Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 9 – Arco 4

Capítulo 07: Celestia

Quando sentiu-se despertar, houve um movimento brusco do corpo se remexendo. Então, ouviu um som agudo que adentrou seus ouvidos tão brutalmente ao ponto de parecer que estavam fincando uma agulha em sua pele. Franzindo a testa para a dor de cabeça e o peso em seu colo, Ryota piscou para abrir os olhos e observar onde estava.

Olhando pela janela, reparou que não estavam atravessando cenários de campos ou florestas. Durante toda a viagem, havia reparado que grande parte das vezes o trem atravessou planícies com acabamentos da natureza, e o frescor do ar que adentrava as janelas indicava que ainda estavam em Thaleia.

Agora, o que seus olhos observavam do lado de fora era uma movimentação ansiosa de pessoas e objetos. Com a locomotiva perfeitamente parada, remexendo dentro e fora, os passageiros sentiram seus corpos ligeiramente tensos quando o apito de sua despedida soou, bem como vozes e portas sendo abertas.

O trem parou, e o maquinista desceu. Ryota escutou que as pessoas desembarcaram um pouco nervosas, mas aliviadas por terem chegado ao seu destino. Não seria capaz de culpá-los — afinal, há algumas horas, houvera uma situação tensa de assassinos de aluguel invadindo, tomando uma criança como refém e tiros sendo soados. Era esperado que, logo quando chegassem, a sensação de segurança os fizesse suspirar em alívio outra vez.

Ryota observou por um pequeno instante as pessoas que desciam com maletas e mochilas, as bagagens cheias o bastante para indicar que não estavam ali apenas para ficar durante o fim de semana — certamente, passariam pouco mais de um mês naquela cidade.

Em Celestia.

Olhando daquela forma, quase não havia diferença entre esta e a estação da capital real. Talvez estivesse esperando uma divergência um pouco maior quando se tratava de um local reconhecido por suas tradições e culturas, mas, a princípio, até onde sua vista alcançava, nada de especial chamava-lhe a atenção.

Ryota finalmente se virou para a cabine e, especificamente, para a porta de correr, que abriu logo quando ouviu passos se aproximando. Após algumas batidas e a abertura tímida, um guarda real a cumprimentou com um sorriso.

— Com licença, senhora. Estou incomodando?

Ela abriu a boca para responder, mas percebeu então que havia uma divergência naquele cenário. Afinal, Dio não estava sentado ou deitado em seu banco como de costume, e o filhote que o acompanhava, também. Entretanto, logo quando virou o rosto, finalmente baixando os olhos para aquilo que pesava em seu corpo, e entendendo o que o guarda com olhar gentil indicava, baixou as sobrancelhas. 

Dio, que outrora havia deitado para dormir, havia se arrastado para seu lado e timidamente se aconchegou em seu banco. O garoto, ainda dentro do mundo dos sonhos, parecia sonhar com algo desagradável, pois suas pálpebras vibravam ligeiramente — e, de perto, era possível perceber que estavam molhadas de lágrimas. Lion, seu cachorro, se aconchegou em sua barriga, e assim também apagou. 

Segurando a manga dela com uma das mãos, Dio não despertou mesmo naquele momento, quando o trem sacudiu e o som agudo apitou. Ryota sentiu como se ele não desejasse perdê-la de vista por alguma razão, ou tivesse acordado após um pesadelo e se aproximado para relaxar.

Como se sua presença fosse capaz de lhe proporcionar isto.

Mais impressionante do que aquela vista, que a fez arregalar um pouco os olhos, foi não ter acordado quando alguém se aproximou ou a tocou. Normalmente, uma vez que seus instintos de sobrevivência e a noção de perigo que a rondavam se estabilizou, e ela se tornou capaz de compreender os arrepios que subiam em sua pele ou as estranhezas que ouvia no ambiente, acabaria acordando imediatamente caso algo assim ocorresse.

Entretanto, ali estavam criança e filhote, dormindo próximos a ela enquanto respiravam profundamente.

Após alguns segundos de choque, Ryota inspirou fundo e soltou um suspiro. Então, ergueu os olhos azuis escuros para o guarda, que pacientemente aguardou sua resposta.

— Não, está tudo bem. 

— Certo. Apenas passei para avisar que chegamos em nosso destino, e a viagem prosseguiu em segurança e sem desvios. 

— Obrigada. Estaremos desembarcando em breve.

— Sim, senhora. Então, com sua licença, me despeço.

Abaixando a cabeça e respeitando sua decisão, o guarda se retirou em silêncio, novamente fechando a porta.

Ryota, apesar de ter se passado quase meio ano desde que assinou os documentos como alguém que fizesse parte da nobreza — embora ainda apenas fosse noiva, e não apropriadamente casada com Zero — ainda ficava um pouco desconfortável com os tratamentos.

Não que fosse ruim, longe disso. Talvez a sua “eu” do passado, que ainda olhava para Fuyuki Minami como um ser digno de divindades, ou que se assustava quando empregadas ajudavam em tarefas básicas como o banho ou vestimentas, ou assustava-se com mordomos servindo pratos à mesa ou na cama, estivesse impressionada, para dizer o mínimo.

Agora, era um pouco diferente. Ainda não era capaz de gostar de todos aqueles tratamentos formais, mas entendia que era necessário para a convivência. Estava convicta de que performar um diálogo entre a nobreza poderia ser ligeiramente cansativo — bem como Edward outrora lhe disse —, mas era capaz de se acostumar a isso.

Ainda assim, nunca deixaria de preferir uma conversa agradável, ainda que menos informal do que o costume, em que não houvesse necessidade de respeitar exclusivamente a diferença de patamares ou algo semelhante, mas apenas trocar palavras com um sorriso ou expressando seus sentimentos sem medo ou necessidade de colocar-se como superior aos outros.

Era mesmo uma pena que a própria Ryota tivesse virado as costas e apontado o dedo para todos que poderiam tratá-la tão intimamente.

E, agora, os únicos que ainda tentavam contato eram tratados com uma frieza que nem ela mesma sabia de onde vinham, mas certamente não possuiam a intenção de ferir — embora parte dela se culpasse por esse tratamento que sua antiga “eu” acharia inaceitável.

Ryota já foi o tipo de pessoas que abraçaria o mundo se pudesse, pegando na mão todos que lhe pedissem ajuda e colocando-se ao limite por desconhecidos. Foi por causa disso que enfrentou dificuldades e sofreu, calhando por falhar em ajudar todos que prometeu. Eles sofreram, perderam, choraram e lamentaram — por sua incapacidade.

Então, se fosse para piorar as coisas, deveria apenas se afastar de uma vez. Assim, pelo menos, poderiam pedir ajuda para alguém que fosse capaz de cumprir com suas próprias palavras.

— … Moça? O que foi? Você tava fazendo uma cara meio triste…

— … Não era nada. Precisamos desembarcar imediatamente. 

Ryota, ignorando a preocupação do garoto outra vez, colocou-se de pé quando ele despertou e limpou os olhos. Então, tapou a boca quando bocejou, saltando do banco para pegar suas coisas — apenas seu cachorro, que também acordou após um pouco de esforço para se espreguiçar.

Guardando o bloco de notas que sequer conseguiu abrir após o caso do trem — não estando com cabeça para lidar com aquilo — e lidando com as dores após o despertar que nunca era agradável, Ryota endireitou a postura ao carregar a pequena mochila do tamanho de uma bolsa, permanecendo dentro de suas vestimentas largas. 

Inspirou fundo uma, duas vezes, então deu tapinhas suaves na própria face. Havia finalmente chegado ao seu objetivo. Agora, seria capaz de cumprir com aquilo que tinha desejado fazer durante tanto tempo.

Foram longos cinco meses, mas poderia conseguir as respostas que procurava. Após tanta dedicação para corrigir os erros, para preencher as lacunas e conseguir escapar dos olhos de todos, havia chegado em Celestia. E, assim, poderia finalmente se encontrar com Sofia Megalos.

Foi um período longo e atormentador. Noites sem dormir, temendo apagar a consciência e, enquanto assim estivesse, a respiração do garoto no quarto ao lado apenas desaparecesse. Apavorou-se com as possibilidades, com as chances de sua expectativa de vida ser menor do que a pressuposta pela curandeira de cabelos azuis, mesmo que ela sempre confirmasse seu estado.

Ryota arrastou-se durante todos aqueles meses, fazendo os preparativos. Precisou aguardar para que a nobreza estabilizasse as coisas com o povo, terminassem a reconstrução das destruições e finalmente estivessem prontos para voltarem às suas “rotinas”. Reuniões e compromissos posteriores foram cancelados apenas em prol de manter a população em segurança. 

Enquanto isso, a garota de cabelos negros buscou pela localização da curandeira chamada de Maga Veridian. Se nem mesmo sua companheira era capaz de saber sua localização, ninguém conseguiria. Ela havia desaparecido após a coroação real, e nunca mais deu sinal de vida. Não importava quantas informações buscasse sobre aquela pessoa, nada foi capaz de ligá-la a alguma cidade ou local de residência. 

Isso a frustrou. Onde estava alguém que poderia trazer a cura para tantas pessoas quando elas mais precisavam?! Como poderia se ausentar daquele jeito depois de tantos mortos e feridos?! Que tipo de médico faria aquilo?!

Ainda que seu aborrecimento fosse claro como o dia, Ryota lutou para não descontar aqueles sentimentos nas pessoas. Não se envolvendo diretamente com a nobreza, mas trabalhando como um pedaço dela, foi capaz de receber a ajuda do monarca para assinar todos os documentos necessários que faziam dos Furoto parte deles outra vez.

Mas era apenas isso. Apenas papéis que poderiam ser queimados ou rasgados a qualquer momento. A pessoa crucial não estava lá para comemorar ou trabalhar por eles. E Ryota não era uma Furoto — não havia sangue deles correndo em suas veias — e o anel que estava em seu dedo ainda não era certeiro.  

Será que Zero, quando despertasse, ainda teria coragem para amá-la? Ele ainda poderia olhar para aquela falha e dizer todas aquelas palavras que uma vez lhe disse em sua antiga casa? Poderia aceitar aquela pessoa cheia de defeitos, que escorregava nos próprios pés quando tentava consertá-los?

Havia medo de perdê-lo, mas vê-lo acordar e não ser capaz de manter os sentimentos de meio ano atrás seria ainda pior. E se ele estivesse enganado? E se sua paixão apenas o estivesse cegando, para que não visse verdadeiramente a pessoa que ela era? E se ele apenas estivesse abafando todos aqueles erros para ver o que queria? E assim, quando despertasse, após refletir sozinho durante tanto tempo, se arrependesse?

E se Zero a odiasse?

— Moça?

— … Vamos indo.

Estranhando a garota que permaneceu parada de costas para ele, ouviu apenas sua voz rouca e baixa murmurar isso antes de marchar para fora da cabine, disparando pela locomotiva. Dio, em silêncio, a seguiu, tentando mantê-la no encalço.

A dupla desceu do trem e teve a visão clareada quase que imediatamente. Em comparação com a iluminação opaca de dentro da cabine, do lado de fora a visão precisou se acostumar novamente. Ryota franziu a testa, lutando contra a dor de cabeça insuportável, e sentiu a presença de outra pessoa ao seu lado.

Sabendo que não poderia permanecer muito tempo presa na própria mente, lutou para se concentrar. Não seria capaz de encarar Sofia Megalos adequadamente caso estivesse com a cabeça cheia de pensamentos inconvenientes. 

— M-Moça?

— O quê?

Enquanto estava pronta para sair andando em direção às ruas, ouviu o chamado tímido do garoto que agarrava a própria camiseta, torcendo as pernas. Lion, sendo um filhote de um tamanho apenas um pouco maior que a própria palma da mão de um adulto, estava deitado em seu ombro, obediente.

— Hm… S-Se não for te incomodar, eu… Precisava ir no banheiro.

— Ah.

Ryota arqueou as sobrancelhas. Estavam em uma viagem longa, e certamente haviam dormido por pouco mais que três ou quatro horas. Ela não havia ingerido nada além de água, mas o menino comeu bolo e encheu o estômago, então era esperado que a digestão fizesse seu trabalho após tanto tempo.

Para falar a verdade, ela mesma precisava lavar o rosto. Então, abaixando os ombros e olhando para os arredores da estação, encontrou as portas.

— Venha comigo.

Andando na frente a passos certeiros, uma parte dela se sentiu insegura. Por alguma razão, não conseguiu deixar o menino andar sozinho na direção do banheiro, e o acompanhou até que adentrasse antes de entrar no feminino e lavar o próprio rosto. Talvez fosse apenas o instinto preventivo após o ocorrido no trem de garantir que nada aconteceria. 

Dentro do lavabo vazio, mas não necessariamente limpo, abriu a torneira e lavou o rosto com a água gelada. Sentiu-se revigorada por um instante com a sensação térmica da dor se desfazendo, mas logo retornando. Enxugou o rosto e encarou a si mesma no reflexo.

Olhos escuros, cabelos grandes e bagunçados, expressão apática, marcas escuras de exaustão e roupas pretas. Não era nem um pouco parecida com quem estava acostumada a ver no reflexo.

O que era ótimo.

Não precisava ser ela mesma — apenas alguém capaz de cumprir com aquilo que era necessário. 

Saindo-se e encontrando o menino que parecia revigorado, a dupla de aparência discrepante caminhou para fora da estação de trem. Seus olhos se afinaram conforme a luz do sol os alcançava, até que finalmente puderam enxergar a cidade.

Celestia, ao contrário de Hera, era um lugar exuberante com um tempero diferente.

Enquanto a capital refletia um cenário com tecnologia garantida, mas nada além de telões e automóveis com carruagens que atravessavam ruas lotadas, lanchonetes e lojas, Celestia era semelhante, mas delicada demais para ser comparada.

Ryota observou as ruas asfaltadas com cores escuras e a serenidade do local. As pessoas que caminhavam, ao contrário de Hera, andavam em velocidade reduzida e conversando baixo. Não haviam sons estridentes ou carros buzinando de segundos em segundos, mas uma visão de respeito do povoado que interagia civilizadamente.

Não haviam telões nos prédios ou casas grudadas umas nas outras, mas moradias separadas com terrenos e jardins, bem como grandes lojas e livrarias. Uma música agradável tocava ao fundo, mas não desconcertante ou enjoativa como se lembrava da de Hera.

Celestia habitava um ambiente pacífico, silencioso e reflexivo. Não havia uma mistura de cheiros, de vozes que se superavam ou visões bagunçadas de cores e formas. Era um lugar amplo, com estradas para pedestres, alguns comércios, zona residencial, ruas asfaltadas e um belo céu azul.

Ryota e Dio saíram da estação de trem subindo as escadas, parando diante de uma praça de alimentação onde barraquinhas vendiam salgados e doces. Uma menina segurava a mão do pai enquanto apontava o sabor do picolé que queria; um casal se abraçava em um banco, compartilhando um algodão-doce; uma família passeava segurando a mão de gêmeas no meio, rindo consigo mesmos. 

O sentimento de paz que a abraçou foi tão grande que permaneceu parada por alguns instantes, processando a visão. Então, quando piscou e acordou para a realidade, olhou para Dio. O garoto ao seu lado parecia igualmente encantado, realmente sendo a primeira vez que viajava para uma cidade como Celestia. 

Ainda que não fosse uma criança com energia sobrando ao ponto de sair correndo, era gracioso o bastante para abrir a boca em surpresa e seus olhos brilharem como sua idade sugeria.

— M-Moça.

— O quê?

— O-O que é a-aquilo?

Dio apontou para a barraquinha em que um adolescente girava um palito dentro de uma máquina.

— Algodão-doce.

— Aaaaaaahhh… E… E tem gosto de algodão? E é doce? 

— Bem, é doce, mas não é exatamente um algodão.

— Parece uma nuvem… Que lindo.

Ryota franziu a testa, quase sentindo para onde aquela conversa seguiria. Dio não era seu irmão ou filho, mas o pressentimento de que algo aconteceria fez seus pelos se arrepiarem. Talvez fosse porque via pais comprando para seus filhos, ou porque o garoto ao lado não tirava os olhos do algodão colorido, que soltou um suspiro discreto.

— … Você quer?

— E-Eh?! Hã? Ah, n-não… Eu… Você já comprou o bolo pra mim antes, eu não… Não quero fazer com que gaste tanto comigo… 

Mas os olhos dele se viraram novamente para a nuvem de sabores à distância, como que hipnotizado.

Fechando os olhos, Ryota processou quais seriam as vantagens de fazer as vontades de uma criança como Dio. Ele era pequeno, por volta dos doze anos de idade, então ainda estava em uma fase adorável. Entretanto, era velho o bastante para entender um “não”, e não parecia uma criança que choraria ou se jogaria no chão caso ela apenas o ignorasse.

Entretanto, aquilo não seria apenas cruel? Uma pessoa como ela poderia mesmo fazer isso? Ou seria apenas seu lado como mulher, alguém acostumada a cuidar de outros bebês e crianças quando ainda morava em Aurora, sensível o bastante, para querer satisfazer as vontades dele?

Ela queria dar as costas e ir embora, mas algo dentro se remexia tanto que foi incapaz de fazer isso. Suas pernas não obedeceram, mas começaram a se mover. Enquanto cérebro e coração brigavam como cão e gato, se arranhando e destroçando internamente, Ryota apenas andou naturalmente na direção da barraquinha.

— Com licença.

— Ah! Senhorita, boa tarde! O que deseja?

— Eu gostaria de um algodão-doce, por favor.

— É pra já!

Com uma expressão interna de desgosto, mas expressando nada por fora, sacou o dinheiro de sua bolsa interna e entregou ao vendedor. Habilmente, ele sacou um espeto e começou a girá-lo dentro da máquina que expelia o açúcar transformado, contorcendo-se e rodopiando, criando uma esfera que cobria quase todo o contorno.

Então, sacando-o como se fosse uma obra de arte, estendeu a nuvem verde na direção do garoto que apenas assistiu tudo em silêncio. 

— Aqui, rapazinho. 

— O-O-OBRIGADO!!!

Dio soltou uma exclamação alta que fez Ryota ficar surpresa, mas era seu lado infantil criando asas e voando diante de algo nunca visto, então apenas arrumou a postura. O vendedor pareceu contente e apenas voltou a trabalhar, deixando-os quando começaram a caminhar.

Ao invés de usar o dedo livre para tirar um pedaço, o garoto abriu a boca e mordeu o algodão-doce, rasgando um pedaço grande demais para ser mastigado, cobrindo quase toda a sua visão.

— Coma devagar, ou vai acabar engasgando.

Ryota soltou um aviso sutil como uma mãe, e se sentiu idiota imediatamente. Dio assentiu para ela, no entanto, e usou a mão para comer. Não parecia que Lion estava faminto, então o filhote apenas observou o dono se deliciar com o doce, sujando mãos e bochechas.

— Obrigado, moça. 

Queria responder algo como “não pense que fiz isso por você” ou “foi apenas porque eu fiquei irritada com a sua cara”, mas seria completamente contra o que realmente sentia. Ryota podia ser uma pessoa que costumava ignorar os próprios sentimentos ou moldá-los como bem entendia, mas era incapaz de negar as vontades dos outros ou mentir a eles.

Engoliu em seco, não mudando sua expressão de antipatia. Não era como se estivesse forçando-se a isso, mas tornou-se um pouco difícil de expressar com facilidade os pensamentos que outrora saiam sem controle.

De toda forma, ignorando aquela conturbação, a dupla que caminhava pelas ruas eventualmente alcançou seu destino. Enquanto Ryota conseguia os quartos para o hotel em que ficariam durante aquela pequena estadia, Dio apenas aguardou pacientemente, sem dizer nada. 

— Ele é seu filho?

— Não.

— Irmão?

— Não.

— São parentes?

— Apenas acompanhantes.

— Então, anotarei como sua responsável.

Não havia razão para mentir sobre suas identidades, e Ryota não se incomodou — ela apenas queria terminar aquilo o mais cedo possível e voltar para Hera. Ainda que Celestia fosse uma cidade mil vezes mais agradável, tão pacífica quando Puccón, sentia seus braços coçarem sempre que pensava no garoto que dormia profundamente, solitário, em um dos quartos da mansão.

Quando entraram no cômodo, Dio correu para a cama e pulou. O colchão balançou com seu peso, e Lion fez o mesmo. 

— Não façam barulho ou sujem. Ela permitiu a estadia do seu cachorro, mas desde que sigamos as regras do hotel. 

— Sim, moça!

— Au!

Os dois responderam ao mesmo tempo, sentando-se na cama de frente para ela. Abaixando os ombros tensos, Ryota soltou um suspiro. Ela olhou para a janela que refletia um andar alto, apresentando a cidade abaixo deles. 

— Permaneça aqui, por enquanto. Vou tomar um banho.

Ryota apenas ouviu uma voz baixa de confirmação e o som de algo sendo ligado — a televisão. Dando as costas para os dois que assistiam, a garota entrou no banheiro e lavou-se. A água quente, mesmo durante o verão, sempre a acalmava. De alguma forma, era agradável estar em contato com o calor, não importava o quão alta a temperatura estivesse.

Ainda que fosse usar a mesma roupa da viagem, sabia que seria por pouco tempo. Estaria em Celestia por, no máximo, um ou dois dias, então seria tempo o bastante para que conseguisse uma conversa com a reitora do Instituto Gnosis.

Não sabia onde Sofia costumava permanecer, se era na própria escola ou em sua casa, mas não importava. Partiria em sua busca imediatamente. Precisava encontrar a Maga Veridian o quanto antes, e também, talvez, conseguir outras informações importantes.

Sobre Albert, com quem compartilhava o sobrenome; sobre Jaisen, desaparecido há quase seis meses; sobre o estado de Kanami, presa dentro de sua mente; sobre Zero, a caminho de seu fim como uma bomba relógio.

Sobre ela mesma… Sobre a Ritus Valorem, sobre as Entidades, as Autoridades, tudo. Tudo quanto fosse possível, ela desejava saber. Precisava descobrir a verdade. Colocaria tudo o que estivesse ao seu alcance para compensar a todos, para encontrar uma forma de ajudá-los.

— Estou partindo. Permaneçam aqui até eu voltar.

Sem olhar para trás ao sair do banheiro, Ryota falou alto enquanto andava na direção da porta. Porém, foi parada pelo som de uma batida, então olhou para trás. Viu Dio saltando da cama, batendo os pés desnudos no chão, e calçando rapidamente os sapatos desgastados. Lion pulou em seu ombro imediatamente.

— O que está fazendo?

— Eu vou com você.

Ryota uniu as sobrancelhas.

— Não. Fique aqui.

— Por quê?

— Estou indo resolver algumas pendências. Não demorarei.

— Não. Eu vou junto.

A estranheza em seu comportamento rebelde a deixou desconcertada. O garoto que vestiu velozmente os sapatos e disparou em sua direção, determinado, devolveu o olhar feio. Dio não estava encarando-a com superioridade, mas desejando ser capaz de convencê-la.

— Você quer andar na praça? Ou olhar as lojas? Vá, não me importo. 

— Não, eu quero ir com você.

— Eu disse que estou ocupada. Não tenho tempo a perder brincando.

— Não é isso! Eu quero ir junto pra qualquer lugar que você for, moça!

Quando Ryota abriu a porta e parou ao ouvi-lo, sua testa se franziu ainda mais.

— Não estou indo passear.

— Eu sei.

— Estou indo conversar com uma pessoa importante, algo sério, então não poderá brincar nos parques ou comer doces.

— Tá bom.

— Não vai se divertir indo comigo.

— Tudo bem. 

Engolindo em seco com as respostas rápidas, olhou para a figura mais baixa que insistia em ficar ao seu lado. Por alguma razão, aquilo a irritou.

— Ainda não entendeu que não quero que venha comigo? — rosnou com frieza, mas não erguendo a voz — Apenas fique quieto no quarto.

— … Vou ficar quieto. Não vou pedir nada pra comer, e nem reclamar se ficar muito tempo fora. Nem se demorar ou for chato. E o Lion não vai resmungar, também. Por isso, me deixa ir com você, moça. Por favor.

— … Por quê? Por que quer isso tanto assim? Eu não consigo entender… Nem agora, nem antes ou antes disso. 

— Tá tudo bem. Eu… Não preciso que você entenda. É só que…

— O quê?

Ryota sentiu que sua paciência estava para ultrapassar os limites. O que havia de tão especial para ficar grudado nela? Mesmo sendo tão arrogante e grosseira o tempo inteiro? Foi o bolo? O algodão-doce? Ele era assim tão fácil pra ser enganado por comidas? Por meros presentes? Coisas descartáveis?

Mas Dio engoliu em seco, parecendo ter dificuldades para falar. Então, após um silêncio frio, acompanhado apenas pela batidas quentes de seu coração, ouviu-o sussurrar:

— … Eu… Tenho medo de ficar sozinho.

Aquela raiva que começava a subir à cabeça cedeu quase que imediatamente ao ouvir a resposta.

— … E… E além disso, tem uns caras maus que vão ficar indo atrás de você, moça. Então, se ficar sozinha, vai ser pior. 

— … Não é como se ficar ao seu lado mudasse as coisas. Vai apenas me atrapalhar.

— E-Eu sei. Mas… Mas se eu ficar aqui sozinho… E-E se eles tentarem me sequestrar pra te pegar? Ou… Algo ruim desse tipo? Não seria melhor ficar do seu lado, então? Assim… Bom, você poderia me proteger… Ou… Não sei. 

Dio se atrapalhou com as palavras, mas o argumento dele era válido. Considerando que agora descobriram que estava acompanhada de uma criança, poderiam usá-lo ao seu favor. Saberiam que era um alvo fácil. 

E, além disso, havia a resposta dada por ele. Sobre ter medo de ficar isolado, sozinho. Aquilo fez seu coração hesitar. Poderia dar um passo para fora e fechá-lo dentro daquele quarto, ignorando seu apelo — mas isso seria muito, muito cruel. Mas talvez o fizesse enxergar a pessoa que estava acompanhando. Assim, talvez, visse que aquela que insistia em ficar ao lado não era alguém assim tão bom.

Se houvesse coragem para tomar aquelas atitudes. Se seu coração não fosse tão frágil, tão tolo. Se seus instintos, seu medo, não fossem capazes de controlar suas ações. Ela queria ser fria como Sora, capaz de encarar a realidade e dizer as coisas que precisavam ser colocadas em voz alta sem medo. Mesmo que ferisse o ouvinte, mesmo que aquilo afastasse, mesmo que aquilo a fizesse ser odiada.

Dio tinha medo de ficar sozinho.

Ela quis saber se essa era a verdadeira razão pela qual era acompanhada por ele como se fosse um gato. Segurando sua manga, ficando feliz com gestos pequenos, acompanhando-a, estando sempre ao seu alcance…

Aquelas lágrimas de seu sonho seriam reflexo dos pesadelos da mente infantil, que temia o abandono? 

E por que aquele garoto, ainda que fossem assim tão diferentes, a fazia lembrar de Zero? Seria por isso que seu coração cedia assim tão facilmente aos caprichos dele? 

Sua boca ficou amarga, então azeda enquanto engolia a saliva acumulada. Inspirou fundo, então expirou o ar. 

Ela era realmente uma estúpida — sabia que se arrependeria disso pra sempre.

— … Faça o que quiser.

Não precisava olhar para trás para saber que Dio estava sorrindo enquanto andava em seu encalço.

***

A caminhada pelas ruas de Celestia era agradável. Seus passos ecoavam por seus ouvidos, ao contrário dos barulhos da cidade grande que era Hera. Em termos de comparação, aquela cidade era de um tamanho semelhante ao de Puccón, apresentando uma população apenas um pouco maior devido sua vinda de outro território além dos mares, muitos anos atrás.

Remanescentes uranianos, como seriam chamados, vieram para as terras de Thaleia, mas nem todos os thaleianos foram receptivos. Ainda que Urânia não fosse um país necessariamente com tendências duvidosas em seu relacionamento com quem o acolheu durante a Era Sombria, outros como Polímia e Clior acabaram sofrendo um pouco.

De qualquer forma, a dupla seguiu o trajeto na direção do Instituto Gnosis. A aposta de Ryota era que Sofia estaria trabalhando em sua academia, escola, ou seja lá qual fosse o termo ideal para definir. De toda forma, era um local digno, que poucos poderiam ter acesso a estudar, mas que definitivamente aceitaria todos que se esforçassem pelo mérito.

Não precisaram de muito esforço para encontrarem a construção alta e extensa. Era grande o bastante para ocupar uma quadra, e suas paredes brancas brilhavam à luz do sol. Ainda à distância, era possível ver alunos andando através das janelas, ou sentados assistindo às aulas. 

Entretanto, ainda mais chamativo que a instituição, era o que acontecia diante dela, em seu pátio. Haviam barracas igualmente brancas com toldos para protegerem-se do sol estendidos como um corredor, e pessoas passavam por ela para assistir apresentações ou presenciar projetos.

Ryota e Dio, silenciosos, mas curiosos, adentraram no evento desconhecido. Como gatos, observaram os alunos de faixas etárias distintas apresentando projetos pessoais, sejam aqueles forjados através de materiais físicos ou estudos com slides que passavam a cada explicação. 

Não eram temas necessariamente difíceis ou complexos, pois até mesmo crianças pareciam interessadas em alguns assuntos como animais ou desenhos animados. Mas, não importava qual fosse o tema, todos apresentavam o conteúdo como educativo, visando a aprendizagem e o compartilhamento do conhecimento agregado no instituto.

Os dois pararam diante de duas garotas que apresentavam para um casal a construção de um robô com funções de limpeza, pressionando botões que o fariam iniciar o trabalho. Era necessário apenas trocar o objeto — vassoura, rodo, pano —, usado, mas também trabalhava como aspirador.

Ao lado, um trio de estudantes explicava sobre o trabalho dos seladores e a história que fez nascer a Era Sombria, discernindo para um grupo que aparentavam ser calouros interessados no assunto, discutindo alegremente.

— Impressionante, não acham? Todos esses alunos são veteranos do Instituto Gnosis, e estão apresentando projetos ligados às suas áreas de curso. 

A dupla, que até então estava vidrada no ambiente, virou-se ao som de uma voz feminina que se aproximou com ar de cumprimento. Era uma mulher esbelta na faixa dos trinta anos de idade com cabelos vermelhos como fogo e olhos violeta como jóias ametistas. Vestida com roupas um pouco mais provocantes do que se deveria ver dentro de um evento colegial, ela apertava seus seios fartos sob os braços cruzados, como se desejasse expô-los ao mundo com ousadia.

Por alguma razão, Ryota sentiu vontade de tapar os olhos de Dio.

Entretanto, apenas trocou olhares com a moça de aparência sedutora.

— Estou procurando pela reitora de Gnosis. 

— Uaaaau, mas é uma mocinha bastante direta, hein? 

Ao invés de ficar irritada com a troca de assunto, a mulher abriu um sorriso que dizia estar se divertindo. Então, abriu os braços.

— Ah, meu bem, por que não tenta aproveitar um pouco o evento, antes? Vai ser rapidinho!

— Não, eu estou com pressa.

— Ora, vamos, vamos, não seja tãããão estraga prazeres.

— Uh?!

Ryota olhou com seriedade para ela, mas não com ar de alguém que mandava, embora tenha se surpreendido com a aproximação repentina. Então, soltou um grito agudo contido quando a desconhecida passou os braços por trás de seu corpo, esfregando os seios como duas bolas macias.

— Hmmm? O que me diz, mocinha? Você parece um pouco tensa, vamos passar um tempo juntas e acabamos com isso rapidinho, ceeerto?

— U-Uh… N-Não obrigada…!

Ouvindo a voz sedutora que sussurrava ao ouvido, próxima o bastante para sentir sua respiração, um arrepio percorreu sua nuca e Ryota deu um salto para longe, o coração disparado e o rosto vermelho. A mulher riu de sua reação, passando o dedo indicador nos lábios carnudos.

— Será apenas por uma horinha, e então vou levá-la para ver a senhorita Sofia. O que me diz, querida?

— … Promete?

— Oowwwn, não precisa ficar tão tímida. Prometo, de dedinho juradinho, que te levo até ela… Se antes me acompanhar pelo evento.

Quando o sangue que fervia em seu corpo pareceu se acalmar, Ryota inspirou fundo. Dio, ao seu lado, apenas a olhou de soslaio, em silêncio completo, como prometido. 

— Está bem. Apenas uma hora. 

— Aaaaai, que amorzinho! Obrigada, eu tava triste sem ter companhia — ela ousou se aproximar outra vez, mas Ryota recuou mais rápido, como um gato que foge da água — Hm, sem hesitação dessa vez, hein? Tudo bem, eu gosto de pessoas retraídas, também.

— Poderia, por gentileza, não mostrar tanta indecência na frente de uma criança?

— Não se preocupe, não se preocupe. Esse é só o meu jeito de fazer as coisas, gosto de ficar flertando com pessoas bonitinhas como você, mas não é pra levar pro coração, viu?

— … Certo.

Ryota realmente não sabia como reagir à mulher que sorria para a reação dela, mas decidiu apenas acatar. Se fosse capaz de encaminhá-la ao seu objetivo, melhor ainda. Poderia encarar uma hora ao lado dela por esse propósito, se necessário.

— Ah, sim, claro. Se vamos andar juntinhas, precisamos nos apresentar!

Com uma velocidade acima do esperado, a mulher de cabelos como fogo aproximou-se, passando o braço pelo da garota que enrijeceu o corpo com a aproximação, mostrando os dentes com um sorriso.

— Pode me chamar de Scarlet, só isso mesmo. E como se chamam, queridos?

— … Ryota. E esse é o Dio.

— Esse daqui é o Lion.

Os dois se apresentaram, um pouco receosos, enquanto começavam a caminhar sob as tendas e toldos brancos. A passos lentos, o trio começou a atravessar o evento com ar de desconforto, até que Ryota finalmente conseguiu se soltar dos braços da ruiva chamada de Scarlet.

— Então, vocês não são de Celestia. Não precisam ficar tão surpresos, eu sei pela carinha linda de vocês! Conheço bem todo mundo que mora aqui, então dá pra ver que estão procurando por alguma coisa.

— Sim. Viemos de Thaleia porque preciso conversar com dona Sofia.

— Hmmm? Com a Sofi, é?

— “S-Sofi”?

Ryota franziu a testa para o apelido de Scarlet, que apenas inclinou a cabeça para sua reação.

— Sim. Nós somos amigas próximas, sabe? Embora ela seja um pouco malvada comigo só porque às vezes me distraio um pouco do trabalho, ou algo assim. 

— Mas senhora Scarlet, não devia estar ocupada com o evento? Afinal, trabalha para o instituto, não é?

Enquanto a ruiva fazia suas considerações, Dio interveio com uma observação que deixou Scarlet constrangida.

— B-Bem, sim, mas eu também posso chamar público pro evento, veja bem!

— Mas essa não era sua função original.

— Talvez, mas não faz mal mudar de vez em quando. É saudável. 

— Mas isso não deixaria a dona Sofia com raiva? Afinal, a senhora tá gazeando no trabalho…

Não importavam quantas desculpas desse, Scarlet era prontamente cortada pelas palavras duras de repreensão de Ryota e Dio, que logo viram o problema citado por ela. A ruiva deveria ter um sério problema de concentração ou uma vontade grande de andar pelos lugares, distraindo a mente com facilidade, ou não estaria na porta do evento quando seu papel era outro.

— N-Não, é claro que não…!

— Mas você sempre acaba deixando as coisas nas nossas costas, hein? Que tal pensar um pouco mais nas minhas mãoszinhas delicadas, ô Scarlet?

— O quê? O homem aqui é você, não eu. Além disso, quem é que tá fora do lugar de serviço mesmo?

— Nós dois, mas fui mandado pra cá pra encontrar vocês.

Parando após alguns minutos de caminhada, a dupla se virou para o pátio aberto, onde uma pessoa chamou Scarlet para conversar. O trio parou, olhando para o homem de cabelos negros que trocava palavras duras com a ruiva.

Então, Ryota arregalou um pouco os olhos ao reconhecê-lo. E pareceu que ele também, pois ergueu uma palma e sorriu com seu típico ar exagerado:

— E aí, colega? Tudo tranquilo? Há quanto tempo!

Sasaki sorriu para a garota que sentia o corpo congelar, enrijecendo os músculos do corpo e encarando-o com seriedade.

Ali estava uma das pessoas que estava pronta para encontrar em Celestia — mas não para uma conversa exatamente agradável.

Haviam cartas lançadas na mesa que precisavam ser reconhecidas, e estava pronta para fazer isso ali mesmo — para o homem que também havia mentido para ela.



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