Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 9 – Arco 4

Capítulo 02: Separação

“Massacre Minami”, “O Atentado de Aurora” e “Infração Hera” — estes foram os três nomes dados aos eventos mais chamativos ocasionados pelo grupo terrorista nomeado como Ritus Valorem.

O Massacre Minami, ocorrido há cerca de dois anos, desenrolou-se na estadia principal da família Minami, onde todos os familiares se encontravam para celebrar o nascimento da primeira matriarca, passando o papel de líder da família à Fuyuki Minami. A jovem da nobreza foi categorizada como um prodígio dentro dos próprios valores morais da nobreza, marcando papel como primogênita, matriarca e uma das Minami mais poderosas registradas na história.

Durante a celebração, dois indivíduos principais adentraram os arredores da mansão, exterminando membro a membro, enquanto eram acompanhados de um grupo de sombras que portavam máscaras impedindo reconhecimento facial. Foram detectadas as presenças de Mania, a Entidade da Insanidade, e Shai, o Fatiador Mascarado — ambos detidos e mortos após o desenrolar do plano de extermínio provocado pela própria duquesa em sua casa.

Graças a estes esforços gerados ao longo de dois anos, ambos foram abatidos, mas seus corpos jamais foram encontrados. Em contrapartida, como prova de seus atos, um feixe de roupa com sangue de ambos foram entregues à guarda real — unido às gravações das câmeras de segurança da mansão usada como isca — que notificou mundialmente o ocorrido.

Fuyuki Minami, bem como outros participantes envolvidos, seriam condecorados pelos seus feitos na capital real, um pouco depois da Coroação Real. Entretanto, houveram divergências que dispararam alertas em todo o país, interceptando momentaneamente esse festivo.

Um ano mais tarde, o Atentado de Aurora se tornou característico o bastante para marcar a história através da tarja de sobreviventes e seus currículos. Supostamente, jamais houve registrado pessoas que escaparam das mãos da Insanidade, mas um trio abrigou-se na mansão Minami, gerando, dias mais tarde, o que seria reconhecido como o extermínio da Entidade. Ela possivelmente estava buscando os sobreviventes que escaparam, mas foi incapaz de abatê-los, encontrando seu próprio fim no processo.

O trio sobrevivente se tornou reconhecido não apenas pelo milagre da sobrevivência, mas por seus papéis tomados enquanto enfrentavam a Entidade que destruiu sua terra natal — portanto, o evento que outrora teria sido categorizado como apenas “mais um atentado da Insanidade”, se tornou digno o bastante para reconhecimento. 

Dentre o grupo, uma pessoa em especial se destacou — Ryota. 

Apenas uma antiga moradora do vilarejo Aurora, foi uma das sobreviventes que escapou para os refúgios da mansão Minami, onde a duquesa planejou usar o território para acabar com os atos cruéis da Entidade. Em contrapartida, não foram apenas sua elite Galáxia que ativamente participou do evento de extermínio — contendo, além dos dois indivíduos, o grande espírito Tigre Branco do Oeste —, mas a jovem sobrevivente ganhou crédito para o ato de exterminar Mania com suas próprias mãos.

Ainda que estudiosos e comentaristas se perguntassem a respeito da veracidade do relatório, a própria duquesa Minami jurou por suas palavras perante a guarda real e a corte. Portanto, ainda que sua identidade tenha sido originada das cinzas, muita curiosidade nasceu a respeito da jovem que se revelou como um ente principal nas datas marcadas do último ano.

Em respeito a isso, sua participação na Coroação Real foi apenas outra margem para observadores reconhecerem seu potencial como membro histórico, trabalhando ao lado do antigo príncipe, Edward Fiore, como guardiã. Suspeitas apresentam que o trabalho não fora categorizado provisoriamente como um contrato, mas sim uma tentativa da jovem se envolver com os eventos da Ritus Valorem — que, apenas uma noite mais tarde do primeiro dia da semana real, ocasionou o ataque ao palácio e, em retrospecto, à Fortaleza.

A sobrevivente Ryota atuou protegendo Sua Majestade durante a semana da coroação, mas também foi vista auxiliando nos resgates dos civis durante o atentado do grupo terrorista nas ruas da capital. Tal como membros da corte e outros envolvidos com a guarda, a garota de origem desconhecida se provou um indivíduo de reconhecimento, mas que negou-se a falar sobre suas ações ao longo do último ano.

Em contrapartida, para a surpresa de muitos, a antiga família Furoto renasceu através dos atos do último remanescente, tendo sua fortuna e propriedades prosperidade através do nome da sobrevivente Ryota. Aparentemente, ela e Zero Furoto possuíam algum caso, e tanto seu sobrenome quanto tudo o que havia no nome da família foi repassado para a jovem.

Foi reconhecida a reestruturação da casa principal e o consentimento da realeza em relação aos seus feitos — o que foi mais uma vez surpreendente.

Entretanto, desde então, nunca mais se ouviu falar sobre Ryota ou o primogênito dos Furoto — o que será que aconteceu com esta nova estrela?

***

— Ridículo.

Amassando um pouco o papel do jornal com as mãos, Fuyuki o lançou contra o acolchoado de seu sofá enquanto colocava-se de pé. Sua expressão se distorceu em irritação após a leitura. A respiração entrou em descompasso e seus punhos se fecharam.

Entretanto, quem interferiu em sua reflexão silenciosa foi Sora Akai, permanecendo em pé contra uma das paredes da sala de visitas.

— O que aconteceu, senhorita?

— Estão comentando sobre ela novamente… E referindo-se tantas vezes como sobrevivente… Isso não é nada além de uma humilhação.

Batendo a sola dos sapatos no chão de mármore, a duquesa pegou o papel amassado e jogou-o na lixeira, congelando-o brevemente. O guardião, sem mover um único músculo, abriu os olhos para a mestre quando ela começou a andar em círculos, mordendo a unha do dedo.

— Entendo que precisam comentar a respeito dos últimos registros, movimentando a imprensa, mas isso é inaceitável. 

— … Ainda comentam sobre os atentados?

— Estão reutilizando o material para recrutar novas informações, como se pudessem trazer à tona pessoas que soubessem da localização dela. Enquanto isso, ainda falam sobre o que aconteceu há dois anos na casa principal, e o que houve logo após com tanta insensibilidade… Simplesmente ridículo.

Fuyuki falava com tanta raiva que parecia cuspir cada uma de suas palavras. A duquesa, observada pelo guardião, abraçou o próprio corpo e refletiu sobre as ações da imprensa. Ao longo daqueles seis meses, enquanto trabalhavam para recuperar a estabilidade da capital real, o trabalho das manchetes nas redes sociais, televisão, rádios e jornais continuou a todo vapor.

É claro que ela estaria sendo injusta caso dissesse que não estava orgulhosa das próprias ações. Ficava feliz em ter seus esforços reconhecidos, embora não visse isso como razão para estipular pessoas envolvidas na nobreza como seres superiores. Possivelmente, pessoas como Shin Akai e Juan Over estariam nas manchetes — embora bem menos mencionadas —, mas certamente estariam contentes com o alastramento midiático de seus trabalhos durante a cerimônia de meio ano atrás.

Fuyuki, não.

Existia uma grande diferença entre retratar acontecimentos e descrever como se fossem cenários retirados da ficção. Detalhar pessoas que foram mortas por um ser cruel como uma Entidade, afirmando descaradamente que não eram nada além de números até o surgimento de uma pessoa que futuramente se tornaria alguém ligeiramente importante… Era um absurdo. Simplesmente um desrespeito.

Não sabia porque ficava com tanta raiva. Normalmente, a duquesa estaria acostumada a manter os sentimentos para si, principalmente enquanto estivessem relacionados ao próprio nome. Havia, sim, amargura na garganta quando lia sobre a perda de seus familiares como nada além de um registro histórico, mas ainda era capaz de lidar adequadamente com aquele discorrer.

Entretanto, quando mencionavam-na… Quando pronunciaram o nome de Ryota e suas dores com tamanho descaso, uma fúria gigantesca fazia seu coração rugir, e as paredes congelavam como se florescessem.

— Por favor, acalme-se. 

Quem interveio contra a explosão de emoções foi Sora. Ele se aproximou sorrateiramente da mestre que bateu os punhos contra a mesa e sussurrou, tocando em suas costas para induzi-la a se sentar. Em uma das mãos, surgiu um copo com líquido transparente que foi imediatamente entregue a ela. 

Um pouco constrangida, mas igualmente agradecida por sua companhia, Fuyuki acatou a sugestão de seu braço direito e relaxou as pernas, sentando-se no sofá outra vez. Ela tomou a água sob goles pequenos, inspirou e expirou profundamente.

— Obrigada… E sinto muito pelo trabalho que estive lhe dando ao longo dos últimos dias.

— Não há necessidade de se preocupar. Apenas estou fazendo o meu trabalho, senhorita.

— … Obrigada.

Fuyuki baixou as sobrancelhas para a postura endireitada, porém exausta, de Sora Akai. Ele era um rapaz com que compartilhava uma semelhança de idade, mas passava por um período difícil. Era inegável que seu comportamento se tornou um pouco mais frio ao longo dos meses, e parte daquilo ter ocorrido era culpa dela.

Entretanto, o guardião jamais demonstrou qualquer informalidade ou contragosto aos seus pedidos. Ainda que em seu coração machucado, houvesse um peso complexo para suportar, o mesmo valia para o que se passava no seu próprio — e, possivelmente, no de todos desde a semana da coroação.

A duquesa abaixou os ombros tensos, olhando para a paisagem na janela. Ainda era dia, mas o sol que adentrava o cômodo silencioso era sereno. Estavam atravessando a chegada do fim de ano, e ainda não parecia possível que o tempo tenha passado tão rapidamente. 

Os verões que acariciavam a pele sempre acompanhavam o fim e o início, portanto, pareciam adequados que fossem devidamente aproveitados. Certamente, alguns sairiam em férias ou gastariam seu tempo livre em viagens longínquas, mas a duquesa permaneceria exatamente onde estava.

Ainda havia muito trabalho a ser feito.

— O que acha que tomar um tempo para si e para Kanami em algumas semanas? 

Fuyuki fez uma proposta repentina para o guardião e amigo, que inclinou a cabeça.

— Acredito que será uma boa oportunidade para descansarem após seu trabalho árduo de dois anos… Ainda precisarem ficar aqui um pouco mais de tempo, mas estou certa de que poderei cuidar de meus objetivos sozinha.

— A senhorita… 

Enquanto a duquesa dizia sem olhar para Sora, o guardião franziu um pouco a testa em preocupação. O tom de voz chamou a atenção de Fuyuki, que se virou.

— … Por acaso, a senhorita pretende nos dispensar?

— O quê? 

Controlando o próprio humor, o Akai inspirou fundo e encarou sua mestre. As íris vermelhas profundas, sem qualquer brilho, atravessaram as esmeraldas.

— Estou ciente de que a presença de minha irmã possa ser um pouco árdua, e não estou em condições de fazer o serviço por dois, mas me esforço ao máximo para tal. Entretanto, se minhas tarefas não a estão contentando, compreenderei se assim for o seu desejo.

— … Sora.

Fuyuki soltou um suspiro pesado ao ver Sora abaixar a cabeça. Ainda que suas emoções não fossem transparentes em seu rosto ou voz, era perceptível que seu peito deveria doer insistentemente cada vez que lembrava do estado da irmã ou de como seu trabalho dobrou desde que ela se desligou. 

Ele era um guardião exímio. Ao longo de seis meses, jamais abandonou Fuyuki, permanecendo ao seu lado o máximo de tempo que fora possível. Trabalhou o dobro, mas nunca reclamou por isso. Ainda que ela desejasse poder fazer mais por ele, o mínimo de delicadeza que poderia ter era não tocar no assunto que machucava seu coração. 

Sora estava visivelmente abalado, e aquilo doía muito para a duquesa, que observava seus esforços no dia-a-dia. Sempre despertando antes dela para recebê-la ao sair do quarto, fazendo rondas a mais para garantir sua segurança, sempre auxiliando-a em seus trabalhos, fazendo companhia… Sem dúvidas, ele era uma pessoa honrada e dedicada ao seu máximo.

Ao mesmo tempo, Fuyuki gerou um laço de forte confiança com Sora. Eles eram parceiros, identificando-se um pouco com a dor um do outro. É claro que a do gêmeo mais velho fora uma ferida mais recente, portanto, era necessário muito cuidado, mas ela estava igualmente abalada, e ainda assim Sora sempre se dispunha a ajudá-la.

Ainda que fosse parte de seu trabalho, ela sabia que ambos prezavam pelo bem estar um do outro. Agora que os membros principais de sua elite foram divididos, alguns mais atarefados do que outros, era visível o peso das responsabilidades e, por consequência, a exaustão que recaía em seus ombros.

Observando o guardião que estava pronto para aceitar duras palavras de repreensão, Fuyuki expirou o ar de seus pulmões.

— … Eu jamais os dispensaria.

Sora, ainda de cabeça baixa, apertou os lábios.

— Você, Kanami, Eliza… E, antes, Zero, são todos membros da minha elite. Mas, agora, não os vejo apenas como companheiros, mas como parte de minha família. Jamais seria capaz de ser injusta com qualquer um de vocês… Muito menos, mentir a respeito do que penso ou sinto.

Fuyuki levou as mãos em direção ao peito, ao coração que batia em dor. 

— Portanto, a menos que vocês mesmos estivessem insatisfeitos com o serviço em que estão, caso eu não esteja mais no patamar ideal ou desejem seguir com as próprias vidas… Doeria, mas não poderia segurá-los comigo por egoísmo.

Ela riu baixinho da confissão, apertando os dedos.

— Erga a cabeça.

Sora obedeceu, encarando os olhos marejados dela.

— Não possuo palavras o bastante para descrever o quão grata sou por tudo o que fizeram por mim. E, novamente, eu jamais seria capaz de dispensá-los a menos que assim desejassem. 

— Senhorita…

— Sinto muito. Ando um pouco sentimental.

Fuyuki abriu um sorriso torto para o guardião, bastante atípico dela, então respirou fundo para se acalmar. Enxugou as lágrimas que ameaçavam cair, mas lutou para que isso não acontecesse.

— Como sua mestre, e em respeito aos seus esforços, jamais seria capaz de abandoná-los. Entretanto, tal como Eliza, gostaria que vocês dois pudessem tomar um tempo para si mesmos e descansassem um pouco.

Observando em silêncio a duquesa que assim falou com o ar confiante costumeiro, o guardião piscou os olhos devagar.

— … Na verdade, senhorita.

— Sim?

— O patriarca dos Akai convocou a presença de todos na virada de ano. 

— Isso é atípico do senhor Shin, mas estou de acordo com sua partida, se assim for seu desejo.

— … Senhorita.

— Sim?

Sora baixou as sobrancelhas, revelando uma expressão solitária e cansada, antes de finalmente abrir um sorriso pequeno.

— … Muito obrigado.

— Não precisa me agradecer… Na verdade, sou eu quem muito recebeu de todos vocês.

Com o encerramento daquela discussão, Fuyuki deu as costas para Sora com ar de calmaria e inspirou fundo o ar que adentrava as janelas abertas. Ela caminhou a passos lentos naquela direção e, apoiando-se no parapeito, observou a vista por um longo segundo. 

Seus cabelos brancos trançados balançaram ao vento — e, para Sora, que estava acostumado a ver todos os tipos de expressões nela, era perceptível que havia em seu coração um misto de alívio com frustração. Ambos os sentimentos eram compreendidos por ele, e suas origens estiveram diretamente ligadas com o próprio, pois esteve presente em cada uma das cenas.

Agora, com a certeza de que poderiam se separar por um pequeno período sem se arrepender; e antes, com Ryota, que ainda havia incerteza e dor pulsando dentro daquela jovem duquesa.

— … Quando todos saírem de férias, eu partirei em viagem.

— Em viagem…?

Quando aquelas palavras soaram pelo cômodo, o guardião demorou um instante para compreender seu significado. Então, arregalou os olhos, dando um passo adiante.

— E-Então… 

— Sim. Finalmente, eles a encontraram.

A duquesa, apoiando um braço no parapeito, virou o rosto preenchido em seriedade e determinação para Sora, que arriscou outro passo e parou, finalmente arrumando a própria postura.

— Assim que meus afazeres chegarem ao fim, enquanto aguardo seu retorno e o dela… Estarei partindo de Thaleia para Clior.

— O país do senhor Over.

— Exatamente.

— Então, quem repassou o relatório…

— Sim, foi o próprio senhor Juan. Ainda que seja um pouco rude, mesmo ele consegue ser um pouco gentil. 

Fuyuki abriu um sorriso caloroso. Parecia que, desde a coroação, o relacionamento entre a corte havia melhorado um pouco. Era quase como se o envolvimento contra um adversário em comum os fizesse se aproximar enquanto aliados, reconhecendo qualidades uns nos outros.

O mesmo valeu para Zero enquanto enfrentava as criaturas nomeadas como mors na capital real ao lado da corte. Sua força e mentalidade receberam a devida atenção, então ele finalmente pôde recuperar o título que tanto se dedicou ao longo daquela semana para ganhar.

Apertando os olhos para as memórias do amigo que repousava em um sono profundo, Sora recordou-se da menina de cabelos azuis que raramente passou a ver desde que a coroação acabou.

— E quanto à madame Eliza?

— Eliza permanecerá aqui na mansão Minami da capital tratando de minha mãe e de Zero. Não posso deixá-los sozinhos enquanto estamos fora. Além disso, estou certa de que ela jamais se permitiria tirar alguns dias de férias enquanto ainda está trabalhando para retardar o processo que deixou ambos naquele estado.

Para Fuyuki, era um pouco mais fácil falar sobre o estado de Coldy — ainda era doloroso pensar em sua mãe acamada, mas certamente havia lidado bem com a dor para encará-la sem pestanejar. Entretanto, o caso de Zero ainda era uma ferida recente, então toda vez que o mencionavam, ambos inconscientemente sentiam um aperto no coração.

Sora era apenas um pouco melhor em disfarçar aquelas emoções, mas Fuyuki, que estava mais sensível que o normal, transitou sua expressão em uma de reflexão momentaneamente.

— Entendido.

— Muito bem. Enquanto nos preparamos, vou sair um pouco para me encontrar com Eliza. Não se preocupe comigo.

Sora apenas assentiu com a cabeça para a consideração de sua mestre — essa era a forma dela de dizer que poderia deixá-la aos próprios cuidados enquanto verificava o estado de Kanami. 

Quando viu Fuyuki sair do cômodo, atravessando os corredores para encontrar a curandeira que estava em algum lugar daquela casa. Fechando os olhos para inspirar fundo, o guardião de olhos vermelhos também saiu, fechando a porta atrás de si.

Ao longo do caminho que percorreu, seus olhos vagaram na direção dos empregados que cuidavam da mansão. Todos, sem exceção, baixavam a cabeça em medo ao sentir sua presença, imediatamente tratando de se importar com qualquer outra coisa que não fosse ele.

Sora realmente não se importava com aquele tratamento. Estava acostumado a lidar com pessoas que se afastavam naturalmente — seja por sua presença afiada ou personalidade complicada de se lidar. Em contrapartida, apenas alguns se dispunham a se aproximar para conhecê-los de verdade.

Houveram poucas pessoas que tentaram tomar a dianteira. Fuyuki Minami foi uma delas, embora demandasse algum tempo para se acostumar com suas personalidades um pouco distantes demais. Em questão de comportamento, sempre se manteriam impecáveis diante da pessoa que foram contratados, não importava a situação. Essa era uma dádiva ao treinamento dos Akai, que criavam nada mais que guardiões excelentes — e igualmente caros.

A duquesa, no início, os tratou com simpatia, mas indiferença quanto aos sentimentos que carregavam. Entretanto, conforme o tempo passou, Sora entendeu que era reflexo de seu luto. A necessidade de se manter isolada a fez tratá-los daquela forma, para apenas posteriormente, ser capaz de tentar entendê-los.

Demandou tempo, mas graças a presença do novo elemento alegre, foram capazes de se aproximar. Agora, Fuyuki expressava um pouco melhor suas emoções e dizia abertamente os sentimentos que passavam em seu coração, sem temer a reação que teriam. E, em contrapartida, os próprios guardiões começaram a se sentir confortáveis para fazer o mesmo.

Obviamente, tanto por respeito à posição quanto por orgulho, Sora jamais expressaria o que guardava no peito perante ela. Entretanto, saber que a duquesa os conhecia o suficiente para ter consideração, tratando-os com sutileza, era o suficiente para ser capaz de trabalhar diligentemente pela mestre que confiava.

Eliza era um elemento particularmente expressivo, mas não da forma que estava acostumado a ver. A curandeira parecia não saber lidar com as próprias emoções sem atropelá-las com palavras, mas sabia a hora certa de manter a seriedade durante o serviço. Em relação a isso, Sora sempre a respeitou. Entretanto, suas personalidades realmente não combinavam, mas desde que a garota acabou por se dedicar com unhas e dentes ao serviço, uma parte dele sentiu pena dela. 

Era apenas uma menina de catorze anos se esforçando para carregar vidas nas pequenas mãos. Eram como polos opostos, em ambas as mãos estavam cheias de sangue, mas as dele eram de vidas tiradas, e as dela de vidas que não pôde salvar.

O guardião não poderia sentir ainda mais respeito pela dedicação da curandeira para salvar a senhorita Minami, Zero ou Kanami.

E, pensando no elemento que geralmente o fazia perder a cabeça, o rapaz havia o surpreendido um pouco. Conforme o tempo passava, Sora o viu como alguém estranhamente fechado, mas não por introversão, mas por medo. Era como uma concha fechada, segurando as paredes com todas as forças para não serem abertas outra vez. 

Aquilo o irritava. Por alguma estranha razão, sempre o incomodou profundamente pessoas que viviam com pavor por nada além de si mesmas. 

Talvez fosse reflexo da forma com que viveu, acostumado a lutar por si mesmo, e não a se proteger. Era diferente de abraçar o próprio corpo e chorar pela própria indignidade — era erguer-se e usar unhas e dentes para sobreviver. Mesmo que estivessem sozinhos, havia um ar diferente em como olhavam para essa solidão.

Sora sentia orgulho; Zero sentia pavor.

 Portanto, quando o último indivíduo apareceu na mansão, pronta para se aproximar de cada um deles como se sua vida dependesse disso, Sora imediatamente a rejeitou.

Quem era ela para achar que sabia algo sobre eles? Para se achar digna de se aproximar, como se fosse especial? Como podia choramingar pelos cantos, enfrentando a própria tristeza e dor a tapando com as próprias mãos? 

Outra vez, sentiu raiva. Era humilhante, um absurdo. Acreditar que alguém que sobreviveu por sorte, graças a outrem, que cometia atos contra si mesma, poderia estender a mão a alguém.

Mas ela havia mudado Zero, que começou a expressar um pouco mais suas opiniões e sentimentos, mesmo que ao custo de discussões com Sora.

Ela havia feito Kanami descobrir a curiosidade do mundo. Incentivou a leitura, e a irmã passou a querer experimentar coisas, comer doces, olhar para paisagens e enxergar o mundo de forma diferente.

Abraçou Fuyuki e a dor que compartilhavam, mesmo que ao custo de subirem nas costas uma da outra para atingirem seus objetivos. Havia compreensão e uma amizade impossível entre elas, que se entendiam naturalmente.

E, por fim, quem o empurrou para que não morresse pelas garras e presas de um grande tigre foi a mesma garota, recebendo um ferimento que poderia tê-la matado imediatamente. Tamanho foi o choque que Sora demorou um instante para entender o que havia acontecido, até finalmente decidir deixar tudo de lado para salvar a mesma pessoa que na noite anterior tentou matar.

Ele perfurou o olho dela com a mesma adaga que carregava. Desprezou suas origens e determinação fúteis. Olhou com repulsa para suas reflexões e pedidos de desculpas ao compreender sua posição.

E, ainda assim, ela o salvou.

Assim como havia, de certa forma, salvado um pedaço de cada um deles. Ali na mansão e no palácio.

Engoliu em seco para o azedo que sua boca ficou, repassando as memórias de um tempo que ainda era agradável para trás. E, quando parou diante da porta, abrindo-a para encontrar um cômodo escuro, quente e com uma figura de olhos brilhantes que rasgava um urso de pelúcia desde seu âmago com as unhas, Sora apenas deu um passo adiante e esqueceu-se de tudo aquilo.

***

— Então, a senhorita irá partir em alguns dias?

— Sim. Portanto, até que eu retorne, preciso que permaneça aqui na mansão.

Fuyuki piscou com certeza para a garota sentada em um banco de madeira no cômodo que seria seu escritório. Ao contrário de ambientes médicos, em que haveria o cheiro forte de produtos, o local era realmente agradável aos olhos.

Eliza, com marcas profundas abaixo dos olhos, assentiu com a cabeça ao ouvir os requisitos de sua mestre. Ela havia sido encontrada por ela alguns minutos antes, quando a ouviu bater e entrar na sala. Em suas mãos, havia um caderno com folhas de anotações, onde demarcava coisas importantes com canetas coloridas.

A duquesa nunca se aprofundou muito em seus estudos, pois não era sua área de especialidade, mas sabia que a curandeira se dedicava de corpo e alma. Havia no corpo daquela menina de catorze anos um ar de responsabilidade que superaria qualquer um de sua idade. Suas mãos, ainda que parecessem lisas como as de uma donzela, eram constantemente curadas após os procedimentos realizados pelos tratamentos.

Ao menos, das vezes em que ainda era capaz de enxergar os machucados, pois Eliza sempre os escondia. Agora que Fuyuki estava especialmente atenta aos serviços de seus guardiões — pois todos, sem exceção, estavam exaustos e sensíveis —, era necessário muito mais cuidado quando se tratava daquele assunto.

Ela era uma pessoa que vivia pelo orgulho do próprio serviço. Se não fosse capaz de cumprir apenas com o que dedicou tantos anos, com suor, sangue e lágrimas, não haveria qualquer utilidade para ela. Eliza era alguém que, para provar seu valor como pessoa, perseguia os passos da irmã amada e idealizada, que sempre apoiou a família desde cedo.

Queria se tornar como ela — alguém digna de se orgulhar, tanto a si mesma quanto aos outros.

Mas o que havia feito nos últimos meses? Suas mãos estiveram ocupadas com os cuidados daqueles que sofreram graças ao evento da Infração Hera, ao atentado que trouxe mortes e feridos que poderiam ter vindo a falecer caso Eliza e Gê não estivessem presentes.

A presença de médicos comuns aliviava o serviço, mas ninguém duvidaria das capacidades de uma curandeira tão renomada. Ainda que fosse uma menininha, que recebia tanto quanto valia pelo seu serviço, nada daquilo era importante se as vidas aos quais foi confiada de guardar e salvar não pudessem estar ao seu alcance.

Eliza deixou muitos morrerem por sua lentidão. Ela viu muitos irem por seu medo de se aproximar. Ela ouviu gritos de dor e não foi capaz de decidir a quem dedicar mais tempo. 

Se ela fosse mais rápida.

Se ela fosse mais inteligente.

Se ela fosse mais capaz.

Se ela fosse… Se ela fosse ainda melhor… Se ela se dedicasse o dobro, o triplo disso, talvez…

— … Ah.

— Estou falando com você, Liz. Preste atenção em mim.

Reparando que a garota havia parado para pensar em algo, fazendo uma expressão cabisbaixa, Fuyuki se aproximou e segurou o rosto dela, erguendo-o na sua direção. Eliza sentiu o rosto corar em constrangimento pela falta de educação, então desviou os olhos âmbar.

— S-Sim. Me desculpe.

— Está tudo bem. Entendo que esteja preocupada e ocupada com muitas tarefas, mas, por favor, me dê apenas um pouco de seu tempo, agora.

— Sim.

— Muito bem.

A duquesa deu um tapinha de leve no rosto da curandeira e se afastou novamente, cruzando os braços. Fuyuki sentiu, ao se aproximar, que aquela que parecia tão mais adulta do que ela, carregando tantas responsabilidades, na verdade ainda continuava como a mesma menina que havia contratado há quase dois anos atrás.

Ainda que sua postura tenha se tornado mais rígida e sua personalidade um pouco mais distante — em reflexo de seus pensamentos constantes —, Eliza ainda era a mesma Eliza de sempre. Por baixo, ainda era a menina que havia chorado até as lágrimas secarem ao descobrir do desaparecimento de Jaisen, da morte de Albert e do estado de Zero.

O que havia em seu peito era, certamente, uma culpa tão profunda quanto seria possível imaginar. Tanto quanto Ryota, ela havia sofrido ao descobrir o que aconteceu durante os últimos momentos da coroação real.

Fuyuki não podia culpá-la por aqueles sentimentos — se sentia ligeiramente semelhante, embora as proximidades com os envolvidos fossem diferentes —, mas não permitiria que mergulhasse neles por mais tempo que o necessário.

— Conversei com Sora a respeito, então ele e sua irmã partirão para a casa principal dos Akai ao fim do ano. Estarei em viagem um pouco após isso, então espero poder contar com seu apoio.

— Sim.

— Entretanto, não gostaria de tomar o tempo que poderia passar ao lado de sua família. Estarei sendo apenas egocêntrica forçando-a a permanecer aqui enquanto todos se separam, ainda que seja por um curto período.

A duquesa demonstrou simpatia pelo estado de Eliza, mas a curandeira apenas abriu um sorriso gentil para as palavras dela.

— Eu… Eu agradeço muito pela sua hospitalidade. Não poderia ficar mais confortável trabalhando do que aqui, e com certeza vou aproveitar muito bem esse tempo.

— … Tem certeza? Podemos organizar um período diferente, e você poderia descansar ao menos por uma semana.

Fuyuki, apertando as mãos nos braços, tentou dialogar com a menina que insistia em permanecer na mansão. Ela sabia que seria assim desde o início, mas ainda era difícil imaginar que manteriam uma menina cheia de pensamentos complicados sozinha em uma mansão tão grande. 

A estaria fazendo passar seu período de férias no trabalho — não era realmente cruel?

— Sim, eu vou ficar aqui enquanto vocês partem.

Mas Eliza continuou firme em sua decisão.

— Eu sei que o Sora e a Kanami vão estar ocupados com as coisas da família, e a senhorita não vai sair em viagem pra se divertir. Assim como eu, estará ocupada com seus próprios problemas, e eu decidi que cuidaria da senhorita Minami e também do Zero pra Ryota.

Mencionar o nome dela fez Fuyuki estremecer, fincando ainda mais os dedos nos braços que envolviam seu corpo.

— Vou ficar aqui, ao lado de todos os empregados e deles dois. Preciso cuidar deles enquanto vocês duas estão fora… Vai ser o melhor momento pra isso, afinal. 

— Eliza…

— … A senhorita vai buscar uma forma de lidar com os problemas causados pela Ritus Valorem e a Ryota vai voltar trazendo a cura que estamos esperando. Não posso apenas ir embora e deixar ela sozinha quando chegar, não é?

A curandeira inclinou a cabeça com ar brincalhão, mas a duquesa apenas inspirou fundo para se acalmar outra vez.

— … Você parece bastante confiante quanto a isso.

— O quê?

— A respeito do tratamento.

Fuyuki fez um comentário um pouco doloroso, mas Eliza sabia que não era por mal. Ambas passaram dois anos buscando uma forma de encontrar a resposta para a doença que mantinha Coldy Minami em sua cama. Agora, havia também Zero, em um estado semelhante, porém com um período curtíssimo para ser salvo.

Ao contrário da duquesa, Ryota devia estar desesperada para salvá-lo. Afinal, era alguém importante o bastante para sacrificar a própria vida e dedicá-la ao seu máximo. Coldy não possuía um limite de tempo, então poderiam buscar calmamente por uma cura — Fuyuki sabia que correr além do que as próprias pernas poderiam pisar era um erro.

Mas jamais julgaria as ações de Ryota. Zero era uma pessoa de extrema importância para ela também, e caso sua mãe estivesse em seu lugar… Certamente teria feito o mesmo.

— Parece meio presunçoso da minha parte dizer isso, não é?

— Não a culpo. Estou apenas dizendo-

— Eu sei que a senhorita também confia muito na Ryota… Mesmo depois daquilo, ainda não conseguimos deixar de lado as coisas que fez por nós. Principalmente a senhorita.

Eliza interrompeu as desculpas de Fuyuki quanto ao seu tom, fazendo-a se calar.

— Ainda que seja um pouco estranho, sinto como se pudesse confiar nela. Ainda agora, quase como se pudesse sentir sua força de vontade. Quando os outros estão em perigo, eu sei que ela sempre vai dar seu melhor pra salvá-los. Nem que custe a própria vida. Não foi assim conosco?

Fuyuki não respondeu.

— E eu também vou me esforçar. Vou manter todos a salvo até que ela volte, pois sei que não poderei fazer nada pra mudar a situação deles.

— … Tudo o que faz por nós é mais do que suficiente.

— … Obrigada. 

Aquelas palavras eram um pequeno alívio, mas não o bastante para o coração ferido da curandeira que deixou tantos sumirem do alcance de suas pequenas mãos.

— Por isso, podem ir tranquilos. Permanecerei aqui com todos, e cuidarei de mantê-los em segurança até seu retorno.

— Agradeço, Eliza. Prometo compensá-la quando tudo isso chegar ao fim.

Eliza, em pé, colocou as mãos atrás do corpo e se curvou um pouco, parecendo envergonhada. Soube que o assunto havia sido encerrado, e continuar com a troca de palavras seria meramente uma formalidade desnecessária.

— Entretanto, não a deixarei sozinha nesta mansão. Encaminhei outra pessoa para lhe fazer companhia.

— Outra?

Quase como se escutasse a deixa, a porta do escritório se abriu, revelando uma figura conhecida, mas não próxima. Fuyuki abriu um sorriso respeitoso para o velho de corpo robusto que adentrou o cômodo, fazendo uma reverência para a curandeira.

— Acredito que devam ter se encontrado uma vez ou outra na antiga casa, mas me permita apresentá-lo. Este é William, e ele também faz parte dos meus guardiões.

— Senhor Wilhiam… É um prazer.

— Eu que a agradeço pela oportunidade de trabalhar novamente ao lado da duquesa.

Quem cumprimentou Eliza com uma voz grave foi um homem trajado de mordomo. Era um homem que deveria possuir a idade semelhante à de Albert, ou talvez até um pouco mais velho. Entretanto, sua aparência e postura em nada ditavam seu comportamento digno da nobreza. Usava um monóculo e possuía o trejeito de uma pessoa que viveu a vida ao seu máximo, mas jamais deixou de servir o coração àquilo que jurou e acreditou.

— Outrora, no passado, Wilhiam trabalhou como guardião de meu pai e meu avô. Entretanto, ainda que tenha se aposentado, jamais saiu da mansão e continuou a nos servir. Estou honrada em tê-lo ao meu lado novamente, e peço perdão por recrutar seus serviços tão tardiamente.

— Não há necessidade de desculpas, senhorita. Estou aqui para servi-la até meus últimos dias.

— Agradeço profundamente.

Fuyuki inclinou a cabeça para Wilhiam, e parecia que ambos se conheciam de longa data. A duquesa o olhava com ar de respeito, e imediatamente Eliza percebeu que aquele senhor deveria ser alguém reverenciado pelos Minami, então imediatamente se pôs a vê-lo da mesma forma.

E assim, os dias na mansão Minami começaram a se passar bem, bem devagar.



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