raiva, o que surgiu em sua voz foi frustração melancólica. A garota abaixou a xícara com café amargo no píres e levou a palma para a testa, cobrindo os olhos.

— … Eu… Eu não consigo entender… 

— … Tudo bem.

— Não, não está tudo bem. Isso me deixa irritada. Muito, muito irritada. E eu não entendo só essa sua vontade esquisita de ficar me perseguindo como se fosse um filhote perdido na rua… Eu…

Ryota cuspiu aquelas palavras e recordou-se do ocorrido no trem. Lembrou-se de como os mercenários invadiram e estouraram a cabeça de Dio diante de seus olhos. De como o sangue se esparramou, manchando tudo o que havia em seu campo de visão.

E também como ele surgiu intacto, sem qualquer traço do ocorrido que viu se desenrolar. Seja no próprio menino, ou no trem.

Ela sabia que deveria deixar para lá. Que perguntar seria estupidez, e talvez a chamasse de insana. De uma maluca completa, mas precisava saber. Aquilo a incomodou desde que viu o corpo dele ser partido em pequenos pedaços por fios, e imaginou que fosse sua cabeça pregando peças. 

Mas o ocorrido no trem… Foi assustador demais.

— … Quem é você? O que quer comigo?

Ele não respondeu. Sequer tocou na comida, que deveria estar fria.

— Você… Faz parte da Ritus Valorem, não é? Está se fazendo de espião pra me observar, não é? É por isso que não larga do meu pé? É por isso que ficou conversando com o Sasaki e com a Scarlet antes? Por acaso, vocês são todos… Partes daquela organização homicida?

Dio apenas observou em silêncio Ryota divagar aquelas coisas em voz alta, aos sussurros. 

— … Você…

Ela mostrou os olhos por baixo da franja, abaixando as mãos. Então, encarou a face do menino que a via com coragem.

— … Eu te vi morrer duas vezes. E, nas duas vezes, você voltou como se nada tivesse acontecido. Lembro de tudo perfeitamente, eu não estava sonhando ou imaginando coisas. Eu… Eu senti tudo aquilo, de verdade.

O corpo rasgado em pedaços.

O corpo com um buraco na cabeça.

Ela lembrava da sensação de perda. Do sangue quente espirrando. Das manchas, da poeira, do cheiro de pólvora, da bala presa.

Lembrava de tudo. 

Então… Por quê?

— … Não quero perder mais nada. Não quero ver mais ninguém morrer. Se for pra enfrentar quem se intrometer, então vamos fazer isso eu e você. Não precisam envolver inocentes. Foi por isso que me trouxe nessa padaria, com uma mentira de que estava com fome, não foi? Pra machucar essas pessoas…

Uma feição de raiva surgiu em seu rosto.

— Me diga a verdade, Dio.

Ryota endireitou a postura, ergueu o queixo e com ar de ameaça, murmurou para o garoto apático:

— Quem é você?



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