Volume 9 – Arco 4
Capítulo 08: Amarras da Sociedade
Sem dar um único passo adiante, Ryota observou a mulher de cabelos vermelhos como fogo caminhar na direção do homem de cabelos negros encaracolados. Ambos interagiam como amigos de longa data, trocando provocações e sorrindo um para o outro.
Embora Scarlet, com seu humor peculiar, estivesse segurando ambos os visitantes, soltou-os de imediato quando se aproximou do amigo. Ao seu lado, percebendo que o desconhecido os chamava para se aproximarem, Dio, que até então estava em silêncio, começou a andar. Entretanto, parou um pouco depois ao perceber que Ryota não fazia o mesmo.
Afinal, ela havia permanecido no lugar, encarando a figura supostamente conhecida com ar de hostilidade.
Não era apenas um olhar que remetia a desgosto, mas não chegava ao ponto de se tornar poderoso como ódio enraizado. Era um sentimento que remetia a um passado conturbado impossível de se ler naquele ângulo, mas o garoto que observava a mudança na atmosfera imediatamente compreendeu que algo iria se desenrolar diante de seus olhos.
Entretanto, ainda que não fosse um assunto em que estivesse envolvido ou conhecesse, o arrepio que percorreu suas costas informou o bastante — não poderia permitir que aquilo acontecesse. No mínimo, não com os pensamentos sombrios que deviam percorrer a mente da garota, agora.
Engolindo em seco e secando as palmas suadas de nervosismo, Dio conteve-se. Sabia que estaria se intrometendo, e possivelmente receberia um sermão por isso. Ryota não era uma pessoa que costumava erguer a voz desnecessariamente em público, mas suas emoções não poderiam ser controladas à bel prazer, principalmente por alguém desconsiderado como ele.
Mas se ainda houvesse a possibilidade de melhorar seu humor, ou torná-la capaz de encarar a pessoa diante de seus olhos com menos ameaça do que sua face demonstrava, seria o suficiente.
Retrocedendo os passos para perto da garota que observava a interação entre Scarlet e o homem de cabelos encaracolados que pareciam distraídos, Dio inspirou fundo e ergueu o queixo.
— Moça…
As mesmas íris azuis escuras se abaixaram com uma luz afiada em sua direção. Os arrepios percorreram sua pele outra vez, impedindo-o de contar o que queria de imediato, mas após um instante de hesitação, falou:
— … Você tá bem?
— Por que não estaria?
Dio sabia que pessoas que replicavam uma pergunta com outra apenas tentavam contradizer ou devolver o intuito principal para aquele que deferia a questão. Diante dessa resposta ambígua, prosseguiu:
— Bem, é que você parecia um pouco preocupada, ou algo assim…
— Preocupada?
— Q-Quero dizer, já que ficou parada quando viu o senhor ali do lado, achei que alguma coisa tivesse acontecido e fiquei preocupado. Por isso… Tinha te perguntado se tava tudo bem.
Como uma criança que se embolava nas próprias palavras, Dio tropeçou na língua vez ou outra quando recebia o olhar frio de Ryota. Ela, que finalmente compreendeu o intuito da aproximação do garoto que jurou permanecer em silêncio, havia visto nela a expressão de antipatia e talvez até a aura que congelava o coração de quem via.
Percebendo que isso não seria uma boa impressão, Ryota relaxou o rosto tenso e suspirou.
— Eu estou bem. Além disso, não tínhamos combinado de-
— A-Ah! Não vou falar nada.
Dio tapou a boca com as mãos e chacoalhou a cabeça para os lados nervosamente, ao que a garota riu com o nariz, mas não fez os lábios repuxarem em reflexo. Parecia que, mesmo sendo uma criança, ele possuía uma visão aguçada, o que permitiu a ela entender que estava demonstrando com facilidade os sentimentos dentro dela.
Preciso tomar cuidado. Não posso me deixar levar e ser usada outra vez.
Inspirando fundo com essa decisão em mente, a garota baixou os ombros e decidiu que avançaria. Era hora da conversa — ou uma delas — que tanto esperava para ter, e seria uma das mais difíceis quando era necessário conter a raiva que queimava em seu coração.
Dando um passo adiante, colocando a máscara de serenidade, Ryota passou a mão na cabeça de Dio com um cafuné veloz antes de se aproximar da dupla que dialogava freneticamente. Eles não pareceram especialmente preocupados com os dois que ficaram conversando um tempo antes de se aproximarem, mas Scarlet imediatamente saltou para cima da garota ao vê-la, abraçando-a.
— Eu gostaria que me desse um pouco de espaço pessoal.
— Aaaah, vamos, não seja assim, mocinha. Só tava querendo sentir um pouco mais da sua pele macia quando o Sasaki me contou como vocês se conheceram. Que doce de menina!
— Não me olha desse jeito! Foi ela quem perguntou, e eu não vi razão pra fingir que não te conhecia depois de ter te visto andando por aí com a Scarlet.
Sasaki se defendeu do olhar afiado de Ryota, que tinha o corpo esfregado no da ruiva que a abraçava, mas Scarlet apenas riu alto da compostura dura da garota e se afastou, ainda deixando um braço ao redor de seu corpo.
— Como sempre, você é um belo de um fofoqueiro, hein?
— Olha quem fala! Quem chegou perguntando as coisas foi você, e não eu!
— Somos duas pragas saídas do mesmo pacote de bolacha estragada, então não tem razão pra me acusar desse jeito.
— Que absurdo! Me defendam, vocês dois!
— Para de agir como uma garotinha e assuma seus perrengues, homem!
— Aaaai! A Scarlet me bateeeu!
Erguendo a voz que se tornou repentinamente aguda, sob uma tonalidade nada esperada para um homem daquela idade como Sasaki, ele se remexeu e choramingou como uma criança quando a ruiva desferiu-lhe um tapa no braço. Parecia ter doído um pouco, mas não o bastante para toda aquela comoção ser criada.
Observando aquela interação com olhos de julgamento, Ryota apenas conseguiu suspirar internamente. Afinal, mesmo após quase um ano sem se encontrarem, Sasaki ainda era a mesma pessoa. Alguém com facilidade em conversar e mudar o clima do lugar em um piscar de olhos, com suas piadas e frases que poderiam irritar ou fazer alguém rir de tão bobas que eram.
Uma personalidade maleável, que se adequava ao ambiente conforme seu favor. Ao mesmo tempo, havia nele um carisma muito semelhante ao que Fanes exalava — era uma gentileza unida ao fator de proximidade que fazia as pessoas se sentirem estranhamente íntimas dele. Poderia ser simpatizante, mas para Ryota, que compreendia um pouco melhor o mundo em que viviam, aquela era uma arma letal quando usada para o mal.
Embora o termo “maldade” fosse subjetivo, ela o via agora com mais superficialidade, tentando enxergar as possíveis mentiras em seus atos e palavras. Se suas intuições estivessem certas e Sasaki fosse realmente tão semelhante ao antigo rei quanto demonstrava, as coisas seriam difíceis. Precisaria muito mais do que palavras de acusações com provas para convencê-lo a falar e ser honesto — se é que poderia distinguir os momentos em que dizia a verdade ou improvisava uma resposta.
Qualquer que fosse o caso, haveria de fazer muito mais esforço para conseguir o que queria do que originalmente previra. Foi uma pena que a Ryota de alguns meses atrás não soubesse interpretar aqueles sorrisos e gestos casuais como uma isca doce.
— Sasaki.
— Ah, finalmente alguém vai me defender nessa casa! Vai, Ryota! Fala umas verdades na cara da Scarlet e manda ela parar de ser tão violenta!
— Nem ferrando! Essa coisinha linda aqui vai ficar do meu lado, né, querida?
Ouvindo a dupla que ainda se divertia trocando provocações, com Sasaki unindo as mãos como se orasse e Scarlet fazendo beiço, apertando o abraço na garota de cabelos negros que permanecia séria, Ryota inspirou fundo e fechou os punhos.
— Eu preciso conversar com você. Apenas nós dois.
— Hmmm? Tô sentindo que tão me excluiiiindo… Não acha, garotinho?
Dio se remexeu, sem nada dizer, mesmo quando foi alvo das íris ametistas de Scarlet e seus resmungos. Percebendo o silêncio que se instalou e o clima divertindo derretendo na troca de olhares da dupla, a ruiva soltou um suspiro e soltou os braços de Ryota.
— Se vão falar sozinhos, acho que eu e o garotinho vamos dar uma voltinha por aí. Nos vemos em uns trinta minutos?
— Acho que será o bastante.
— Ótimo! Como recompensa por ter me acompanhado um pouquinho, vou arranjar um passeio pela Instituição pra vocês dois. Vem, garoto. Me acompanha.
Ryota, após responder a deixa de Scarlet, baixou os olhos para o menino e assentiu. Ele engoliu em seco, parecendo preocupado, mas apenas seguiu atrás da ruiva em silêncio como um filhote assustado.
Quando os dois se afastaram o suficiente, Sasaki arrumou a postura, colocando uma das mãos no bolso da calça social, e apontou com o dedo polegar para trás.
— Que tal conversarmos em um lugar um pouco menos barulhento?
Dando as costas para o evento dos estudantes de Gnosis, que continuavam suas apresentações de curso com maestria para os visitantes, Ryota e Sasaki atravessaram as barracas e chegaram até o outro lado do pátio, onde parecia ser uma área de descanso. Pela postura e uniformes, ainda era perceptível que alguns alunos estavam nos arredores, mas apenas desfrutavam dos doces e salgados vendidos ou tiravam alguns minutos para relaxar antes de voltarem aos seus postos.
Não era perceptível apenas observando, mas eles deveriam ficar o dia inteiro naquelas posições, explicando com as mesmas palavras o mesmo assunto enquanto eram alvos de olhares curiosos ou até de comentários maldosos dependendo do tipo de visitante que parasse diante deles para assistir a apresentação. Era esperado que respondessem perguntas ou tirassem dúvidas sobre o tema em questão, mas parecia que alguns estudantes estavam um pouco estressados devido ao esforço, chegando a reclamar com colegas ou apenas dormir em bancos nos cantos do pátio.
— Não é um ambiente agradável?
Ryota ouviu Sasaki chamar sua atenção para uma conversa, mas não respondeu. Andava atrás dele, a alguns passos de distância, observando-o com cautela.
— Os estudantes de Gnosis costumam passar boa parte de seus dias aqui. Nós chamamos de instituto, mas muitos aqui gostam de ver este lugar como uma segunda casa. Afinal, alguns alunos até costumam passar as noites nos dormitórios e dificilmente saem do campus.
Olhando para o espaço em que andavam lentamente, o gramado abaixo de seus pés ficou um pouco mais nítido. Ryota observou os estudantes das mais variadas idades, mas alguns eram especialmente jovens. Suspeitava-se que o Instituto Gnosis fosse um local para estudos, como uma faculdade ou até uma campus com propósitos de estudos acadêmicos do ensino médio, mas vendo de perto agora, parecia mais do que isso.
Ela realmente não entendia direito as diferenças, então para Ryota era apenas um local grande com prédios e pessoas que estudavam temas específicos para se aperfeiçoarem. Em geral, ela nunca foi particularmente fã de estudar, embora seu gosto por leituras fosse nítido. Talvez fosse arrogante afirmar algo assim considerando que jamais frequentou a escola — dito isso, sua eu antiga poderia ter se entusiasmado com a ideia de conhecer uma nova área.
Mas aquela eu havia desaparecido, e a que restou foi alguém sem qualquer interesse em conhecimentos alheios que não agregassem diretamente em seus objetivos. Ryota não tinha interesse em se formar ou concentrar-se em estudos — não mais. Portanto, não importava o quanto Sasaki engrandecesse aquele ambiente, era apenas desinteressante e um prolongamento da discussão que deveriam vir a ter.
— Com um renome tão grande e sendo tão popularmente conhecido como um instituto para grandes gênios, parece um absurdo imaginar que Gnosis foi fundada há apenas oito anos.
O campus possuía um espaço grandioso, com pátios e caminhos feitos de pedra para os estudantes andarem. Haviam jardins e espaços para descanso após as aulas ou durante os intervalos. As construções eram altas e se expandiam com corredores com janelas grandes e bem à vista, fazendo ser possível enxergar a paisagem e, também, quem via de fora, aqueles que percorriam aquelas quatro paredes.
Mas nada daquilo era importante.
— Estive presente durante a inauguração e participei da divulgação do projeto quando minha doce Sofia o apresentou ao mundo… E, obviamente, eu sempre soube que daria certo. Afinal, ela é a melhor de todas!
Sasaki balançou os braços e cerrou os punhos como se estivesse torcendo, mas Ryota não o respondeu. Mesmo sendo olhado com tamanho desprezo, o curandeiro não se incomodou e apenas manteve seu humor de sempre.
— E, além disso-
— Pode parar com a conversa fiada, agora. Estamos afastados o bastante.
Ryota cortou sua iniciativa como se apontasse uma faca para seu pescoço, e Sasaki interrompeu as palavras que viriam. Então, parando de andar sob o gramado, virou-se na direção da garota que não mudou sua expressão de seriedade desde então.
— Está bem.
— Gostaria de ir direto ao ponto, então faça-me o favor de evitar prolongar o assunto com desvios desnecessários.
— Nossa, curta e grossa. Mas eu não desgosto desse seu jeito de agora. Ainda assim, parece estar sendo difícil pra você também, não é?
Sasaki falou com ar de quem sentia empatia, abaixando os ombros, mas a resposta que recebeu foi apenas um olhar afiado que dizia para não se aprofundar naquele assunto. Ryota não estava preparada para falar sobre o ocorrido de cinco meses atrás e nem sobre como se sentia — talvez jamais estivesse. E não havia ninguém que precisava saber, pois não era importante. Haviam coisas que precisavam de prioridade, e enquanto as dores em seu peito poderiam esperar, a vida de Zero continuava a escorrer por suas mãos como areia.
Apenas com a certeza de que ainda havia algo que poderia fazer com aquela vida frágil e efêmera, a fazia ter forças para se erguer. Caso não tivesse, tudo teria acabado há muito mais tempo.
Quantas vezes chegou a se perguntar se aquela não deveria ter sido sua decisão inicial ao invés de seguir pelo caminho mais difícil?
— Direto ao ponto — ergueu a cabeça, contendo para si os pensamentos desnecessários que ameaçavam rodear a mente outra vez, e reafirmou a discussão — Você mentiu pra mim. E não apenas uma, mas várias vezes.
Diante desse apontamento com palavras afiadas, Sasaki apenas piscou, sem demonstrar qualquer reação. Nem uma brincalhona, nem confusa, ou irritada. Seu rosto tornou-se apático, enquanto o de Ryota se contorcia em uma fúria silenciosa.
— … E?
Aquela única letra desmanchou o fervor dentro dela. As sobrancelhas se ergueram um pouco, sem entender o intuito da pergunta.
— E daí?
Por um segundo, Ryota apenas paralisou no lugar. Sem tirar os olhos das íris profundas e misteriosas de Sasaki, que nada demonstrava, o encarou como se visse uma assombração. E, de fato, se sentia dessa forma. Afinal, que tipo de pessoa responderia uma pergunta daquelas com um “e dai?”.
Alguém que não se importava.
A resposta para a questão chegou tão rapidamente em seu cérebro que o mundo tornou-se ainda mais cinza, como se mergulhasse na escuridão por um segundo e voltasse ao normal. Sentindo que seus arredores derreteram e um segundo depois, piscando os olhos arregalados, o relógio parado voltasse a funcionar, a garota não tirou as íris azuis chocadas do curandeiro.
E uma fervente chama de raiva queimou seus poros, incendiando o corpo que um instante atrás havia parado.
— Como assim “e dai”? É só isso o que tem pra me dizer?
Sentiu sua voz sair baixa e magoada, tremendo pelo nervosismo, arrastando-se como uma cobra. Cerrou os punhos outra vez, cada vez mais agoniada com a falta de sentimentos em Sasaki.
Aquilo a incomodava muito. Por alguma razão, vê-lo daquela forma, como se realmente não se importasse, fazia seu peito doer. Ao mesmo tempo, percebeu que aquela era a mesma face que Albert costumava fazer quando perguntado a respeito de seus verdadeiros sentimentos e pensamentos. Era também a mesma face que Fanes fazia quando disse a Edward que usurpou o trono para benefício próprio.
Era uma mentira? Ou parecia tão absurdo que mascarava uma verdade? O que haveria de errado? E se Sasaki realmente pensasse daquela forma?
Não importava. De repente, percebeu que nada daquilo importava.
Ela estava cansada de pessoas mentindo pra ela. Desgastou-se e levou a mente ao limite para compreender as razões e opiniões daquelas pessoas covardes que não eram capazes de expressarem-se de forma adequada.
Cansou de entender. Estava farta de fingir que sabia. Não suportava mais a possibilidade de suas impressões serem apenas um engano. De que todas aquelas pessoas gentis, que sorriam com tanto calor e faziam brincadeiras, eram apenas farsas.
Quanto remorso, quanta raiva, quanto ódio, quanto desgosto… Quanto nojo de pessoas que apenas se aproveitavam de seu coração.
Ainda que não percebesse o quão egoísta, baixo e hipócrita fossem aqueles pensamentos, Ryota sentiu uma raiva dentro dela crescer tão fortemente que fez seu rosto ficar vermelho. Os olhos arderam com o calor e lágrimas brotaram, mas não permitiu que elas escorressem.
— Vai se foder!
Ela gritou um xingamento que reverberou pelo pátio. Aqueles que estavam ao redor se viraram de imediato, mas se afastaram ao mero olhar da garota quando pareceram interessados em saber do que se tratava o assunto. Estudantes correram para longe e apenas os dois permaneceram no espaço isolado.
Virando aquelas íris azuis escuras para Sasaki como se pegassem fogo, agarrou o colarinho dele e o puxou para mais perto. A força colocada naqueles braços finos era admirável, e ele poderia ter facilmente tombado para a frente caso ela não buscasse um contato visual tão intenso.
— O que é isso, afinal?! Qual o seu problema?! “E daí”... Que tipo de resposta de merda é essa? Tá querendo me tirar do sério?!
— … Apenas estou sendo sincero.
— Sincero…? Você… Chama isso de sinceridade? Acha que essa sua cara de coitado tem alguma valia pra mim?!
Ryota riu. Sentiu o corpo formigar ao ouvir aquelas palavras que soavam vazias, distantes. Quanto mais aquele teatrinho continuava, mais irritada ficava. Sacudindo com relativa força o corpo dele, como que pedindo para reagir, apenas pôde continuar a encarar aquelas íris negras profundas.
— Então… É isso?
As suas mãos tremiam.
— Então, nada daquilo… Nada do que eu te falei antes sobre tentar confiar em você, te dar uma chance depois de tudo o que tinha feito por nós… Nada daquilo foi importante pra você?! Era só mais um “tanto faz”?!
— Quer mesmo ouvir alguma coisa de mim? Afinal, eu sou um mentiroso compulsivo.
— Se não quisesse, eu não teria vindo até aqui pra começo de conversa.
— E vai simplesmente acreditar em qualquer coisa que eu disser? Mesmo tendo mentido pra você tantas vezes? Eu também posso estar mentindo agora. E antes disso. Ou até depois. Consegue imaginar o que exatamente separa a sua verdade da minha? É sua crença? Ou o meu intuito?
Sasaki abriu um sorriso malicioso que não combinava nem um pouco com ele. Era ligeiramente cruel, quase… Quase como se soubesse demais.
Era o mesmo rosto que Sofia estava sempre fazendo. Um olhar de superioridade e pena, mas ao mesmo tempo curiosidade para ver a reação daquele que provocava com suas palavras.
— E então? Será que depois de passar um pouco de tempo na corte, conseguiu entender?
— … Entender o quê?
Ryota não queria, mas repentinamente sentiu que a pessoa que intimidava, agora, não era ela.
Sasaki segurou a mão que puxava-lhe o colarinho.
— Que estamos sempre brincando de marionetes.
Ele alargou o sorriso ao vê-la unir as sobrancelhas em confusão.
— Somos apenas marionetes que se divertem com as palavras. Gostamos de mentir para usar as pessoas, brincamos com seus corações para atingir nossos objetivos e damos as quando descobrem a verdade. É esse tipo de sociedade que convivemos, e que apenas agora foi capaz de entender o quão amarga ela é.
— … Marionetes…
— Exato. Você deve ter ouvido ou até pressuposto uma metáfora um pouco diferente, não é? Quem sabe… Um teatro? Usando máscaras para facilitar nossa trajetória rumo aos nossos desejos. Pegamos pessoas bobinhas e descartamos depois.
O aperto em sua mão ficou mais forte.
Ryota sentiu suas pernas amolecerem um pouco, quase cedendo à pressão. Suor escorreu por sua testa e manchou suas roupas. Ela não queria recuar. Não queria rebaixar-se, mas as memórias revividas e os sentimentos que renasciam em seu coração fizeram seu corpo querer desabar de joelhos.
— Sabe bem do que estou falando não é? Afinal, sempre foi aquela quem foi usada, abusada, tomara tudo o que havia de útil em você e então descartaram. Você foi só mais uma marionete desse destino cruel, Ryota. E certamente não foi a primeira a tentar me acusar de algo.
— … Uh.
— Não queria te pressionar tanto. Acho que acabei te trazendo algumas lembranças ruins. Estou apenas querendo dizer que isso é passado, agora. Mas não vou culpá-la se continuar carregando essa mágoa, afinal, você tem todo o direito de se sentir assim.
Abaixou a cabeça e fechou os olhos que ardiam violentamente. Ela não queria chorar, mas mesmo assim as lágrimas se acumularam, prestes a escorrer e manchar seu rosto. Sua mão desfez a força, e Sasaki a soltou, também.
Inspirou fundo, então expirou. A temperatura corporal se elevou ao ponto de seus ouvidos zumbirem. O coração disparado, a mente em colapso com as memórias e a dor das perdas que foi incapaz de alcançar uma verdade para justificá-las macularam seu peito em sofrimento.
Ainda que a reação inconsciente a tivesse atingido tão profundamente, não poderia se permitir ajoelhar. Seria frustrante e a faria se sentir ainda mais humilhada.
Portanto, se ainda havia algo que a fazia continuar em pé, diante daquela pessoa que não mais conhecia, eram as palavras que desejava dizer a seguir.
— … Entendi. Então, se vai ser assim, tudo bem.
Foi um sussurro solitário e triste, que poderia ter rasgado sua garganta. Sasaki apenas aguardou a continuação, sem nada sendo expressado em seu rosto.
— Não posso retirar as palavras que te disse no passado, porque meus sentimentos eram verdadeiros. Por isso, mesmo que me arrependa depois, não vou deixar de dizer mesmo assim.
Ela certamente se arrependeria — e já se arrependia de tantas, tantas coisas. Tantas decisões e coisas que disse. Tantas certezas e mentiras. Tantas promessas descumpridas. Tantas lágrimas e sangue.
— Eu agradeço por tudo o que fez por mim antes. Independentemente da razão, você salvou a mim, o Zero e o tio Jaisen naquela época… Não poderia estar mais grata em relação a isso. Mas… De agora em diante, não contarei com a sua ajuda. E espero que não venha contar com a minha, também.
Era apenas isso. Ryota sentiu que não conseguiria respostas de Sasaki, não importava o quanto insistisse. Se sua raiva foi apaziguada em questão de segundos, era porque aquele curandeiro sabia como lidar com pessoas assim. Com sentimentos como os dela. Era alguém que vivia dentro das “amarras da sociedade”, e usava o sistema da mesma forma que era usado.
E era assim que deveria ser. Estava na cara dela desde o começo, mas foi incapaz de enxergar. Sua ingenuidade, sua incredulidade, sua falta de experiência e imaturidade a fizeram tapar os olhos e ouvidos para a verdade que tanto dizia querer encontrar.
Se a verdade sempre seria uma mentira, então ela não valia de nada. Portanto, por que buscar por algo assim? Se ela apenas traria mais feridas a si mesma e aos outros, por qual razão continuar com elas?
Ao menos, era assim que pensava em relação àquelas pessoas. Não poderia confiar nelas. Em nenhuma delas. Eram todos lobos em pele de cordeiro. Titereiros que eram manipulados em um ciclo infinito de falsidade e controle. Corações sujos e objetivos aos quais suas mãos nunca alcançariam, mas continuariam a pisar uns nos outros para alcançá-los.
— Estou de acordo com sua decisão.
Sasaki abriu um sorriso que parecia quase um agradecimento, mas Ryota o ignorou. Não era mais capaz de encará-lo sem sentir um tremor interior que paralisava o cérebro ao ponto de queimar. Era dolorido e difícil.
Não aguentava mais ser enganada e usada. E se para evitar aquele sofrimento precisaria cortar todos os laços forjados e fazer tudo sozinha, estava tudo bem. As coisas apenas voltariam a ser como deveriam ter sido desde o primórdio. Desde o começo, ela estava sozinha.
Ryota não podia confiar em mais ninguém além dela mesma.
— Se ainda assim desejar encontrar respostas para as suas perguntas, sempre poderá contar com a Sofia.
Ela lhe deu um olhar lateral, mas não o fitou.
— Apesar de tudo, isso é uma verdade. Ela sempre saberá o caminho certo… Pode ter certeza.
Virando-se, a garota apertou os lábios que tremiam e baixou os ombros, escondendo os punhos dentro dos bolsos.
Eu já sabia disso. A única pessoa que pode realmente me falar a verdade deste mundo, sem me enganar, é ela.
Ainda que seus objetivos e caminhos fossem obscuros, um voto feito pelo coração jamais poderia mentir. Portanto, para que pudesse garantir as respostas que tanto procurou, encontraria a reitora do Instituto Gnosis e, finalmente, seria capaz de encontrar um caminho.
Um caminho… Para o quê?
Quando aquela pergunta embranqueceu sua mente por um milésimo de segundo, Ryota sentiu suas roupas farfalhar. Sasaki passou por ela, dando um toque suave em sua cabeça, antes de se aproximar de Scarlet e Dio, que vinham a passos largos na direção da dupla que havia chegado ao fim em sua discussão.
— Moça… Você tá bem?
— … Sim.
Ela precisava estar. Não havia outra resposta possível.
Ainda que a expressão cansada em sua face fosse visível, e o menino que a olhava preocupado certamente enxergasse seu estado desolado, nada comentou. Silenciosamente, apenas acompanhou quando se aproximou da ruiva de seios fartos que aguardava sua aproximação com um sorriso que mostrava os belos dentes brancos.
— E então, querida? Pronta pra encontrar a grandiosíssima?
Scarlet era outro elemento estranho. Precisava manter cautela.
Ryota apenas assentiu com a cabeça e ergueu os olhos azuis profundos para a construção diante dela.
E, então, guiada pela dupla de desconhecidos, caminhou para dentro do Instituto Gnosis.