Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 9 – Arco 4

Capítulo 03: Caça ao Conhecimento

Os corredores do palácio, conforme seus passos os atravessavam a uma velocidade regulada, eram ocos e solitários. O palácio real, contornado por guardas a cada esquina, eram cumprimentados por um aceno de cabeça sutil. Pequenas formalidades diárias que, em respeito ao trabalho deles, Edward começou a distribuir. Antigamente, talvez fosse contra o comportamento, induzindo que era desnecessário. 

Entretanto, muito tempo havia se passado, e ele mudou. Na verdade, todos eles mudaram.

Longos cinco meses arrastaram-se, e o príncipe — ou melhor, agora o rei — se sentia um pouco menos preocupado com os próprios pensamentos. Havia se acostumado a eles, então era capaz de organizar a prioridade do que estava diante dos seus olhos àquilo que ainda insistia em perturbá-los nos cantos da mente.

Edward Fiore ainda não aceitou a morte de Fanes Fiore.

Tamanho foi o choque de vê-lo tomar aquelas ações e proferir palavras que machucaram seu coração, mas, certamente, o que feriu ao ponto de criar tamanha cicatriz foi a expressão de serenidade enquanto seu corpo caía do palácio. 

Tantas vezes ele sonhou com aquele momento. Revivia perfeitamente a luta, seus movimentos e sentimentos conturbados. Não importava o quanto seu “eu” gritasse para o outro que reproduzia o cenário das memórias, jamais seria capaz de mudar o passado. Não poderia parar o tempo e salvá-lo. Jamais conseguiria perdoá-lo, ou se perdoar. 

Algumas vezes, estendia a mão para ele, e caia ao seu lado. Nessas cenas, via-o ligeiramente surpreso com a decisão, então uma expressão de felicidade mudando para tristeza via-se em seu rosto. Edward não sabia a razão, mas acreditava que aquela seria a reação do pai caso Ryota não tivesse sido veloz o bastante para segurá-lo.

Seu corpo, inconscientemente, com o pavor e a tristeza, lançaria-se atrás do pai. Não haveria ninguém para salvá-los. Mas, no mínimo, ambos partiriam juntos — dois mentirosos, que arrastaram suas correntes até o fim. 

Sentia que Fanes ficaria abalado. Sua decisão de sacrificar-se ao final, sozinho, dando espaço ao filho para tomar o trono “tão ansiado”, era como o papel de um herói corrompido que leria nos livros. E talvez, na mente do antigo rei, era exatamente assim que se via.

Mas Edward não se importava. Ele apenas queria que seu pai não tivesse tomado uma decisão tão estúpida, deixando-o sozinho para trás. Queria ser capaz de consertar as coisas. Abaixar a espada, chorar e implorar para que retirassem suas estúpidas máscaras. Abandonassem aquele cenário de destruição, interrompendo as mortes que apenas cresciam e se abraçassem, perdoando e entendendo um ao outro.

Que se dane o orgulho. Quem se importa com o que seus “eus” passados diriam? Que se danem, também. Edward choraria e pediria perdão um milhão de vezes se isso pudesse convencê-lo — mas, em algum lugar de seu coração, sabia que não conseguiria mudar seu pensamento.

E Fanes escolheria a morte em honra a algo ao invés de perdoá-lo — escolheu seu fim ante recomeçar ao lado do filho.

Por quê?

Aquela era a pergunta que sempre fazia quando olhava para alguma imagem de Fanes. As pessoas ainda lembrariam dele como uma boa pessoa, alguém com coração e palavras gentis, capaz de comover com facilidade todos a sua volta. Alguém com sorriso fácil e personalidade dócil — mas ainda optou pela própria morte.

Por quê?

A coroa que pesava em sua cabeça parecia conter um ínfimo valor perante o aperto em seu coração. A sensação de vazio, como se algo crucial faltasse.

Edward apenas percebeu o valor de seu pai ao perdê-lo — era aquele cenário relativamente comum, mas que mesmo sendo tão óbvio, foi incapaz de enxergar até vê-lo com os próprios olhos e sentir com o próprio coração.

Ainda estava em fase de aceitação, tentando entender o que havia visto. Possivelmente, caso Ryota não estivesse ao seu lado para acordá-lo para a realidade, consolando-o como pôde, certamente estaria pior. 

Talvez tivesse, em meio ao pânico e choque, lançado-se daquelas alturas, também.

Talvez não fosse capaz de carregar tamanho peso em seus ombros sozinho e escolhesse um caminho diferente.

Mas ele não era o único que estava sofrendo. Não poderia ser hipócrita em olhar para os próprios machucados sem considerar os daqueles que estavam ao seu redor.

A destruição gerada pela Ritus Valorem foi inexplicável. Houveram perdas de construções e casas, mas as perdas de familiares foram grandiosas ao ponto de revoltas internas ocorrerem. Ainda que a segurança da capital fosse reforçada com a presença da corte, seus guardiões e a guarda real, não foi o bastante. 

Criaturas de porte e estruturas estranhas surgiram, caçando seres humanos como suas presas. Foram encontrados corpos destroçados, ossos esmigalhados e sangue sugado como se fossem água. O estado de seus corpos era terrível demais para ser compartilhado com os familiares — alguns deles possivelmente feridos o bastante para perderem a vida. Entretanto, com a presença da curandeira de Fuyuki, todos foram salvos.

… Ao menos, era o que ouviu falar. Entretanto, alguns feridos haviam sido amaldiçoados pelo destino, perdendo para o desgaste e a falta de chi, levando-os a uma morte lenta, fria e solitária. 

A mente das pessoas ficou sensível, e sua raiva era óbvia. Ainda que a culpa não fosse da nobreza, muitos apontaram o dedo para aqueles que estavam em cima, acusando-os de incompetência. Era uma revolta popular, embora pequena, que precisava desprezar algo que fossem capazes de alcançar.

Com a Ritus Valorem sendo um marco sombrio, era esperado que a população ficasse instável. Em contrapartida, Edward, com a coroa em sua cabeça e usando como fonte de determinação para tomar partida de suas ações a necessidade de corresponder a essas pessoas, ergueu seu rosto e começou a trabalhar.

Ao lado de sua corte e dos conselheiros, bem como a guarda real, o monarca projetou a reconstrução da cidade e o apoio que as pessoas precisavam. Além das construções, que iniciaram a fase de reforço, erguendo as paredes que foram derrubadas e arrumando as pavimentações. 

Enquanto não poderiam voltar para suas casas, Edward alojou as vítimas em locais seguros para que tratamentos fossem estabelecidos e pudessem acalmar-se. Disponibilizou alimentação e estadia, além de pedir para todos terem paciência com aqueles que ainda estiverem em fúria com o que aconteceu. Era preciso tempo, e tomarem a dianteira para ajudá-los os faria conter a frustração e angústia que maculavam seus corações.

O mesmo se aplicava ao orgulho de todos que se reuniram para ajudar as população, mas enquanto não demonstrassem falha em suas determinações de mudar o que aconteceu, as pessoas não decaíram. Era necessário alguém acima deles para manter a força, para guiá-los e incentivá-los — caso contrário, como poderiam imaginar um futuro? Como poderiam ser capazes de lidar com as perdas? De temer estarem em suas casas em segurança caso outro atentado terrível ocorresse?

Edward se prontificou e, ao lado de todos do palácio, trabalhou para que fosse possível. Inspirando fundo para ganhar coragem, saiu às ruas e mostrou seu rosto ao povo — a mesma face que ficou escondida dessas pessoas por dezoito anos atrás do grande palácio.

Constrangimento tingia sua face ao perceber que encarar aquelas pessoas era muito mais do que apenas aceitar suas dores, eram também ser capaz de consolá-los e manter-se em pé. O trabalho que os médicos e curandeiros faziam era digno de nota. Suas mentalidades precisavam ser como ferro, impenetráveis, mas maleáveis para se comover com aqueles que queriam receber um abraço, compartilhando sua dor.

Enquanto a cidade era movimentada lentamente para reconstruir ao que era, Edward não permaneceu parado. Sabia que havia muito mais o que poderia fazer, e manter sua mente e corpo ocupados o ajudava a lidar com as preocupações. 

Meu pai sabia sobre a Ritus Valorem… Mas por quê?

Outrora, ele havia decidido perguntar a Fanes sobre a verdade. O que escondiam, e porquê. Entretanto, aquelas questões não receberam uma resposta adequada, e apenas mais dúvidas surgiram.

Ele precisava saber. Precisava entender quem eram, porque atacaram a capital real, o que tinham contra Edward — para estarem impedindo sua coroação — e a razão para seu pai estar ligado a eles.

Portanto, conforme os dias iam passando, dedicou-se ao estudo. Não haviam muitos retratos sobre aquele grupo, mas as informações contidas foram capazes de saciar minimamente sua curiosidade. Em contrapartida, enquanto suas pesquisas eram dedicadas a todo tempo livre, compartilhou com todos a respeito, explicando que, agora, aquele tabu não poderia mais existir.

Ao menos entre a corte, entre eles, para proteger as pessoas que estavam sob seu domínio, precisavam possuir conhecimento e protegê-los. Quanto mais informações fossem disponibilizadas, mais seriam capazes de se mover e garantir a segurança de todos, bem como compreender suas ações.

— Não encontrará nada procurando em livros.

Quem o parou enquanto vagava pela biblioteca, carregando retratos históricos antigos e exclusivos, foi a duquesa Minami. De braços cruzados, ela interceptou o monarca, que ergueu as sobrancelhas em sua direção.

— Perdão por interrompê-lo, Majestade.

— Sabe que não precisamos nos tratar com tanta formalidade quando estivermos a sós.

Edward abriu um sorriso saudoso para ela, e Fuyuki correspondeu. Ambos eram companheiros de trabalho, mas por compartilharem uma pessoa e interesses em comum, poderiam ser considerados como amigos que se cruzavam de vez em quando no corredor.

Fuyuki não conseguia deixar de tratar o monarca com educação, por mais que ele pedisse. Era provavelmente o tipo de coisas que apenas alguém despreocupada como Ryota faria — e talvez seu pedido estivesse relacionado a essa saudade. Alguém para conversar sem temer as respostas ou precisar se preocupar com o status que possuíam, mantendo uma relação de iguais.

— Então, Edward — a duquesa, ainda assim, ajustou-se aos pedidos dele — Estou ciente de que esteja buscando informações sobre eles, mas não encontrará nada útil nos livros.

— Entendo. Estive acreditando que talvez houvesse menções sutis, embora não tenha sido capaz de encontrar.

A dupla conversava aos sussurros na biblioteca, não mencionando o nome da Ritus Valorem sem saberem que poderia estar ouvindo.

— Fiz o mesmo há alguns meses, e não importava o quanto tentasse conectar possibilidades, elas eram nada além de bases sem sentido ou origem.

— A senhorita esteve pesquisando sobre eles durante algum tempo, certo? Me recordo de ter mencionado isso em nossa reunião.

Fuyuki, ainda que internamente constrangida, revelou que havia conseguido informações sigilosas após um longo período dedicado ao estudo daquele grupo. Entretanto, eram informações fracas e que não os levariam muito adiante, mas tudo o que havia sobre eles seria capaz de ajudá-los a encontrar um norte sobre como deveriam atuar diante daquelas pessoas.

— Sim. Enquanto ainda buscava a localização da Entidade da Insanidade, minhas pesquisas me levaram a crer que os incidentes envolvendo-a estavam de acordo com alguns relatos de destruição causados isoladamente.

— Se refere aos casos envolvendo os mors, certo?

— Exatamente. 

— A senhorita disse que ouviu falar sobre serem criaturas que se assemelhavam a animais enlouquecidos, mas que jamais foram capazes de comprovar a hipótese. Entretanto, tendo os visto pessoalmente e através dos relatos, parece que há algo muito maior sobre isso.

— Sim. Fiquei igualmente surpresa quando descobri que o nome atrelado às criaturas que destruíram a capital eram os mesmos dos experimentos… E um pouco mais propensa a imaginar que o mesmo acontecia com seres humanos, mas minha hipótese se confirmou logo em seguida.

A duquesa se recordava não apenas da destruição causada pelas criaturas que possuíam grande semelhanças com animais, embora visualmente fossem horrendas. Entretanto, ao reparar que haviam mais delas, e de diferentes tamanhos e estilos, principalmente ao enfrentarem duas delas lado a lado, logo reparou que havia algo de errado.

— Entretanto, o que mais me surpreendeu não foram meus questionamentos ganharem uma resposta, mas a origem delas.

— Sim. Ainda estou um pouco chocado que a Maga Veridian soubesse tanto a respeito daqueles seres. 

— Me parece um tanto suspeito confiar em suas palavras a rigor, mas não posso apontar o dedo sem descreditar a mim mesma, que sabia parcialmente das coisas que ela disse.

Fuyuki recostou-se contra uma mesa da biblioteca e suspirou. Edward colocou os livros que estava carregando sobre a área plana, refletindo silenciosamente. 

— Como alguém que passou quase dois anos estudando este grupo, qual sua opinião?

— A mesma que lhes contei durante a reunião — Fuyuki fechou os olhos, lembrando-se das palavras ditas — Suponho que suas ações sejam fundadas em algum objetivo maior, localizado para o futuro, e não ao presente. Ainda que a necessidade não de impedir a coroação, mas atrasá-la, e o saque da Fortaleza, sejam alvos de suspeitas grandiosas para mim.

Quando analisados, as atitudes tomadas pelo grupo nomeado Ritus Valorem pareciam descrer de uma série de bases. Por que um seleto número de pessoas impediram um evento grandioso como a coroação durante a cena em questão, e não antes? Se o objetivo era impedir que Edward assumisse o trono, por que não tomaram sua vida antes? O que havia de valioso em distrair a todos com fugitivos, criaturas pelas ruas e um sacrifício do antigo rei — que estava possivelmente conectado com a Ritus?

A invasão à Fortaleza, local em que guardavam relíquias de valor, era um cenário imaginável. Estavam em busca de algo que fora “tomado” deles — O Tigre Branco do Oeste. Portanto, invadiram o local para tomá-lo de volta. Entretanto, por que apenas o levaram, e nada além disso? Por que criar um cenário tão chamativo no palácio enquanto invadiam, enviando pessoas mascaradas como sacrifícios para tomar tempo?

— Da mesma forma que a Insanidade agia, este grupo atua com algum objetivo em mente, mas seus métodos são um pouco semelhantes, não acha?

— O que quer dizer?

— Os atentados, as invasões, os cenários propositalmente chamativos… Não aparenta que estão fazendo isso com o objetivo de chamar nossa atenção?

Fuyuki arqueou uma das sobrancelhas para as reflexões sussurradas do rei, apertando ainda mais os braços cruzados.

— Mania e Shai não cometiam atentados com o objetivo de apenas exterminar pessoas que estivessem ao seu alcance, mas faziam isso da forma mais cruel possível. Se o objetivo fosse apenas uma chacina, por que colocar fogo nas cidades? Sim, existe a justificativa de limpar seus rastros, mas não seria essa uma forma um pouco irracional?

— Bem, eles poderiam pensar em outras maneiras de esconder seus passos. Supus que fossem apenas coincidências relacionadas às suas personalidades conturbadas, mas, talvez… 

— Se a origem dos ataques e seu objetivo coincidem, mas os métodos são igualmente vistosos, deve haver uma razão. Justificaria a razão de atacarem quando os olhos de todos estavam na coroação, em mim, ao invés de um momento em que eu estaria desprovido de seguranças.

— … Está supondo que eles desejavam criar pânico e caos propositalmente?

— É apenas uma possibilidade.

Fuyuki engoliu em seco com o raciocínio de Edward e franziu ainda mais a testa bonita. Houveram suspeitas, no passado, de que algo assim pudesse estar acontecendo, mas não era como se existisse uma justificativa para isso. O que eles ganhariam criando caos popular? Não era como se as pessoas não soubessem da existência deste grupo semelhante a uma seita, e que seus cuidados eram difíceis de serem lidados.

Se o caminho traçado tivesse como meta acabar com a confiança das pessoas na nobreza e na guarda, certamente existiriam meios diferentes de atingir este objetivo — mais discretos e cruéis. Expondo o histórico de famílias da nobreza, que cometiam atos rudes contra seus próprios familiares, gerando revoltas e “limpezas” no histórico; passados em branco a fim de esconder segredos profundos; cicatrizes entre países marcadas por traições e tensões que jamais desapareceriam graças ao ódio e orgulho que cada líder de seu país carregava… 

Entretanto, se aquele não era o objetivo, então, qual seria? Por que gerar tamanho conflito? Por que mostrar tantas cartas? Por que causar destruição, mortes diantes dos olhos das pessoas? Os atentados possuiam algum objetivo além da destruição em massa via as personalidades e mentes colapsas? 

… Estariam os “índigos” relacionados a este fim? Mas o que essa palavra significava? Por que buscar pessoas com tal qualificação? E com que propósito?

— Sinto muito por instigá-la tanto.

— Ah?

— Acabei me esquecendo de que a senhorita está igualmente atarefada, então pelo desculpas por ter sugerido uma conversa tão profunda.

— Não se preocupe. Particularmente, embora seja um pouco arrogante dizer isso, meu hobby sempre foi brincar de detetive. Eu gostava de pesquisar e conectar informações, e talvez isso estivesse relacionado ao fato de que jamais me contento com respostas pela metade. Desde o evento de quase dois anos atrás, estive profundamente ligada às investigações criadas e desenvolvidas por mim mesmo. Cheguei ao ponto de me olharem como se estivesse obcecada pelas Entidades e este grupo… Estou sendo inconveniente outra vez.

Fuyuki abriu um sorriso torto e frustrado ao perceber que começou a vangloriar-se de algo verdadeiramente cruel. Este era um costume terrível dela. Precisava aprender a ler um pouco melhor aquilo que as pessoas desejavam ouvir, e não o que precisavam ou o que achavam que poderiam ter interesse. 

Aquele tipo de pensamentos geralmente afastava-a dos outros, como alguém arrogante ou de personalidade fria. Sentir-se superior por descobrir algo que envolvia a morte e a dor de tantas pessoas — inclusive a dela — era uma verdadeira vergonha.

— Agora, quem está se sentindo constrangida sou eu.

— Acho que ambos estamos, então.

Rei e duquesa sorriam amarelo um para o outro, até que Edward piscou, parecendo recordar-se de algo, e disse:

— Antes, a senhorita disse algo sobre não encontrar nada nos livros…

— Sim.

— Por acaso, tem alguma ideia de onde posso conseguir mais informações sobre este caso? Não importa o que for, gostaria de saber.

Ao reparar na expressão de incerteza dela, o rei deu um passo à frente e assim pediu para incentivá-la a falar. Por um instante, supos que ela apenas recuaria, dizendo que era estúpido, mas Fuyuki colocou a mão no queixo, murmurando:

— Sua Majestade Fanes estava, de certa forma, envolvida com a Infração Hera, certo?

— Ao que tudo indica, sim.

— Quantos poderiam saber desta informação?

Edward afinou os olhos, encarando a duquesa.

— … Suponho que ninguém. Não creio que meu pai fosse conversar sobre esse assunto tão importante com qualquer um.

— Não, existe alguém.

— … Ah.

Edward arqueou ligeiramente as sobrancelhas e Fuyuki franziu a testa em reflexão pesarosa. 

— Está se referindo a Miura Akai.

Não foi uma pergunta — foi uma afirmação dura, ríspida. 

O relacionamento que a corte possuía com a família Akai era difícil. Ainda que fossem uma família famosa por suas habilidades e comprometimento, muito se comentava sobre os rumores de serem assassinos de aluguel. Era perceptível apenas por seu olhar e posicionamento que não pensavam como humanos comuns.

E Miura, o antigo guardião da família real, e o braço direito de Fanes Fiore, era especialmente sociopata. Seu comportamento perante mortes e possibilidades de sacrifícios eram cruéis e frios. 

Edward nunca foi especialmente próximo ao homem, sempre desgostando dos arrepios que sua pele sentia ao se aproximar de um Akai. Havia um sentimento de desconforto grande o bastante para desconfiar da reputação de lealdade de qualquer um deles — preconceito esse quebrado ao conhecer Sora e Kanami, os filhos de Miura. Ainda que tivessem sido criados sob o mesmo teto, cultura e tradições, seus corações foram moldados para permanecerem unidos, e foi esse laço que os mantiveram sãos por tantos anos naquela família.

Em contrapartida, Miura, possível futuro patriarca após a aposentadoria — ou melhor, a morte de Shin Akai —, era meticuloso e ardiloso. E, acima de tudo, desumano. Ainda assim, por alguma razão, Fanes Fiore, uma pessoa completamente oposta às crenças e personalidades dele, o contratou. 

Estranhamente, era quase como se ambos se dessem bem. Miura não agia com instintos provocativos para com seu mestre ou demonstrava hostilidade. Suas interações poderiam até mesmo ser vistas como amigáveis — e possivelmente, eram. Fanes sempre foi um homem gentil e misterioso, enquanto Miura era frio e afiado. Como se essas personalidades combinassem, tal como preto e branco, água e óleo, ambos se uniram.

Edward não conhecia Miura bem o bastante, ou seu relacionamento com o pai, para deduzir o quão leal eles foram um ao outro. Entretanto, o ex-guardião lutou contra quatro pessoas, quase levando-as à morte — duas delas sendo os próprios filhos, deixando um em estado de PTSD e o outro em profunda depressão. 

Poderia alguém assim, que maltrata a própria família, jurar seu coração a um mestre?

— Se existe uma possibilidade, ainda que pequena, eu quero usá-la. Falarei com Miura.

— Suponho que não deva saber, mas os Akai chamaram membros de sua família para se reunir ao fim deste ano. 

— Mesmo?

Edward arqueou as sobrancelhas, surpreso. Fuyuki abriu um sorriso divertido à reação dele.

— Sim. Não sei qual o intuito, mas Sora e Kanami estarão indisponíveis. E, possivelmente, Miura também. 

— … Entendo.

— Entretanto, posso repassar o recado ao meu guardião e pedir para que chame Miura para o palácio assim que possível.

Ouvindo a proposta, o rei fez uma expressão amarga.

— Isso seria muito cruel com o Sora. 

— Talvez… Mas se faz parte de seu trabalho, ele não se importaria. É assim que os Akai… Que eles dois são, afinal.

Fuyuki parecia ter orgulho quando falava de seus guardiões, de sua elite — isso deixou Edward um pouco enciumado. Quase sentindo inveja daquele relacionamento repleto de confiança. Ainda que tempos difíceis se passassem, todos eles compartilhavam um laço inquebrável, crescido e moldado à base das dificuldades e superações.

Edward esperava encontrar pessoas assim para estarem ao seu lado, também.

Quando o sentimento de solidão e a memória de Ryota como sua guardiã iluminou sua mente, ele sacudiu a cabeça para os lados e se concentrou.

— Então, se puder, ficarei agradecido se repassasse a mensagem à ele.

— Certo, assim o farei.

A dupla, que dialogava, caminhou para fora da biblioteca. Ainda dentro do palácio real, o rei olhou para os arredores e, sentindo que não haviam presenças por perto, abriu a porta para que saíssem. Os corredores estavam igualmente vazios, silenciosos até demais.

— Então, Majestade, me despeço por hoje. Espero que nos encontremos novamente.

— Foi uma honra compartilhar de um tempo ao seu lado… Mas pela forma que fala, soa como se não fôssemos mais nos ver.

Edward mostrou uma expressão risonha, mas ligeiramente dolorida. Entretanto, Fuyuki não o acompanhou e apenas inspirou fundo, como se preparasse algo. Ao perceber que ela realmente falava sério, os ombros do monarca abaixaram.

— Sinto muito por não ter dito antes, Majestade, mas estarei de partida ao fim do ano. Meus guardiões e eu estaremos ocupados.

— E-Entendo. Estarão saindo em férias? Acho que seria bom para descansarem após seus cinco meses de serviço trabalhando aqui na capital. Retornará para Puccón?

— … Não, estou de partida para um lugar um pouco mais distante.

Sentindo o tremor na voz de Edward, Fuyuki baixou o tom e murmurou, sem encará-lo. Então, após apertar as pálpebras, ergueu as íris esmeraldas na direção das violetas e o encarou.

— Não estarei saindo para descansar, mas para conseguir mais informações sobre o que discutimos hoje. Acredito que, quando retornar, será de grande ajuda.

— O que quer dizer?

— Bem, é um pouco difícil explicar, mas estive procurando por algo durante muito tempo, e finalmente o encontrei. Então, preciso partir o mais rápido possível antes que ele suma de minhas mãos outra vez.

— … Eu poderia perguntar o que é?

— Por que está falando com tanta delicadeza, Majestade? Não precisa ficar tão acuado… Mas não poderia lhe contar. Afinal, assim como um certo alguém, o senhor parece propício a tomar atitudes um pouco emocionais quando um pouco de perigo nos envolve.

Edward demorou um instante para entender a quem ela se referia, então sua expressão preocupada murchou, dando lugar a um sorriso amarelo.

— Entendo. Então, o local e o que busca é assim tão perigoso?

— … Um pouco.

Mas o tom de Fuyuki parecia dizer que era muito mais do que realmente parecia.

— Entretanto, prometi que estaria retornando com boas notícias a todos, e obviamente, não poderei recuar diante de uma decisão. Portanto, estarei partindo em alguns dias para fora do país, mas voltarei em breve.

— Muito bem. Estou torcendo pela senhorita.

— Agradeço pela confiança, Majestade.

Fuyuki trocou olhares solitários com Edward, que devolveu o cumprimento silencioso. Ambos estavam frustrados, incomodados em como as coisas se desenrolaram ao seu redor. Não salvaram pessoas importantes, sentimentos que precisavam ser transmitidos perderam seu rumo e buscavam por uma forma de compensar seus erros a todo custo.

Essa compreensão entre dois membros da nobreza foi unida com um laço importante, ainda que não fosse exatamente íntimo. Ainda assim, era agradável para Edward, especialmente, saber que havia uma chance dele se aproximar das pessoas sem necessitar de apelos grandiosos — existiam formas diferentes de fazer amizades, forjando confiança.

Esperava ser capaz de aprender esse método ser soar superficial da mesma forma que a garota que gostava fazia. Quando abriu os olhos para o sol da tarde que atravessava as janelas, tocando seu rosto e iluminando o corredor, reparou que a duquesa de cabelos prateados não se encontrava mais em seu campo de visão.



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