Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 9 – Arco 4

Capítulo 04: Pessoas Importantes

— Você parece estar bem pensativa hoje.

— Ah, é?

— Está “olhando” para o sol há algum tempo. Por acaso, alguma coisa está te incomodando?

— Hmmm… Nada em especial, eu acho.

Apertando os lábios para a voz masculina que a abordou, Marie apenas soltou um resmungo preguiçoso. Sentada na cama com as pernas que balançavam, os pés quase alcançando o chão, ergueu o queixo apreciando o calor que a banhava.

A venda que lhe cobria os olhos tinha um tecido agradável e que não irritava a pele. Por muito tempo, a garota de cabelos dourados se viu passando por maus-bocados quanto a se acostumar com o novo estilo de vida. Desde o momento em que perdeu a visão, até o instante em que finalmente foi capaz de encontrar seu irmão mais velho, houve uma passagem de tempo curta, mas que pareceu durar uma eternidade.

Marie era uma pessoa forte — e sabia disso. Com a ciência das próprias capacidades, embora fosse um pouco impulsiva, suas capacidades para se adaptar a um novo ambiente eram altas. Isso se desenvolveu em reflexo ao seu estilo de vida ao longo daqueles quase treze anos de vida, atravessando cidades de semanas em semanas, roubando para comer algumas horas mais tarde, trabalhando para cumprir com deveres diários enquanto aguardava a chegada daquele que era como um irmão.

Ainda que não fosse especialmente boa em nada, sua mentalidade de ferro foi a única qualidade que a manteve em pé durante tanto tempo. Se fosse um pouco mais delicada, quem sabe um pouco mais tendente a se cansar com facilidade, certamente teria desistido há muito tempo.

Mas, caso tivesse tomado uma decisão como aquela, não seria capaz de apreciar a luz do sol que adentrava a janela naquele momento, o calor acariciando sua pele e venda com delicadeza. Mesmo que não pudesse enxergar a luz ou tudo o que tocava, era capaz de “vê-lo”. A sensibilidade de seus outros sentidos apenas se fortaleceu, e, em especial, uma nova habilidade surgiu dentro de seu ser, que tanto desejava voltar a enxergar.

Embora o resultado não tenha sido exatamente o esperado, era melhor do que nada.

Entretanto, não era apenas porque aquela tarde levemente fria tinha arrepiado os pelos de seus braços desnudos que permanecia diante da luz para se aquecer. Luccas, observador como era, ao menos quando se tratava de sua protegida, visualizou perfeitamente o ar reflexivo que pairava com um comentário casual. 

Aquela personalidade agradável, capaz de se moldar ao humor do outro, era algo que antigamente irritava Marie. Como se alguém devesse mudar para conquistar algo, para chegar ao coração de alguém — para tanto, moldaria seu caráter e visual, se tornando completamente superficial. Para alguém que vivia com tamanho orgulho, era um estilo oposto ao dela, o que certamente a enojava profundamente. Em contrapartida, agora, ela olhava para aquela personalidade com carinho e até certa inveja — Luccas era infinitamente melhor em lidar com dificuldades do que ela, possuindo uma paciência e tato grandiosos.

Talvez você pudesse chamar isso de experiência dos mais velhos, ou algo semelhante. Mas para uma garota no auge da sua pré-adolescência, era apenas uma atitude chata ou ligeiramente admirável.

— Deixe-me adivinhar o que está pensando.

— Qual a graça disso? 

— Então, vamos trocar um pensamento por outro. Assim está melhor?

Luccas se deitou de bruços na cama ao lado dela e fez uma oferta tentadora. Ela estava apenas querendo distrair sua cabeça dos pensamentos que rondavam, então abriu um sorriso de quem aceitava o desafio.

— Beleza.

— Então… Quer começar?

— Já que foi você quem ofereceu, por que não começa?

— Muito bem. Vejamos…

Marie sentiu que seu responsável ergueu o queixo, olhando para o mesmo cenário que ela. Para a cidade banhada em dourado, agora reconstruída, mas de coração e estrutura partidos. 

— Estou pensando que o dia está lindo.

— Nossa, que sem graça.

— Mas é um pensamento, certo?

— Mas um muuuuito sem graça, eca. Nem teve graça. Tenta de novo.

Luccas torceu as sobrancelhas para Marie, que negou firmemente a tentativa dele de tomar uma atitude mais sutil para fazê-la falar. Entretanto, sua estratégia foi imediatamente destruída pelo tédio. Então, inspirando fundo, falou outra vez:

— Estou pensando que nossa estadia na capital está prestes a acabar.

— Cê tá preocupado com isso?

— Não exatamente… Na verdade, um pouco. 

— Ah, fica tranquilo. Com o apoio do irmão Ed, a gente não vai passar mais por perrengue nenhum. Ele é muuuito generoso, sabia? Até me deu alguns livros que o pai dele costumava ler quando mais novo pra ele, pra que você possa fazer isso pra mim. 

— … Sim.

— O que foi? Não senti muita confiança nesse “sim”.

— Não foi nada, fique tranquila. Eu estava apenas pensando um pouco no passado.

Marie inclinou a cabeça para a atitude de Luccas, que não ficou feliz com as ofertas do rei. O relacionamento entre os irmãos, que outrora pareceu difícil, se desenrolou com relativa facilidade. Edward era uma pessoa introvertida, mas gentil e estava um pouco instável após a coroação; Marie, em contrapartida, usou de sua personalidade completamente oposta para animá-lo, o que o fez se reerguer para atender suas demandas.

Ainda que suas interações fossem nitidamente agradáveis, estava claro como o dia para Luccas que o novo rei não estava contente. Sim, dedicava-se de corpo e alma em seu trabalho, se tornando uma pessoa tão próxima do povo quantos os antigos rei e rainha — Fanes e Teresa —, mas sua alma estava triste. Solitária.

O sorriso que abria para seus companheiros do palácio era arrastado, exausto e frio — mas não de antipatia, mas porque seu coração deveria estar igualmente congelado. Indefeso de barreiras emocionais, expressava visivelmente em sua face as decepções que estavam em seu coração. Olhos recaídos, sobrancelhas baixas e um sorriso que era nada mais que um puxar de lábios. 

Ele havia parado no tempo, pois foi incapaz de aceitar o que aconteceu na coroação — a morte de seu pai, e as atitudes tomadas por ele durante a Infração Hera. O luto cobria sua silhueta em cada movimento e fala, mas não havia espaço para ele isolar-se e refletir sobre a situação — e não parecia que aquela seria uma decisão inteligente para lidar com seus problemas. Em especial, parecia que o serviço o mantinha ocupado, mas Luccas sabia que era apenas questão de tempo até que suas forças se esvaissem completamente.

Queria ser capaz de mudar essa situação. Mais do que nunca, sentiu que havia dever em seu coração de apoiar o novo rei. Não era apenas por gratidão que sentia ou carinho por Edward lembrar Teresa, mas por temor. 

A antiga rainha havia sofrido durante anos nas mãos do palácio e da própria mente. Isolou-se e escondeu sua dor, até seus momentos finais. Luccas a viu se degradar, ele viu sua alma tornar-se cinza e morta, até eventualmente desaparecer, deixando para trás duas pequenas estrelinhas nascidas de seus esforços para dar ao mundo um pouco mais de cor.

Ele queria protegê-las. Uma estava em suas mãos, e daria sua própria vida por ela — em reflexo a esse pensamento, segurou a mão de Marie. A outra, estava piscando e sofrendo, mas não parecia capaz de colocar em palavras aqueles sentimentos para qualquer um. Era preciso alguém de sua confiança para escutá-lo, amparar suas dores e fazê-lo erguer a cabeça. E, ainda que doesse, nem ele ou sua irmãzinha eram capazes de tomar essa posição.

Eram pessoas importantes, é claro, e sua única família. Entretanto, ainda não receberam o direito de ouvir o que estava em seu coração. Haveria uma longa e difícil jornada, árdua o bastante para eles mesmos se ferirem no processo, mas Luccas sabia que seriam capazes de chegar ao seu objetivo.

Isso se permanecessem mais tempo no palácio.

— … Tá pensando no irmão Ed de novo, né?

— Sim. Não consigo deixar de me preocupar com ele.

— Eu também. Mas… Mas eu não sei o que devia fazer pra animar ou ajudar. Bem, a gente só se conhece faz alguns meses, e mesmo que a gente tenha conversado um pouco de vez em quando, não foi nada demais. Acho que não sou a pessoa certa pra fazer isso, Luccas.

— Você é, Marie. Eu posso ver que o rei fica muito feliz quando está ao seu lado. Ele parece se sentir seguro com alguém familiar por perto.

— … Mas… Mas isso não vai durar pra sempre, né? E eu sei que não vou poder tomar o lugar do pai dele, ou algo assim… Não vou conseguir ser essa pessoa especial que ele tá precisando. Afinal, esse “alguém” que devia estar do lado dele foi embora do nada… E nem se despediu da gente.

Eventualmente, os pensamentos que estavam na cabeça de Marie surgiram, e Luccas entendeu que a garota continuava a pensar em Ryota. Aquela que foi sua salvadora, que a manteve com sua pequena fé, sua chama de esperança, de que algum dia poderiam resgatá-la daquele sofrimento das celas, que a reergueu e tornou possível tudo aquilo que estava ao seu redor, desapareceu do dia para a noite.

Obviamente, quando descobriu que havia partido para outro lugar sem se despedir, Marie ficou imensamente magoada. Ela não queria demonstrar, mas acabou chorando sozinha algumas vezes, e não conseguiu deixar de lado as memórias da pessoa que se tornou tão importante para seu pequeno coração. Alguém que viu suas fraquezas e passou por dificuldades grandiosas para salvá-la, ainda que fossem completas desconhecidas.

A gentileza de Ryota e a confiança de Fuyuki, bem como a conquista de Edward, foram cruciais para que Luccas e Marie pudessem se reencontrar — mas o mérito de tudo aquilo não estava mais ali para receber agradecimentos ou apoiá-los outra vez.

Suspeitava que a razão de sua partida, bem como seu isolamento, estavam relacionados aos acontecimentos da coroação. Todos os envolvidos, após a Infração Hera ter chegado ao seu fim, tiveram em seus corações machucados profundos demais para serem curados por alguns dias, semanas ou meses. Foi uma ferida profunda o bastante para se alastrar em medo, desconfiança e luto. As marcas jamais desapareceriam, mas a forma de lidar com elas era diferente de cada pessoa.

Marie tinha Luccas, e Luccas tinha Marie.

Ryota cortou seus laços com todos e se afastou.

Edward e Fuyuki a observaram partir, fechando-se nas próprias conchas instáveis, ocupando suas mentes com trabalho.

Luccas desconhecia com exatidão o que os gêmeos Akai faziam, mas estava certo de que eles sofreram igualmente com o desenrolar dos acontecimentos.

Certamente, do ponto de vista lógico, nenhum deles estava correto na forma de lidar com suas dificuldades. Entretanto, era impossível julgá-los perante a dor que sentiam. Apenas seriam capazes de reconhecer estes erros através das palavras de alguém de confiança ou caso tropeçassem nestes mesmos erros, finalmente sendo capazes de enxergar o que fizeram.

Mas a pessoa crucial que uniu todos eles foi embora, e o que restou foi um grande e profundo silêncio vazio.

— Ela, assim como nós, está precisando lidar com seus próprios problemas. Eu já te disse isso, não foi, Marie?

— … Mas… Mas ainda assim…!

— Entendo seus sentimentos, e acredito que todos aqui compartilham de sua frustração… Mas, por enquanto, vamos respeitar o espaço dela. E, obviamente, um dia vamos reencontrá-la e fazer compensar esse tempo.

— Q-Quando… Quando isso acontecer, eu vou bater nela!

— Que demonstração de sentimento poderoso. Bem, se isso a fizer se sentir melhor, acho que ela não vai se importar de receber seus punhos furiosos.

Marie apertou a mão que segurava a sua com um pouco mais de força.

— … Eu tava pensando nela, mesmo. Mas também no irmão Ed. E fiquei imaginando se a decisão que tomei foi realmente a melhor. Tipo, se eu não deveria, realmente, ficar aqui um pouco mais.

— Se é o que quer.

— Aaaaai, às vezes você não ajuda também, hein! Eu tô querendo uma opinião aqui!

— Entendi, entendi. 

Luccas riu baixinho para a garota que se remexeu na cama, batendo a sola dos pés.

—  O que você quer fazer, Marie?

— … Eu… Eu não sei. 

— Você ainda quer sair daqui?

— Sim. Eu quero sair e viajar pelo mundo, mas tô me sentindo mal por deixar o Ed pra trás. E, ao mesmo tempo, tô com raiva da Ryota pelo o que ela fez. Se ela estivesse aqui, nada disso teria acontecido! O irmão Ed teria ficado mais calmo, com certeza.

Marie não sabia a intensidade do laço entre os dois, mas ouviu através do desabafo de Edward para Ryota no palácio, quando o antigo rei morreu, e como ela foi crucial para sua alma não se abater completamente à dor. Possivelmente, a pequena irmã sozinha não seria capaz de consolá-lo por desconhecer sua dor e trajetória, embora sua presença, segurando sua mão enquanto a antiga guardiã de seu irmão partia para ajudar outras pessoas, tenha sido crucial para sua estabilidade não ruir outra vez.

— … Eu quero que o irmão Ed seja feliz. Eu queria… Queria poder ter conhecido ele antes, quem sabe assim eu conseguisse ajudar mais. Mas não sou boa em ficar ouvindo os outros, e essas coisas. E não é como se ele fosse querer me contar nada. Ele parece o tipo de pessoa que fica guardando tudo pra si mesmo, pra não me magoar, mas isso só piora as coisas e me deixa preocupada.

— Entendo.

— … O que eu devia fazer, Luccas?

Marie sentiu sua voz reflexiva tornar-se melancólica, um pouco trêmula. Os sentimentos que abalaram seu coração emergiram quando os colocou em palavras.

— O-O que… O que eu devia fazer… Pra todo mundo ficar feliz de novo? O que… Eu posso fazer pra ajudar todo mundo que me ajudou…? Se eu não sou o suficiente pra isso, então… O quê?

Não eram lágrimas, mas uma frustração chorosa que escapava de sua boca. As palavras eram imbuídas daquelas emoções conturbadas, mesclando raiva e tristeza, que não sabiam para onde deveriam ser direcionadas.

Então, desabafou para uma das únicas pessoas que tinham sua confiança. E, enquanto esperava uma resposta para aquelas dúvidas, sentiu as mãos unidas serem erguidas, então movidas suavemente.

— O-O… O que tá fazendo?

— Isso.

— “Isso”, o quê?

— É isso o que precisa fazer.

Marie se calou, engolindo os soluços e fungando o nariz.

— Não entendi.

— É porque, pra nós dois, que somos próximos e conseguimos ficar juntos assim, é simples.

— … Não fala essas coisas melosas. E? O que tem nisso?

— Se está em dúvidas sobre o que precisa fazer e o que quer fazer, a solução é unir ambas em uma só. Desse jeito.

Luccas balançou as mãos outra vez.

— Unir o que eu preciso e quero fazer? Mas como faço isso se elas não podem ficar juntas? 

Ir para longe e realizar seu sonho de conhecer o mundo enquanto sua mente amadurecia e gerava novas experiências; ser útil para as pessoas que gostava, como ombro amigo. Como unificar dois desejos que estavam em lados diferentes? Como ser capaz de ouvir as lamúrias de alguém sendo que estaria à distância? Como seria capaz de ouvir suas lágrimas quando sorria realizando o próprio desejo? 

Mas Luccas balançou a cabeça, e a garota sentiu o movimento.

— O que você precisa e quer fazer não são coisas distintas, e nem pólos opostos. Elas podem andar lado a lado.

— Como? Como eu faço isso?

— Assim.

Luccas apertou um pouco mais os dedos unidos.

— Apenas precisa segurar a mão dessas pessoas importantes, dizer o que está sentindo, ouvir o que estão dispostas a dizer, e entrar em um acordo. Se vocês duas forem capazes de ouvir adequadamente o que cada um diz, tenho certeza que serão capazes de se ajudar.

— … Ouvir o que o outro tem a dizer.

— Sim. E, então, quando a pessoa se sentir insegura, ou quando você se sentir assim, pode segurar na mão dela. Não precisa dizer nada mais, pois isso vai mostrar que confia nela e que está tudo bem. Segurar a mão é um ato de carinho, e confiança. Não é agradável sentir o calor de outra pessoa quando se sente que está sozinho no mundo?

Luccas abriu um sorriso solitário que Marie não foi capaz de ver, mas o tom de suas palavras indicavam que ele mesmo havia passado por algo assim — e a pessoa importante em quem se ancorou foi a própria garota diante dele. 

Ryota segurou sua mão na cela uma vez para que ela não se sentisse abandonada pelo mundo, para que fosse capaz de sentir a vida e entender que ela ainda existia. Quando o frio, a umidade e a dor daquele ambiente pútrido das celas a cercaram, ela estendeu-lhe a mão e confiou um item precioso que transparecia calor e confiança sempre que se sentia mal.

Marie, com a mão esquerda, segurou o botão amarrado como um colar.

Luccas segurou a mão dela durante todos aqueles anos, e continuava a fazer isso agora mesmo, enquanto a ouvia. Quando seus dedos se tocaram, o calor que atravessou as palmas não foi desconfortável ou constrangedor, pois a intimidade entre eles era muito superior a isso. Eles se amavam, prezavam um pelo outro e sabiam que podiam sempre contar com seu apoio quando necessário. 

Marie sabia agora que quando ele segurou sua mão, era sinal de que seu coração precisava de um amparo. Agora que uma troca de olhares não era possível, o toque se tornou obrigatório para que essa transmissão ocorresse. 

— … Será que a Ryota tava segurando a mão do irmão Ed também?

Ela se perguntou se, enquanto ouvia Edward chorar e gritar, elas haviam dado as mãos. Se ela o abraçou e o consolou — não porque entendia suas dores, mas porque queria entender e fazê-lo ultrapassar aquela dificuldade. Não era sobre resolver problemas, mas sobre ajudarem um ao outro a encará-los para que, juntos, chegassem a uma resposta.

Era realmente muito mais simples do que parecia, mas infinitamente difícil de se fazer.

— O importante, agora, não é sobre ela, mas sobre você, Marie. Você vai ser capaz de segurar a mão dessas pessoas importantes, também?

Os lábios da garota se apertaram, e achou que fosse chorar. Mas diante daquela pergunta imbuída de carinho, e com um toque invisível em suas costas para que sua determinação não desaparecesse, Marie inspirou fundo e devolveu o aperto das mãos unidas.

— … Vou tentar.

***

Quando Edward ouviu as batidas na porta e a fala dos guardas de que havia visita, ele ergueu seus olhos dos papéis em sua mesa com uma expressão surpresa. Não havia tido qualquer marcação de horário, e certamente o tom de voz do homem que fazia ronda estava longe de ser ansioso, então não era uma emergência.

— Entrem.

Ainda assim, guardando os papéis recheados de requisitos da população, informações sobre suas pesquisas e aprovações que precisariam passar por seus olhos, o monarca de cabelos dourados ergueu as íris violetas escuras para as duas pessoas que adentraram o seu quarto.

— Que surpresa agradável.

— Há! Fala isso pra sua irmãzinha querida que ficou te procurando por esse castelo todo até te achar. Vê se fica em um lugar mais acessível!

— Sinto muito. Não consigo me concentrar na sala de reuniões e certamente meu trabalho não pode ser feito no salão do trono. Então, só pude recorrer ao meu bom e velho quarto.

— Bem, vou deixar passar dessa vez, mas só porque sou uma irmã muito, muuuito legal.

— Marie, não seja tão rude. Peço licença e desculpas por nos intrometermos em seu horário de serviço, Majestade.

Edward abriu um sorriso caloroso, mas levemente de cortesia, para as duas pessoas que estavam na porta, fechando-a em seguida ao entrarem. Marie, balançando o cabelo e com sua imposição natural, chegou batendo o pé e apontando o dedo, mas Luccas imediatamente corrigiu sua postura e inclinou a cabeça pedindo perdão.

O monarca, abrindo ainda mais o sorriso tenso, apenas balançou a cabeça para os lados.

— Está tudo bem. Acho ótimo ter alguém com tamanha energia ao meu lado.

— Viu só, viu só, Luccas? Vê se aprende a ser um pouco mais grato pela minha presença!

Era óbvio que ela estava apenas brincando, e seu tom de voz indicava isso, mas ainda assim era uma posição um pouco difícil de lidar considerando que estavam perante o rei.

— E a que devo a sua visita?

— Ah. Aaaah, eh… Bem, a-a gente tava querendo conversar com você, Ed.

— Entendo. Então, por que não nos sentamos um pouco? Posso pedir para que tragam café ou chá.

— B-Bem, hã…

Edward levantou-se e fez uma oferta casual, andando na direção das poltronas perto da lareira apagada, mas Marie parou no lugar e gaguejou. Foi uma resposta incomum que deixou o rei sem entender, mas Luccas apenas deu um tapa suave nas costas da garota que hesitou.

— Agradecemos, mas não queremos tomar muito de seu tempo. A Marie apenas queria conversar sobre um assunto, e não demorará muito.

— … Sim. Vai ser rapidinho.

Tomando a coragem após aquele empurrão, a garota assim falou sem gaguejar. Edward, ainda um pouco perplexo, baixou as sobrancelhas e estendeu a mão para que se aproximassem. Luccas pegou a mão da menina loira e a acompanhou até seu assento, deixando-a afundar na poltrona alta demais.

Adiante, Edward sentou-se, e Luccas fez o mesmo no sofá, deixando os irmãos um diante do outro. Embora Marie não pudesse enxergá-lo, através dos passos, voz e movimentos, era capaz de compreender seus arredores, embora ainda precisasse de um pouco de apoio.

Ela jamais admitiria em voz alta o quão constrangida ficava com aquele tratamento, mas não podia evitar. Era necessário até que pudesse lidar com aquilo devidamente sozinha. Luccas nunca pareceu incomodado com isso, no entanto, mas ainda assim, aquela sensação de dependência fazia seu estômago se revirar um pouco. Mas jamais seria ingrata por suas ações.

Quando pensava nisso, sua mente vagava para as noites. Ambos dividiam a mesma e dormiam segurando as mãos um do outro. Normalmente, isso não acontecia, mas desde que começaram a conviver juntos outra vez no palácio, Marie se sentia temerosa e tinha constantes pesadelos das celas durantes as noites frias. Odiava muito silêncio ou tatear algo sem encontrar nada. Também detestava quando chamava alguém e nunca respondiam. Era assustador. A fazia se sentir ansiosa, desesperada por alguma atenção. Embora soubesse que não estava mais dentro de uma cela, presa, a mente e o coração nunca trabalhavam juntos, e viu-se chorando sozinha algumas vezes.

Foi quando criou coragem para timidamente pedir para dormir ao lado de Luccas — e ele concordou de imediato, acolhendo-a. Aquele relacionamento saudável a fazia se sentir bem, e dormir sentindo o calor de outra pessoa acalmava o coração traumatizado. Ainda que o quarto fosse silencioso, sua audição captava a respiração daquele ao lado, então estava tudo bem. Ainda que estivesse tendo um pesadelo, a mão pequena era segurada pela grande para que soubesse que não estava sozinha. Podia encarar seus medos e acordar chorando, ele estaria lá para apoiá-la.

Era gratificante. Mas perceber que Edward nunca foi capaz de confiar seu coração completamente a alguém, e os únicos capazes de recebê-lo foram embora — um perdeu a vida, a outra tomou um caminho diferente —, a deixava angustiada ao ponto de querer chorar.

— Irmão Ed. Eu queria falar com você sobre a decisão que eu tinha tomado antes… E que te contei.

Era por isso que Marie queria ser capaz de fazer aquilo que Luccas indicou — alcançar seu coração solitário e estender-lhe a mão. Sabia que poderia não ser aquela com quem ele esperava contar, mas, ao menos, se fosse capaz de deixar claro suas intenções, que não eram falsas, talvez…

— Sobre sua partida, certo? Há algo que precise? 

— Não, irmão. Você foi muito gentil e nos ofereceu tudo o que eu precisava. E eu achei que precisava dizer "obrigada" de novo também, então… Obrigada. Mas eu não vim aqui pra dizer só isso.

— Muito bem.

Edward aguardou que a garota continuasse a falar, mas parecia que outra vez as palavras entalaram em sua garganta. Ainda que o tempo passasse, nada daquilo que estava preso saia. Apertando os lábios e relutando, agonizou internamente com os sentimentos que queria transmitir, mas não encontrava uma maneira.

Como deveria abordar aquele assunto? Como fazer com que aquilo chegasse até ele? Como seu irmão reagiria? E se ela falasse errado, e, por consequência, a interpretação também ocorresse de tal forma?

— Por acaso, o assunto em questão estaria relacionado a mim, certo? Posso interpretar que sua hesitação está relacionada ao receio de viajar, Marie?

— … Uh… Algo assim.

Ela ficou um pouco surpresa ao ver que o rei imediatamente conseguiu ler através de sua inação, então propôs-se a dar início ao diálogo. 

— Entendo. Acredito que consigo imaginar quais sejam os pensamentos em questão que devam estar lhe incomodando, mas gostaria de adiantar em afirmar que estou bem. Não precisa se preocupar comigo.

— … Uh?

Mas ela nem tinha começado a falar. Ignorante às suas dúvidas, Edward continuou:

— Fico lisonjeado, mas não gostaria que ficasse receosa em seguir seu sonho caso precise permanecer olhando para trás. Portanto, estou de acordo com sua partida e não voltarei atrás com a palavra que lhe prometi quando discutimos sobre isso pela primeira vez.

Ainda que não conseguisse enxergar, era capaz de sentir. E aquilo que se movia, por vezes aparecendo nas sombras, eram silhuetas coloridas representadas pelo chi da pessoa — a alma. O que envolvia aquela estrutura humanóide receptiva, sentada diante de si com os braços abertos, e um ar de convencimento, era um ser cinza.

Tal como as cinzas restantes de chamas que tudo queimaram, lambendo os resquícios daquilo que antes era uma estrutura forte. O que restou ali dentro não era nada mais que um vaga-lume que tendia a se apagar a cada dia, uma pequena luz que zumbia e ficava cada vez mais e mais neutro.

— Dito isso, não existe necessidade em se preocupar. Eu-

— N-Não!

Edward arregalou com os olhos quando a voz foi erguida ao ponto de superar uma exclamação, tornando-se um grito. Mesmo Luccas se surpreendeu com essa ação, mas Marie não conseguiu mais suportar a inquietação em seu peito. 

— Não, não, não! Tá tudo errado, desde o começo!

Ela se exaltou, gritou e colocou para fora a frustração. Os punhos ao lado do corpo se cerraram e a cabeça baixou, “olhando” para os próprios pés. Não era capaz de encarar aquela feição, ou melhor, aquele reflexo sentimental profundamente terrível. Era conturbado o bastante para engoli-la. Remexia seu âmago, seu interior, como se o revirasse ao ponto de querer gritar.

E foi exatamente isso o que fez.

— Aaaaah, que saco! Eu odeio isso! Odeio tudo, tuuudo isso!

— Marie, se acalme-

— Não! Cansei disso! Cansei de ficar com medo! Se for pra falar, vou fazer isso do meu jeito, e não quero nem saber! Cansei de ficar tentando achar um jeito mais fácil, então vou falar na cara dura mesmo e que se dane! Quero nem saber! E escuta aqui, irmão Ed!

Erguendo o rosto vermelho, Marie desviou das palavras de Luccas e apontou o dedo indicador para a alma cinza que latejava.

— Que ideia é essa de vir achando que sabe coisas sobre mim? Que bobagem! Desde quando eu me arrependo de alguma coisa, hein? Cê não sabe nada do que eu passei, e nem eu sei do que você passou, então a gente não pode ficar falando essas coisas um pro outro, sacou? Se eu tô chateada, com raiva ou triste, quem vai dizer isso sou eu, e não você!

Pareceu que a garota havia desferido um soco na face dele, pois o rei congelou completamente no lugar, arregalando os olhos. Era a primeira vez que a brincalhona porém atrevida Marie falava daquela forma com ele. Edward, naturalmente, ficou ainda mais perplexo, e nada conseguiu dizer enquanto a ouvia falar.

— Do mesmo jeito, quem vai dizer o que tá sentindo não sou eu o Luccas, mas você mesmo. Se tá querendo compartilhar essa dor, então fala de uma vez, entendeu? Não vou ficar enrolando o papo. Eu tava, sim, chateada com toda essa porcaria que aconteceu, e fiquei me enrolando por meses, mas agora decidi fazer diferente.

Ainda com o fervor no peito e o desgosto por aquela alma cinza, ela se colocou de pé e marchou para a frente do irmão, que apenas assistia em silêncio, ficando ainda mais surpreso ao vê-la se aproximar sem qualquer ajuda de Luccas.

— Irmão Ed, você tá se sentindo sozinho?

Ele engoliu em seco, sem responder.

— Tá se sentindo abandonado pelo mundo? Como se tivessem largado a sua mão do dia pra noite? Como se todo mundo que gostasse de você desaparecesse do nada? Tá se sentindo impotente, parecendo que tá carregando um peso absurdo nas costas, de uma coisa que cê não queria ter? É isso o que tá sentindo agora? Tá se sentindo um coitadinho que precisa de ajuda? É isso?

Luccas deu um passo adiante, ameaçando intervir nas palavras da garota que ainda falava com tom alto. Pareciam completamente maldosas, com o objetivo de ferir ainda mais o coração machucado. Edward não retrucou suas palavras ou expressou algo além de uma melancolia ainda maior, incapaz de corresponder àquele sentimento de fúria.

Então, Marie continuou, cruzando os braços.

— Se é isso o que tá passando pela sua mente e tá ferindo aqui — ela tocou acima do peito esquerdo, apertando o tecido — Vou te dizer que eu passei pela mesma merda. E até agora tá sendo difícil de lidar. Provavelmente, não conseguiria fazer isso sozinha, e nem sei dizer o quão corajoso e forte cê tá sendo por seguir com isso durante tanto tempo.

A voz, que antes era quase um grito ao mundo, agora tornou-se um murmúrio de tristeza que arranhava a garganta. Edward não conseguiu desviar o olhar do rosto da irmã, dos lábios expressivos, da voz aguda, dos gestos claros e temperamento forte que não hesitava diante das outras pessoas.

— De novo, não vou ficar comparando o que cada um de nós passou, porque não vem ao caso. Eu sou eu, e você é você. Não tô aqui pra ficar comparando isso, e quem mede dor dos outros é nada além de um graaaaande idiota… Mas sabe de uma coisa? Isso que cê tá fazendo me irrita muito! Muito, muito mesmo!

— … O que estive fazendo?

— Sim! O que esteve fazendo ao longo desse tempo todo. Sabe o que é? 

— … Não sei, me desculpe.

— É isso! É exatamente isso que me deixa pistola da vida!

Marie apontou o dedo para a face do irmão e rugiu outra vez. A outra mão ainda segurava o peito machucado, o coração cheio de feridas naquele corpo infantil de doze anos de idade.

— Eu odeio pessoas que ficam dando desculpas! Odeio mais do que tudo no mundo!

Luccas arregalou os olhos e paralisou seus passos, agora a menos de um metro dos dois. Edward não reparou nisso, e apenas observou a extensão das palavras de Marie.

— Quem fica lamentando, pedindo desculpas, resmungando sozinho e reclamando pros outros não é nada além de um fraco incompetente! Fica chorando sozinho, se remoendo e pedindo socorro com essa cara de cachorro perdido não vai te levar a lugar nenhum, entendeu? Ou você tá querendo caridade? Tá querendo ser elogiado pela sua dor? É isso?!

— … Não.

— Então, o quê? Se não é isso, então o quê?

— É um pouco difícil de explicar.

— Para de enrolar e fala logo! Eu não tô nem aí se é difícil ou o quê, só bota pra fora o que tá nessa sua cabecinha pequena que acha que pode resolver as coisas sozinho e depois fica se remoendo pelos cantos! Se vai ficar chorando, pelo menos chora depois de ter se esforçado ao máximo! Quando colocou tudo pra fora, quando contou pra todo mundo e se esforçou, quando deu seu melhor pelo o que queria e mesmo assim não deu… Se vai chorar… Se vai chorar, pelo menos faz isso tendo feito alguma coisa pra mudar a sua situação, merda!

Ela sabia que era difícil. Não ser capaz de ajudar quem gostava, ainda que desse seu melhor ao ponto das mãos encherem de bolhas; não poder compensar tudo o que fizeram quando estava mal, pois não lhe foi permitido e sequer desejaram dar-lhe essa oportunidade por subestimarem seu potencial; por choramingarem quando ainda havia muito a ser feito; desistir quando ainda havia um raio de esperança para a sobrevivência e a luta.

Marie relutou, arranhou e chutou tudo aquilo como um animal feroz que queria viver. Ela tinha um sonho, e vontades simples. Mesmo que fosse incompetente em tudo, que fosse rude e arrogante, que não conseguisse entender os sentimentos alheios a menos que fossem falados diretamente pra ela, que se irritasse com facilidade daqueles que se fechavam em suas conchas quando sequer tentaram sair dela pra encarar o mundo… Não conseguia deixar de lado uma pessoa dessas.

Não porque queria esfregar na cara de alguém o que passou, porque isso não vinha como justificativa para o que diria. Ela apenas queria deixar claro que essa pessoa não estava sozinha, e ela mesma demorou muito tempo para entender que receber as mãos que eram estendidas não era um ato de fraqueza, mas de força.

Enquanto o mundo elogiava aqueles que escondiam os sentimentos para parecerem fortes, aquilo nada mais era que um ato disseminado de covardia — portanto, aqueles que se tornavam capazes de confiar esses sentimentos guardados por tanto tempo a alguém eram verdadeiramente dignos de orgulho por sua coragem.

— … Eu apenas não sei… Como colocar em palavras. Não estou dizendo que tenho medo… Na verdade, eu tenho, e muito. Mas… Realmente não sei como contar, independentemente do quanto tente, nada vem à toa. 

— … Se não consegue falar, então, pode me dizer de outro jeito.

— Outro jeito?

— Me ensinaram… Me ensinaram que para transmitir os sentimentos nem sempre precisamos usar as palavras. Às vezes, quando você se sente sozinho, pode só segurar algo que é de muito valor e que dê coragem pra passar por essa dificuldade…

Marie passou a mão que segurava o tecido da roupa para o colar com o botão dourado, abrindo um sorriso.

— … Ou, então, pode ser assim.

E então, com a mão direita, pegou a esquerda do irmão que tremeu ao toque do corpo quente dela. Ergueu os “olhos” para a alma cinza que se mesclava em trevas, mas que apenas parecia carecer de tempo e atenção.

— Se for difícil de explicar, então bota pra fora como conseguir. Se for difícil de encontrar palavras, então segura a minha mão e me deixa te ajudar. Se quiser que os outros possam compartilhar a sua dor para aliviar o peso, mas não consegue falar, é só fazer algo que os dois sejam capazes de entender e esse sentimento vai chegar até essa pessoa importante.

— … Essa pessoa… Importante?

Marie assentiu, sentindo a venda começar a umedecer.

— Sabe… Quando eu tenho medo de noite, porque fico lembrando de coisas ruins, o Luccas segura a minha mão. E ele faz isso até sem pensar, quando ainda tá dormindo e babando no travesseiro que nem uma criança.

Luccas fez uma expressão desgostosa, mas nada disse enquanto sentia as bochechas queimarem em vergonha.

— Então, ele não precisa estar acordado pra me dizer alguma coisa, e eu mesma não ia ter coragem de tirar o sono dele só por isso. Até eu tenho um pouco de vergonha… Mas sei só de segurar a mão dele que ele tá ali pra mim, entende? 

Marie segurou a mão de seu irmão delicadamente, um pouco tímida. A mão pequena era quente em comparação à fria do mais velho, que sentiu os dedos cálidos dela em contrapartida aos seus, macios.

— Por isso, o que tô querendo te dizer, irmão Ed… É que é pra contar comigo, também. Eu quero me tornar essa pessoa importante, tendo sua confiança pra ouvir o que tá sentindo, ou pelo menos ficar do seu lado quando precisar de alguma coisa pra se apoiar. Podemos ficar um minuto, uma hora, um dia inteiro sentados sem falar nada e de mãos dadas, se quiser. Desde que isso te dê coragem pra encarar essa dor, vou fazer isso de bom grado… E depois te dar uma bicuda nas costas pra enfrentar essa coisa feia dentro do seu peito, tendeu?

Marie riu sozinha, socando acima do próprio coração fazendo um som oco. E, mesmo que não pudesse ver a expressão dele, ela sentiu seu sorriso — um verdadeiro — desenhar-se no rosto.

— Você é realmente muito forte, irmãzinha.

— Não sou? Sou incrível, né? Mas eu só sou uma pessoa assim tão maneira porque tenho pessoas ainda mais incríveis comigo, saca? 

— Acho que entendo o que quer dizer.

Edward ainda falava com um ar melancólico, mas parecendo mais reflexivo do que solitário enquanto olhava para as mãos timidamente unidas. Passaram-se alguns segundos, com a garota aguardando pacientemente, bem como havia dito que faria, até que as palavras do monarca saíram:

— … Ainda que seja constrangedor, me sinto sozinho. Muito, muito sozinho. Desde que meu pai morreu, sinto como se um pedaço de mim tivesse sido arrancado, deixando um grande buraco que apenas fica maior a cada dia.

Marie assentiu, mas ela sabia. Podia, literalmente, enxergar aquilo.

— Não é nada digno de um rei. Eu deveria ser aquele que está sempre certo do que está pensando, alguém em que todos possam confiar. Precisamos ser a base que erguerá a moral de todo o povo, abalado pelo acontecimento anterior da coroação. Mas… É um pouco difícil.

— Uhum.

— Acho… Talvez tudo o que eu precisasse fossem respostas. Mas percebi que talvez eu nunca vá consegui-las, e acabei entrando em um ciclo vicioso de pensamentos… Como posso explicar?

— … Eu entendo.

Marie se sentou no carpete e sussurrou assim para o irmão que se atrapalhava com as palavras, parecendo nitidamente constrangido por precisar pensar ativamente sobre isso. Se nem ele mesmo era capaz de entender, dizer para outra pessoa era ainda mais cruel — mas, ao mesmo tempo, permitiria enxergar a situação de outro ângulo, e, consequentemente, encontrar uma resposta diferente para este problema.

— … No fim, eu não deixei de ser o mesmo garoto assustado com os próprios sentimentos e responsabilidades que a família colocou em meus ombros. Jamais seria capaz de desonrar esse trabalho, muito pelo contrário. Mas, talvez, o que me falte seja alguém para compartilhar este fardo, assim como me disse, irmãzinha.

— Uhum.

— Bem… Bem, ainda me deixa um pouco constrangido contar tanto para você, que não sabe do que aconteceu… E censurar isso foi uma decisão egoísta minha. Sinto que devo desculpas a respeito disso.

Não houve resposta.

— Por acaso… Você poderia me contar?

— Sobre o quê?

— Sobre tudo.

Edward baixou um pouco as pálpebras e olhou com carinho para a garota que agora conversava calmamente com ele, sentada aos seus pés. Então, deslizou pela poltrona e aconchegou-se ao seu lado, sem desgrudar as mãos que, lentamente, eram esquecidas como um ato vergonhoso entre dois irmãos que jamais tiveram a oportunidade de se conhecer.

— É claro. 

— Mas será uma história por outra.

— … Se estiver confortável, eu ficaria muito feliz em poder escutá-la a noite inteira. 

Edward abriu um sorriso ainda maior para a irmã que fez um desafio que tirou de Luccas uma risada, que se posicionou para caminhar quarto afora.

— Aparentemente, esta conversa durará bastante tempo, então tratarei de trazer um pouco de café para nós.

— Com muuuuito açúcar!

— Amargo para mim.

— Nossa, irmão Ed. Como cê é sem graça. Digno de um adolescente que fica querendo parecer adulto.

— Que cruel.

— Há! Eu só falo a mais pura verdade, e se me equivoquei, é apenas o mundo que errou!

Enquanto ouvia a troca de palavras entre os irmãos Fiore se distanciar, Luccas saiu do quarto do rei com um sorriso de ponta a ponta e vagou a passos leves na direção da cozinha real, quase como se flutuasse com o sentimento de alívio e orgulho que percorria seu corpo.



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