Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 9 – Arco 4

Capítulo 10: O Seu Valor

Amane Akai atravessou o extenso corredor a passos lentos, porém certeiros. Não havia hesitação ou temor em sua postura, demonstrando um comportamento digno de grande lealdade e segurança que qualquer Akai deveria ter.

Enquanto era guiada pelo caminho de alguns metros, a mente de Ryota vagou. Era estranho observar a mulher diante de si como alguém potencialmente menos ameaçadora do que qualquer um dos outros dois com quem havia interagido até então. Considerando o histórico, certamente Amane era uma mulher direita, mas ainda era uma Akai. Sua presença era afiada o bastante para demonstrar superioridade, mas sua personalidade era um pouco diferente.

Afinal, enquanto prosseguia na direção da sala da reitora, a guardiã não havia se esforçado para puxar qualquer assunto. Essa foi uma atitude que Ryota respeitou, mas a fez imediatamente refletir sobre seu comportamento.   

Não era estranho que um Akai fosse introvertido ou suavemente frio. Suas expressões que não costumavam mudar sob nenhuma circunstância e os olhos vermelhos sem vida eram características marcantes. As roupas escuras os padronizaram ainda mais.

Porém, havia uma diferença que separava Amane dos demais membros da família.

Kanami era uma garota relativamente tímida e com uma mente estranhamente aberta à mudanças e ao mundo, portanto não se incomodou quando conversavam com ela. Sora era um pouco mais reservado, mas ele tinha tendências um pouco arrogantes, algo bastante semelhante a Miura. Entretanto, quando se conseguia conquistar sua amizade ou respeito, aquele comportamento se alterava imediatamente para uma postura de provocação, como alguém que sempre se achava superior.

Miura deveria ter um lado oculto semelhante, porém por sua idade ele talvez não fosse tão fácil de se aproximar quanto os filhos. Shin Akai era ainda mais ranzinza e complicado de lidar, mas ainda dirigia a palavra quando desejava ou lhe faziam perguntas.

Amane era especialmente silenciosa. Não era apenas porque estavam bastante próximas da sala de Sofia, portanto não havia necessidade de conversa, ou porque Ryota não chamou sua atenção com nenhum assunto em especial. Mesmo quando se tratavam dos demais membros da família, qualquer um deles minimamente disposto a dizer alguma coisa — mesmo que na maior parte dos casos fossem apenas ofensas.

Observando seu andar, forma dos ombros permanecerem e coluna, Ryota percebeu que talvez a diferença que havia entre ela e os demais estivesse relacionado não à sua personalidade, mas à sua criação ou experiência de vida. 

Apenas isso poderia justificar sua postura e olhar lento, vagaroso. Não de exaustão ou preguiça, mas de melancolia profunda. 

Dentre todos os que havia interagido à primeira vista, talvez Amane fosse a primeira dos Akai com quem tivesse se simpatizado. Ainda que Kanami ou Sora fossem relativamente mais fáceis de interagir, eles ainda tinham posturas que, no começo, a incomodaram. Mas a guardiã diante dela, que parou para abrir uma porta dupla, era diferente.

Na verdade, seu silêncio era sufocante — assim como o seu próprio. 

Sem dizer uma única palavra, Amane abriu espaço para Ryota passar e entrar. Enquanto caminhava para dentro da sala, trocou olhares com a guardiã. Não houve um único resquício de reação, superioridade ou frieza. Foi apenas um grande vazio. 

Não sabia dizer qual o relacionamento dela com Sora ou Kanami, mas se perguntava se um pedaço daquela mulher se importava com o estado da futura geração. Ou, ao menos, refletia o quão erradas foram as atitudes de Miura para com seus filhos. 

Recebendo apenas um aceno de cabeça respeitoso ao passar, Ryota adentrou a sala da reitora e ouviu a porta fechar-se atrás de si. A guardiã de cabelos negros também adentrou o cômodo bem iluminado, parando junto à porta com as mãos atrás do corpo. 

— Bem-vinda, senhorita… Ah, ou talvez agora eu devesse chamá-la de senhora?

Sentada em uma poltrona com os braços apoiados na mesa, havia uma beldade com um sorriso angelical, corpo magro, pele clara com cabelos e olhos verde-água. Era uma existência cuja atração os olhos imediatamente derretiam ao vê-la. Sob circunstâncias normais, em uma multidão, talvez ela não chamasse tanta atenção pela aura que pairava ao seu redor. Mas a partir do momento em que se parava para observá-la, dificilmente sua atenção poderia ser tomada outra vez.

Cumprimentando-a com um largo sorriso, Sofia Megalos encarou Ryota no fundo de suas íris azuis escuras como quem esperava receber uma reação igualmente calorosa.

Mas para sua infelicidade, a resposta da garota de cabelos negros foi apenas um devolver de olhares não muito amistoso. Antigamente, talvez, ela pudesse ter se deixado levar por aquele magnetismo atraente de uma pessoa da nobreza. Que, assim como Fuyuki Minami, possuía um “algo” que claramente mostrava não ser uma pessoa comum.

— Fico igualmente feliz em vê-la, Sofia.

— Aparentemente, não precisaremos de títulos de cortesia entre nós. Fico um pouco aliviada em saber que não mudou tanto assim, Ryota.

— Você fala como se fôssemos próximas o bastante.

— Não diria que somos “próximas”, mas certamente não somos desconhecidas, certo? Além disso, se seu propósito era vir até aqui com o intuito de se aproximar de mim e fazer um requerimento, deveria ao menos ser um pouco mais cordial e educada. 

Sofia apoiou os cotovelos na mesa e deitou o queixo sob as mãos, os dedos cruzados próximos ao pescoço. Ouvindo suas palavras sinuosas com ar de sabedoria, a garota franziu a testa com ligeira irritação ao sentir como aquela mulher era habilidosamente capaz de conduzir uma conversa a seu favor.

— Ora, que expressão assustadora. 

— Acho que descobri de onde vêm os maus-hábitos de seus guardiões. 

— Eles lhe causaram problemas?

— … Não exatamente.

Ryota desviou os olhos quando a reitora abordou o assunto diretamente, com curiosidade. Entretanto, ela ainda não estava confortável o bastante para se abrir em relação à discussão de alguns minutos atrás, muito menos sobre as ações suspeitas de Sasaki, a postura incomum de Amane ou a proximidade esquisita de Scarlet.

Não que realmente importasse.

— Estou vendo que está um pouco nervosa. Neste caso, para que possamos conversar tranquilamente, por que não se senta? 

Sofia indicou uma das duas poltronas diante de sua mesa com o dedo indicador, inclinando a cabeça. Era um convite natural a se fazer — até então, a anfitriã apenas observou a convidada encará-la com ar de desconfiança em pé, à distância. 

Soltando um suspiro, Ryota percebeu que não havia razão para negar. Então, a passos pesados, arrastou-se para perto da reitora e sentou-se na poltrona, afundando seu corpo no material macio. As costas, que estavam realmente tensas, endireitaram-se no encosto. 

Um pouco distraída com o conforto, Ryota demorou um instante para perceber que Sofia tinha seus olhos fixados atentamente em seu rosto.

— O quê?

— … Não é nada. Apenas reparei que os rumores sobre você não eram assim tão exagerados.

— Rumores?

— Existem muitos deles, na verdade. Mas as que mais me interessavam eram a respeito de seu estado. Afinal, você desapareceu por meses da vista pública após a coroação real. Ouvi dizer que poucos a reconheceram após tanto tempo isolada, mas não esperava que tivesse mudado tanto. 

— Não sabia que as pessoas se importavam tanto assim com a minha vida.

— Talvez seja uma surpresa, mas agora você não é mais apenas uma garota que veio de um vilarejo apagado do mapa, Ryota. Você participou de eventos muito importantes e destacou-se em público. Além disso, membros da nobreza reconheceram seu potencial e falaram abertamente sobre suas ações. No mínimo, todos sabem a história da misteriosa guardiã que salvou a vida do príncipe antes que ele caísse do palácio.

Sofia deu de ombros para o apontamento um pouco sarcástico de Ryota, que ficou um pouco perplexa quando a reitora puxou um assunto daqueles. Entretanto, apesar de suas palavras, a garota sabia de tudo aquilo. Afinal, seu nome havia corrido na boca das pessoas durante um longo período antes de finalmente esquecerem um pouco sobre sua existência — cinco meses, para ser exata.

— Aquela gravação ainda está sendo transmitida?

— Ah, mas é claro. Acha mesmo que as pessoas deixariam de lado uma oportunidade de ouro como essa? Quando a invasão durante a coroação real começou, as câmeras ainda estavam ativas e capturaram o momento em que você salvou o príncipe herdeiro da morte não uma, mas duas vezes. 

— Eu deveria parabenizar quem programou essas câmeras pra funcionarem mesmo durante um cenário caótico daqueles.

— O trabalho deles é conseguir o máximo de conteúdo possível para gerar entretenimento, então era ao menos um pouco esperado que ficassem curiosos sobre você durante um longo tempo. Sua tentativa de desaparecer foi inteligente, mas não o bastante. Afinal, todos sabiam que ainda estava na capital real, pois a reconstrução da mansão Furoto e a retomada do título do único herdeiro foram devidamente catalogadas. Ainda que pareçam informações confidenciais, nos dias de hoje, é muito fácil desdenhar a verdade por trás de atos como esse.

A reitora apenas justificou seus apontamentos ao perceber que Ryota havia feito uma expressão de desgosto, mas não era voltada à nobre, mas ao assunto em questão. Afinal, ela ainda não havia ficado realmente confortável com a ideia de ter pessoas interessadas em sua vida pessoal, principalmente quando estava passando por um momento tão delicado.

Desaparecer da vista do povo e mudar sua aparência não foi apenas uma forma de conseguir tempo para si mesma, mas para esperar a “poeira abaixar”. Afinal, seria um problema caso simplesmente saísse na rua e fosse reconhecida, precisando passar por interrupções irritantes enquanto buscava por uma cura para Zero e resolvia questões que davam dor de cabeça em relação à família Furoto.

— Foi assim que descobriu sobre mim?

— Hm? A que se refere?

— Não precisa se fazer de desentendida.

— Ah, mas não estou. Apenas fica difícil para mim responder uma pergunta tão ambígua.

— … Parece que preciso ser sempre direta com todos vocês, ou não vão me dar uma resposta direta, não é?

Soltando um suspiro pesado de irritação para Sofia, que continuava sorrindo, Ryota apenas baixou os ombros e se permitiu relaxar um pouco. Apesar daquele comportamento que se alastrava como uma praga entre todos os membros da nobreza incomodá-la profundamente, não haviam razões para se deixar levar por seus sentimentos. Eles agiam com esse mesmo propósito, e demonstrar abertamente sua raiva apenas a tornaria mais fácil de ser manipulada.

Havia aprendido sua lição com Sasaki. Ao invés de confiar cegamente nas palavras que vinham daquelas pessoas que eram desconhecidos completos, precisava fingir que acreditava. Ou, pelo menos, estava disposta a ouvir aquilo que tinham a dizer. Se estivesse de acordo com suas vontades, haveria uma forma de contornar a troca de favores de forma que não fossem capazes de extorqui-la ou omitir informações importantes.

Estava disposta a sacrifícios, desde que envolvessem apenas a ela. Se fosse capaz de adquirir aquilo que veio buscar, não importavam as circunstâncias que precisasse passar — ela traria a cura definitiva para Zero, bem como as resposta que há mais de um ano buscava. E estava cansada de ser usada, descartada e enganada.

Sofia alargou seu sorriso, estreitando os olhos.

— Você sabe a razão de eu ter vindo até aqui, não sabe? 

Não houve resposta.

Ryota apenas continuou, sem se importar:

— Se não soubesse, não teria mandado justamente o seu braço direito me buscar. Ou enviado a Scarlet ganhar tempo lá embaixo. 

— Ora, mas eu não fiz isso intencionalmente. Scarlet costuma agir em seu próprio tempo e usando seus próprios meios. Não estive envolvida com o que quer que ela tenha dito ou feito. 

— Então, não vai negar que mandou ela de propósito ou que sempre soube que eu viria. 

— Não vejo razão para estendermos um assunto sobre o que sabemos ou não. Se deseja fazer um pedido, apenas vá em frente. Ainda que eu supostamente soubesse qual é, não posso oferecer um contraponto diretamente a você se não mostrar interesse primeiro. Afinal, quem a recebeu fui eu, a anfitriã. Ouvirei com atenção seu requerimento e a proposta que veio me apresentar.

Sofia endireitou a postura na poltrona, erguendo um pouco o queixo, mas sem desviar a vista de Ryota. A garota não se sentiu intimidada por essa postura costumeira de alguém que parecia sempre se sentir superior, e após um segundo para se recompor, continuou:

— Eu preciso de informações, e sei que você as tem. Não preciso dizer minhas fontes, porque sempre ouvi falar que você era uma pessoa cheia de segredos… E conhecimento. 

— Pode-se dizer que sim. E que tipo de informações está buscando?

— Preciso encontrar uma cura para o estado em que Zero está… E, também, saber a verdade sobre o meu avô. 

Ainda que fosse capaz de tocar com menos dificuldade no assunto de Zero, pois estava com aquilo em mente recorrentemente, a morte de Albert ainda era um tópico sensível que fez a garota expressar um pouco de dificuldade para falar. Foi perceptível que engoliu a saliva quando Sofia soltou um grunhido de compreensão, respondendo-a com um “entendo”:

— Então, suas requisições são duas: Descobrir uma forma de trazer seu noivo de volta e saber as verdadeiras razões de Albert Megalos. Estou correta que é apenas isso?

A forma como Sofia induziu a informação fez Ryota recuar um pouco antes de confirmar. 

Ela pensou nas pessoas que permaneceram na capital. Nas consequências da invasão de Hera. Nas pessoas que sofreram, e que ainda sofrem até aquele exato momento.

— … Na verdade, existem mais coisas.

— Muito bem.

— Além do que mencionei, preciso descobrir o paradeiro de um membro da minha família. Ele está desaparecido há meio ano, e ninguém foi capaz de encontrá-lo… O nome dele é Jaisen.

— Entendo.

— Há também um caso um pouco estranho envolvendo dois amigos meus. Eles se envolveram em uma luta e um deles saiu com a mente bastante ferida… No sentido psicológico, eu acho. Não entendo disso muito bem, mas nem mesmo a curandeira da Fu… Da duquesa Minami conseguiu encontrar uma cura. Eu gostaria de saber se existe uma forma de reverter isso.

— Certo.

— O caso do Zero, segundo essa curandeira, poderia ser resolvido se encontrássemos o paradeiro da Maga Veridian. Ela desapareceu durante a coroação real, e nunca mais foi vista. Eu quero descobrir onde ela está… E priorizar esse caso em especial, porque envolve diretamente o Zero. Por isso, preciso saber sobre a cura e seu paradeiro o mais rápido possível.

— Perfeitamente. 

Ouvindo como se fosse uma terapeuta, Sofia apenas fitou Ryota enquanto a via citar cada uma das razões que a havia levado até ali. A princípio, havia hesitado, mas internamente sabia que não poderia deixar de lado nenhuma daquelas outras questões. Nem Zero, que corria risco de vida; nem a Jaisen, que desapareceu há meses; nem a Kanami ou Sora, que sofriam com as consequências das ações de Miura; nem a Albert, que morreu calado, mas derramou lágrimas e entregou-lhe uma pulseira que carregava mesmo agora em seu pulso.

Eram todas informações valiosas e que precisavam retornar para Hera a fim de salvar todas aquelas pessoas. E se havia uma pessoa capaz de dar as respostas para suas perguntas e apaziguar sua ansiedade, era a beldade diante de seus olhos.

Sofia baixou as pálpebras e, permanecendo calma do começo ao fim da conversa, falou como se sussurrasse, a fim de memorizar o que ouviu:

— A localização da Maga Veridian; A cura para o herdeiro dos Furoto e Kanami Akai; A verdade sobre Albert Megalos; e o paradeiro de Jaisen. Essas são todas as suas vontades que a guiaram até aqui?

— Sim.

— Entendo. 

A reitora inspirou fundo e expirou discretamente, o sorriso jamais desaparecendo de sua face delicada. Ryota ficou um pouco nervosa ao vê-la se calar, quando finalmente Sofia declarou:

— Estou disposta a lhe oferecer todas as suas respostas. As declararei com toda a certeza e veracidade, expondo toda a verdade que veio buscar e trazendo a saciação de sua curiosidade no que entorna todos os cinco temas que me expôs ter interesse. 

Internamente, aquilo que remexia seu estômago ao ponto de fazê-la querer vomitar se saciou de repente. O medo de uma resposta negativa morreu em um instante, e Ryota se sentiu tão aliviada que sua pressão baixou.

— Entretanto, como obviamente deve saber, preciso de uma compensação por cada uma das respostas que lhe darei. Em específico, um pagamento por cada tema.

— E qual o seu preço?

— Qual o seu preço, Ryota?

— … O meu? 

— Exato. Qual o seu valor? Como poderia compensar as respostas que lhe darei? Existe em sua essência algo que equivale a tudo que lhe direi? Seu “eu” é assim tão valioso? 

— Eu não entendo porque está me perguntando isso. O que quer que eu responda, afinal?

— Os únicos que podem definir o valor de uma alma são seus próprios donos. Não existe razão para ouvir meu preço, quando quem irá pagá-lo será você. Portanto, me diga: Pelas respostas que procurou por tantos anos, qual o seu preço?

Sofia não estava exigindo um valor em dinheiro. Ela não era uma mulher gananciosa ao ponto de tomar tudo o que havia sido guardado pelos Furoto, e nem havia razão para tal. Ela era um membro dos Megalos, da nobreza. Portanto, ouro e prata não compensariam suas palavras na balança.

Não estava buscando uma afirmação altruísta, de alguém que não colocava valor em seu próprio “eu”. Se ela era capaz de ver através de sua alma, de enxergar a determinação que queimava por trás daqueles olhos azuis, certamente aguardava uma resposta que condizesse a este peso. 

Ryota nunca foi uma pessoa orgulhosa. Ela não era especialmente boa em alguma coisa, ou tinha grandes objetivos. Desde o começo, seu único desejo foi unir sua família outra vez e viver em paz. Mas se aquele simples desejo precisava ser realizado através de um árduo caminho, estava disposta a sacrificar tudo o que estivesse ao alcance por ele. 

Por aqueles que a amavam e enxergavam seu verdadeiro valor — pois, afinal, ela mesma não o via. Não era sobre altruísmo, mas uma necessidade constante de ser vista, validada. E, acima de tudo, ouvida. E a única pessoa que foi capaz de cumprir aquele papel agora tinha a vida escorrendo por suas mãos a cada segundo, cada respiração, cada piscar de olhos.

Ele poderia estar morto agora mesmo. Um erro de cálculo inesperado poderia fazer sua pressão baixar, seu chi seu consumido, o corpo parar de funcionar e sua alma desaparecer deste mundo. 

Aquele pensamento a fez fechar os punhos com força.

— … O meu preço…

O que ela daria se pudesse trazer tudo aquilo de volta?

— … Tudo o que há em mim. E apenas isso.

Ela daria seu corpo, sua alma, seus sentimentos, sua vida. Deixariam que tomassem seu sangue, cada pedaço seu. Que arrancassem as unhas, rasgassem sua pele, sufocassem seu ar, arrancassem os cabelos, roubassem comida ou água… Nenhuma tortura seria demais agora. 

O corpo físico era apenas um receptáculo vivo para ser usado a favor de suas vontades.

Afinal, enquanto as pessoas que ainda eram importantes para ela existissem, enquanto elas ainda pudessem lhe dar uma razão para ela mesma existir… Era o suficiente. 

Caso contrário, de que serviria continuar respirando perfeitamente em um mundo em que seu coração estava morto? Reduzido a meros cacos de vidro? Que tipo de “vida” poderia ter apenas colocando alimentos sem sabor goela abaixo, engolindo líquidos amargos e tendo pesadelos todas as vezes que fechava os olhos, com medo da escuridão e do silêncio?

— … Era tudo o que eu precisava ouvir.

— Então-

— A condição para que as respostas a alcancem serão simples. Na verdade, não precisaremos impor um voto como talvez esteja imaginando, e apenas preciso que faça uma única coisa.

— Parece bom demais pra ser verdade.

— É simples como respirar. Tudo o que preciso… É que se forme no Instituto Gnosis.

— … Hã?

Ryota deixou escapar um sussurro de incompreensão, mas Sofia não mudou sua expressão.

— Por quê?

— Me permita voltar essa pergunta a você: Por que não se formar?

— Não vejo razão pra isso, agora.

— Mas você nunca, sequer uma vez, teve a oportunidade de passar por uma única instituição de ensino, estou correta? Sua educação foi baseada através do convívio com pessoas de seu meio, o que a levou a corroborar com um aprendizado fundamental… Ou o que as pessoas comuns chamariam de “fundamental”, embora eu acredite que seja um desperdício de potencial.

— Eu não entendo aonde quer chegar.

— Veja bem: O que acha que pensarão de uma garota que veio do interior sem contatos, sem família, sem nome, com apenas algumas falas e ações notáveis, sem uma educação qualificada ou capacidades chamativas sendo nomeada como uma nobre? Nunca pensou no que acarretaria aos Furoto, ou ao próprio Zero, ter uma esposa em que tantas falhas são cabíveis de serem apontadas por pessoas minimamente críticas da corte?

Finalmente, Ryota foi capaz de entender aonde a reitora queria chegar. Era um apontamento bastante simples e bastante correto, mas que em nenhum momento havia sido cogitado por ela própria. 

Como não tinha esperado ouvir comentários ou rumores horríveis vindos de pessoas como Shin ou Juan em especial de alguém como ela? Se para alguém como Zero havia sido um sacrifício receber um mínimo de reconhecimento, o que diriam dela? E como sua presença afetaria não apenas ao rapaz desacordado, incapaz de se defender, mas ao crédito da antiga renomada família Furoto?

— Estou propondo que se forme em Gnosis para que não apenas construa uma base educacional decente, mas ter a oportunidade de iniciar seu árduo caminho como membra da nobreza com o que chamamos de “pé direito”. Apenas vejo benefícios em aceitar a proposta.

— Bem, olhando por esse ponto de vista, realmente é boa… Mas não entendo como isso seria benéfico para você.

— Estive esperando que enxergasse as coisas por este ângulo, também…

Sofia soltou um suspiro, como quem aguardava aquela dúvida que eventualmente seria disposta em voz alta. Então, após outro instante de silêncio, falou:

—  Digamos que estou cumprindo com um dever.

— Um dever?

— Em partes um dever, em partes um favor. Não preciso informar a quem ou a que razão, pois nem mesmo eu me interesso em suas motivações particulares, então apenas peço que entenda que assim como você, também possuo algumas questões que preciso resolver. 

— Como vou saber que isso não vai me afetar?

— Se está assim tão preocupada, podemos fazer um voto. Entretanto, acredito que depois do ocorrido na coroação real, não acho que seja necessário arriscarmos algo assim.

Ryota não conseguia negar as palavras dela, então apenas se calou.

— Portanto, gostaria que fosse capaz de confiar em mim. 

— É um pouco difícil fazer isso do dia pra noite, principalmente quando você é uma pessoa assim toda misteriosa e com uns guardiões meio problemáticos.

— Entendo seu receio. Então, que tal fazermos desta forma: Aprecie sua estadia em Urânia e passe algum tempo em Gnosis para conhecer o instituto e ver se o ambiente a agrada. Se desejar prosseguir com nosso acordo, irei recorrer a uma prova para que possa ser capaz de estudar aqui.

— … E?

— E então, não pedirei que passe anos letivos aqui, pois como me informou, precisa de suas respostas o mais rápido possível. Portanto, assim que for capaz de passar na prova de admissão, concederei a você a localização da Maga Veridian.

Era uma proposta bastante atrativa. Se ela imediatamente passasse na prova, indo dialogar com Sofia em um ou dois dias, talvez conseguisse entrar em contato com a curandeira desaparecida e rapidamente pedir que ela viajasse de volta a Hera para tratar de Zero.

— E sobre os anos letivos? Normalmente, você precisaria de pelo menos uns quatro anos pra se formar aqui, não é?

— De três a seis anos, no mínimo, dependendo do curso. Entretanto, peço que permaneça aqui durante um semestre para que se forme.

— Um semestre?! Mas… Mas isso é tempo demais!

Se passando praticamente um ano desde que Zero entrou em seu estado de coma, ele poderia perder sua vida enquanto ela tinha sua cara enfiada nos livros. Aquela condição a preocupou seriamente ao ponto de se erguer da poltrona, mas Sofia apenas abanou uma das mãos com suavidade:

— Vamos, vamos, não se precipite. É um tempo curto o bastante para que se forme, e lhe darei as respostas que procura ao longo deste período conforme passar por todas as provas.

— Provas?

— Naturalmente, para que se forme em qualquer ambiente estudantil, é preciso que estude, aprenda e passe nos testes aplicados para que seu conhecimento seja validado. Eu gostaria que usasse este momento como uma forma de ter não apenas sua confiabilidade colocada em jogo comigo, mas também usasse este período para amadurecer ainda mais como membro da nobreza.

— … Mas… Mas seis meses…

— Eu lhe garanto que este tempo não será desperdiçado. E, acima de tudo, que suas respostas chegarão a você no tempo certo, e durante um período seguro para que todas as suas preocupações sejam sanadas. Confie em minhas palavras, e me permita confiar em sua capacidade de não recusar uma proposta simples como esta. Afinal, não costumo ser assim tão flexível com meus clientes.

Ouvira falar diversas vezes sobre aquilo. 

Sofia Megalos era uma mulher que poderia ser traiçoeira, mas quando ela afirmava algo, você poderia contar com ela. Ainda que fosse uma pessoa capaz de manipular e julgar quando bem entendesse, não mentia. Havia algo dentro dela que faria qualquer um perceber sua honestidade. Mesmo sob condições favoráveis até demais, a reitora de Gnosis permanecia séria em suas palavras.

Mas o quão a sério deveria levar aquelas promessas? Ela realmente estava falando a verdade? Não haviam truques em seus pedidos? Nas condições impostas?

Mas e daí que houvessem? O único problema de Ryota com o que Sofia exigia era o tempo. Um período longo de seis meses fora, estudando em um local enquanto pessoas que eram importantes para ela poderiam estar perdendo a vida.

Era sua única chance. Uma proposta irrecusável, praticamente perfeita. Ainda haviam dúvidas sobre as razões dela, mas como a própria Sofia insinuou, os objetivos de cada um não importavam. Mesmo quando Ryota fez um voto com Edward, ela não se aprofundou muito em suas questões pessoais, embora fossem um pouco importantes para saber em que estava se envolvendo.

Mas se ela fosse capaz de correr contra o tempo e se formar o mais cedo possível… Talvez o tempo realmente não fosse um problema. Talvez Sofia pudesse ser confiável, ao menos sobre o que se tratava das promessas que fazia. Afinal, foi ela quem ajudou Zero a subir no conceito dos membros da corte e da nobreza…

Ainda haviam muitas dúvidas e muitos temores do que poderiam vir dali em diante. Se a mulher diante de si, que estendia a mão colocando-se igualmente em pé, era realmente confiável… E se havia algo a mais ao qual deveria estar se atentando antes de fechar o acordo com ela…

Ryota faria qualquer coisa para trazer Zero e Jaisen de volta.

Ela apertou a mão de Sofia com força, fazendo-a sorrir com as íris azuis esverdeadas.

— Estou feliz que tenha tomado sua decisão. 

Quando afastaram as mãos, Sofia ergueu o queixo e apontou para a porta. 

— Aproveitando que está aqui, Ryota, gostaria que conhecesse um pouco mais de Gnosis. A instituição é grande, e poderá se sentir em casa quando se acostumar a todas as alas, corredores e salas. Por isso, por que não a acompanha enquanto caminham?

Ryota se virou no mesmo momento em que a porta dupla foi aberta por Amane, e uma garota adentrou o cômodo a passos agitados, porém desastrados. Era uma jovem com grandes e amontoados cabelos ruivos, laranjas como uma cenoura. Seu penteado em dread era característico, bem como seus grandes olhos verdes e a pele negra. 

Usava roupas largas, porém confortáveis. Um moletom rosa e uma saia branca que ia até seus pés — ou melhor, até o par de patins azuis com rosa que usava para se deslocar, como se dançasse por onde passava.

— Oooopa! Bom dia, diretora!

— Bom dia, Bellatrix. Poderia acompanhar nossa convidada, como lhe pedi?

Ryota olhou de escanteio para Sofia, mas foi surpreendida quando, em um piscar de olhos, seu braço esquerdo foi agarrado pelas mãos da menina chamada Bellatrix. Um grande sorriso surgiu em sua face peralta, que a arrastou rapidamente para fora da sala.

Enquanto tentava dizer algo para impedir aquela comoção, Ryota apenas olhou do novo elemento estranho para Amane, que nada disse, para Sofia, apenas a observou desaparecer por trás das portas que se fecharam logo quando saiu.



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