Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 9 – Arco 4

Capítulo 01: Como um Cão

O despertar não foi suave o bastante para ser chamado de agradável, e a garota que dormia abriu os olhos para o local em que estava. Sentiu que seu corpo tremia, não de medo ou nervosismo, mas devido a locomotiva que estava atravessando uma via perigosa. 

O mundo cheio de sons arrebentou o silêncio agudo com um baque, mas mesmo que a surpresa atravessasse seu corpo como um choque, não houve demonstração como reflexo em sua expressão. Os olhos azuis escuros se abriram para a luz, e imediatamente se fecharam outra vez quando o sol pareceu atravessar paisagens apenas para recebê-la. 

Com as costas recostadas contra o banco acolchoado do trem, Ryota se permitiu despertar. Ela sequer percebeu que havia caído no sono enquanto olhava pela janela, e certamente não foi uma decisão muito sábia. Entretanto, não parecia que havia se passado tanto tempo desde que saíra da capital real de Thaleia, rumando para um destino um tanto longínquo, mas certamente indecifrável.

Sob as roupas, os pelos de seu corpo estavam arrepiados e seus dedos tremiam um pouco. Como sempre, quando acordava de um pesadelo que afetava diretamente seu corpo, era difícil conter as reações que ameaçavam explodir de dentro dela. A ansiedade balançou seu estômago, a fazendo querer vomitar, mas conteve-se diante do cenário em que estava. 

Afinal, a viagem seria longa, e demonstrar fraqueza sob uma circunstância casual como aquela perante outra pessoa não seria uma atitude que poderia perdoar.

Ryota endireitou a postura, ainda sentada, e piscou algumas vezes. Havia partido da cidade durante o dia, e o sol alaranjado no horizonte apresentava as horas que haviam se passado, desde então. A tarde calorosa a agraciou com uma paisagem relativamente bonita, mas os olhos da garota não encaravam aquela imensidão do lado de fora por admiração.

— Moça, você tá bem?

A voz aguda que foi murmurada em sua direção vinha de um garoto que estava sentado diante dela. Ryota, focada em apenas guardar os sentimentos que borbulhavam dentro de si para cada vez mais fundo, apenas se esforçou para olhar para baixo na direção dele.

Era um menino na faixa dos onze anos de idade que estava sentado no banco do vagão. Entretanto, apesar da própria garota estar vestida de forma completamente diferente do esperado, o próprio garoto também não tinha uma aparência assim tão comum.

Enquanto Ryota escondia seu corpo atrás das vestimentas escuras e cabelos desnecessariamente compridos, Dio se encolhia em suas roupas desgastadas e velhas. Era como se as usasse durante um período longo demais para ser contado, mas era perceptível que longos anos se passaram desde a última vez que aquele garoto foi capaz de trocar as peças.

O menino chamado Dio tinha cabelos e olhos áureos que certamente chamavam a atenção, mas sua atitude relativamente tímida, acompanhada de sua personalidade desconhecida eram conflitantes para a garota. 

Ryota havia o conhecido durante um evento bastante específico enquanto estivera na capital real, pouco antes da coroação se iniciar. Era estranho imaginar que cinco meses haviam se passado desde então, e mesmo ela estava surpresa em como o tempo havia se deslocado tão rapidamente.

Enquanto aqueles pensamentos vagavam sua mente e a resposta para a pergunta não vinha, Dio abraçou um pouco mais o corpo do cachorro que estava dormindo em seu colo e franziu a testa. O filhote era apenas um pouco maior do que seu braço, sendo de uma raça relativamente comum para as ruas. Sua pelagem amarelada e olhos escuros demonstraram lealdade e a gentileza que qualquer cão teria para com seu dono, mas não era como se aquele cachorro fosse especialmente protetor ou ameaçador em situações de risco.

— … Hm… — parecendo incomodado com o silêncio que durou quase trinta segundos, Dio ergueu a voz mais uma vez, grunhindo em hesitação para falar.

— Estou bem.

A resposta finalmente veio, mas sob uma entonação curta e grossa. Apesar do garoto ficar um pouco surpreso, não pareceu que havia levado para o lado pessoal — não que ela se importasse, de toda forma.

Ryota, diante daquele cenário contrastante com tudo o que havia passado até então, se perguntou como tudo havia acabado daquela forma.

Desde que a coroação real havia oficialmente se encerrado, e a semana turbulenta chegou ao seu clímax, atingindo um patamar muito além do esperado, a garota se viu completamente perdida. Em determinado momento, seu trabalho como uma simples guardiã que fingia estar apenas mantendo tudo sob controle desenrolou-se para uma situação completamente diferente. E, de repente, havia sangue em suas mãos, pessoas foram feridas por sua causa, entes queridos morreram para protegê-la e respostas para suas perguntas jamais foram dadas.

Aquele período de uma semana na capital real desenvolveu-se com um ar completamente diferente do esperado, mas não era como se a garota não tivesse sido avisada de que assim pudesse ser. Entretanto, os acontecimentos, sentimentos e pensamentos que foram travados estavam além de sua imaginação, e Ryota se viu extraviada em meio a tamanho caos.

Seu único desejo fora sair de sua terra natal para reencontrar o avô.

E agora, ele estava morto.

Sua vida se esvaiu de suas mãos, como se escorresse pelos seus dedos calejados, e seu corpo tornou-se um amontoado de carne em seus braços.

Ela jamais se esqueceria do vazio que se afundou em sua alma naquele dia, assim como nunca mais poderia deixar de lado as memórias de Zero sendo morto diante de seus olhos para salvá-la de uma Autoridade.

Ainda que seus dedos fossem arrancados, ainda que seu sangue quente escorresse, ainda que suas lágrimas pingassem no chão pútrido daquele igreja, as suas palavras e gritos de lamúria nunca chegariam aos ouvidos da pessoa que amava.

E, de repente, percebeu que havia perdido todos aqueles que eram importantes.

Albert fora morto. Zero estava em um lento e doloroso processo para dar seus últimos suspiros. Jaisen desapareceu, mas as suspeitas de que sua vida estava em risco eram altas demais para serem desconsideradas.

Quando todos aqueles que lhe restavam foram tirados de sua mão à força, e seus pequenos dedos que tentavam agarrar as pessoas que amava com tanta vontade foram tomados dela a uma violência descomunal… Ryota quebrou.

Ela perdeu tudo.

E, com as migalhas que restaram, despedaçou cada laço que formou ao longo daqueles meses.

Virou as costas para Edward quando ele mais precisou.

Colocou a culpa em Fuyuki.

Desprezou o trabalho de Eliza.

Ignorou as dores de Kanami e Sora.

Abandonou a responsabilidade de Marie e Luccas.

Tudo isso por sentimentos egoístas que queimavam dentro de seu ser, mas que a tornavam tão vazia e cruel quanto todos que antes apontou o dedo.

O que a tornava assim tão diferente de qualquer um daqueles ao qual julgou?

Mas mesmo ela sabia que a culpa do sangue em suas mãos não era inteiramente sua, e era justamente por isso que ainda não havia desistido. 

Caso contrário, provavelmente, teria colocado um fim em tudo com as próprias mãos — as mesmas que foram incapazes de segurar um único fio de vida que não fosse o seu.

Dentro de seu coração, ainda haviam rostos com os quais desejava se encontrar, e certamente seu ódio despertaria, colocando toda a fúria para fora.

Era um sentimento anestesiante que a mantinha de pé. Parecia que sua única razão para continuar acordando todos os dias, a fazendo não desistir de tentar encontrar uma razão para viver, era o amargor em sua boca toda vez que recordava-se daqueles que perdeu.

E de quem era a culpa.

Então, como um último ato de resistência, Ryota se reergueu com as próprias cinzas para buscar trazer à tona tudo aquilo que havia sido tirado dela.

Encontraria uma cura para o caso de Zero; Descobriria o estado de Jaisen; Buscaria respostas para todas as perguntas que assolaram sua mente desde o início, principalmente sobre Albert e a causa para toda a destruição; E, por fim, mataria aquela que tomou a vida de seu avô.

Portanto, para que todos aqueles objetivos se concretizassem, precisava rumar para um único lugar. 

— Moça… Você já foi para Urânia, antes? — perguntou Dio de repente, como se lesse seus pensamentos — A-Ah, bem, é para lá que estamos indo agora, não é?

— Sim.

O menino piscou os olhos para a resposta, como se pensasse um pouco, então sua expressão se iluminou com um sorriso tímido.

— … Ouvi dizer que, antes de abandonarem seu país e se unirem a Thaleia, Urânia era um lugar cheio de coisas legais, como escolas pra pessoas bem inteligentes, festivais coloridos e grandes bibliotecas.

Ryota se recordava de ter escutado algo semelhante a respeito; ou, talvez, ter lido em algum lugar. De qualquer forma, Urânia, ainda que apenas remanescesse através de sua cultura e estilo de vida nas terras de Thaleia, com seus povos vindos de lá há anos, ainda permeavam os mesmos pensamentos. 

— Acha que vamos ver alguma coisa assim quando chegarmos lá?

— Não sei.

Dio falou com ar e olhos brilhantes dignos de uma criança de sua idade, abraçando ainda mais forte o filhote que dormia em seus braços. Suas pernas, que não alcançavam o chão, balançaram.

— … Sempre fiquei pensando como deveria ser a sensação.

Ryota olhou para o garoto que erguia as íris áureas para os céus, através da janela. Conforme o trem seguia em uma velocidade maneirada, a paisagem passava adiante, apresentando campos embelezados pela luz do sol, montanhas recheadas de árvores e o oceano cobrindo até onde a vista alcançava. 

Para Dio, era uma bela vista. Havia calor e cor naquele mundo, aconchegante ao máximo. Experimentando uma nova vida, viajaria ao redor do mundo para conhecer uma cidade e dar à mente ares completamente diferentes dos que estava acostumado a ver.

Baixou os olhos azuis para o menino que se deleitava com a paisagem e soltou um discreto suspiro. Às vezes, ela se esquecia de que Dio fora, outrora, alguém que viveu nas ruas ao lado de seu pequeno e único companheiro. 

… Com exceção dos outros garotos que permaneceram no caos da capital real.

Ryota piscou fortemente para a lembrança de seus corpos espalhados pelas ruas e concentrou-se no presente. Dio deixou seu cachorro de lado, deitando-o no banco, e subiu nos joelhos para ganhar mais altura. Desta forma, foi capaz de enxergar um pouco melhor, e o pequeno sorriso começou a tremer na face infantil.

Com um marejar dos olhos azuis escuros, quase pôde ver a si mesma em seu lugar — uma criança que saiu do ambiente ao qual viveu por tantos anos, pronto para vasculhar o mundo em busca de novas experiências e oportunidades.

Ryota encontrou Dio pela primeira vez durante um evento um pouco peculiar na capital real, sendo interceptada por um grupo de adolescentes enquanto procurava por uma ladra. Foi uma atitude tomada pelo impulso de justiça de uma garota do interior, supostamente arrependendo-se mais tarde daquela tola e imatura decisão. 

Entretanto, foi graças a isso que encontrou o grupo, trocou palavras um pouco constrangedoras para qualquer um que visse de fora, e partiu com seu idealismo de nobreza atrás de Marie — que, na época, ainda era apenas uma garotinha com seus treze anos de idade que adorava pregar peças e roubar como método de compensação.

Enquanto conversava com o grupo de marginais juvenis no beco, trocou olhares com o garoto de roupas e cabelos sujos, mas com um brilho de vida as íris que ainda representava a existência da criança dentro de si. E foi assim que, em determinado momento, Ryota acabou vendo-o pela primeira vez, mas acabaram se reencontrando uma semana mais tarde, durante a Coroação.

… Ainda era um evento difícil de recordar. Haviam memórias dolorosas demais que eram revividas sempre que o assunto entrava em sua mente — e Dio não deveria ser exceção. Entretanto, oposto à ela, o menino ainda mantinha estampado em sua face a felicidade de uma criança esperançosa ao futuro. Ryota se esforçou para, ao menos, dar a ele a chance de ouvir a perda dos amigos sem precisar ver seus corpos.

Ela poderia tê-los salvo.

Ela poderia ter tirado os destroços de cima de seu corpo.

Poderia ter impedido que as criaturas o comessem vivo.

Poderia ter impedido que perdesse as forças até desaparecer.

Poderia ter impedido que Dio presenciasse aquelas dores — ela poderia tê-los salvo.

Mas não os salvou.

Relutou, resmungou e frustrou-se à toa — e, agora, eles estavam mortos.

Mas ela poderia tê-los salvo.

— Ah! Olhe só, moça! É um arco-íris!

Com as palmas na janela, próximo o bastante para sua respiração embaçar o vidro, Dio exclamou com ar feliz. Atravessando um feixe de nuvens, via-se o nascimento de uma linha de sete cores, quase opaca. 

Ryota não olhou para a paisagem.

Sua atenção permaneceu no menino diante de si — e nos pensamentos que se agravavam.

Dio sofreu um ferimento fatal. Enquanto conversavam, após a perda de seu avô, após o pedido de casamento de Zero, ambos caminharam pelas ruas de Hera. Ela deveria tê-lo protegido, mas o deixou morrer.

Ela viu seu pequeno corpo, bem como o do filhote, se tornar pedaços de carne quando foram rasgados aos ares, desaparecendo sob a cortina de poeira que se ergueu. Casas foram varridas e ela perdeu a consciência um instante depois, quando o braço de alguém atravessou seu corpo.

— Estava chovendo enquanto você tinha dormido… Por isso ele apareceu agora. Não é bonito?

Dio olhou para ela e sua expressão se tornou trêmula ao notar a atenção de Ryota. Ficando imediatamente desconfortável, seu pequeno corpo tremeu e ele lentamente se sentou, como se tivesse sido ameaçado por seu olhar. Provavelmente, pressupôs que sua expressão imutável era reflexo de sua irritação para com suas atitudes, chamando a atenção para coisas idiotas.

Mas ela estava apenas pensando.

Não havia perguntado a ele como foi capaz de se recuperar após tamanho dado causado. Havia apenas pressuposto que fora obra de Eliza, que possivelmente deveria estar procurando o garoto que desapareceu da Fortaleza, onde deveria permanecer para estar em segurança.

Ryota pressupôs que, após levarem-na, as Autoridades acreditaram que o menino fora morto de imediato — e ela também pensou assim. O sentimento de falha que assolou seu peito foi profundo o bastante para rasgar um pedaço ainda maior de seu coração, que já estava em pedaços.

Lembrava-se de ter sentido os olhos marejarem e o peito doer tanto ao ponto de querer arrancar algo de dentro para fora com as próprias mãos. Mas aquele vazio, aquele sofrimento, foi sobreposto pelas visões da pessoa que a amou se sacrificando para que pudesse sobreviver.

— … Moça? E-Eu… Tô te incomodando?

Ryota baixou as pálpebras para Dio, que desviou o olhar.

— E-Eu… Eu sei que fui eu que disse que queria ir com você nessa viagem, e que talvez seja um pouco tarde pra dizer isso, mas… Mas, se você quiser me deixar de lado… Porque tô te enchendo o saco, ou algo assim… Eu… Não vou ligar.

Ouviu o som da locomotiva apitar, bem como as engrenagens causarem atritos agudos quando o silêncio se instalou na cabine após a fala do garoto. Apesar das palavras, o baixar de ombros e a forma como abraçou o próprio corpo indicava o completo oposto dos sentimentos apresentados. 

Ela não deveria ficar surpresa com esse tipo de atitude. Afinal de contas, estava sendo bastante injusta com Dio. 

Havia permitido que participasse de sua jornada como um mero capricho para as costas que deu para todos os demais que permaneceram em Hera — especialmente Marie —, mas não considerou adequadamente o que aquilo acarretaria. Acima de tudo, esqueceu-se de um detalhe bastante importante a respeito do menino que analisava o companheiro canino ao lado.

Dio não sabia o que havia acontecido a ela, e apenas conheceu a Ryota que buscava por uma justiça falsa. Aquela que lutava por uma moralidade estúpida, e que tropeçou nos próprios pés, caindo no fundo do poço para nunca mais ser capaz de voltar.

Sentia como se, na verdade, estivesse cavando para cada vez mais fundo com as próprias mãos, a terra entre os dedos aprofundando-se na carne ao ponto de expelir sangue.

Ainda mais sangue para manchar suas palmas.

Dio olhava para ela com um brilho de expectativa nas íris. Ele esperava uma resposta confiante, animadora. Talvez, até idealista e cega.

Ele esperava ver a Ryota que tinha dado dinheiro do próprio bolso para garotos de rua porque acreditava em justiça. Esperava ver a garota que sangrou e se machucou por desconhecidos para que não precisasse mais chorar ou se frustrar com os próprios demônios.

A pessoa que desejava uma resposta era “aquela”, e não essa Ryota.

E, mesmo sabendo que estaria traindo as próprias origens, ainda assim, decidiu concordar com os pedidos daquele garoto de ar gracioso.

Dio era uma criança que, apesar das vestes, seu comportamento e aparência traziam um ar de elegância. Era quase como se suas origens fossem diferentes do mundo em que viveu, e parte disso se refletia na forma com que agia perante os outros.

Talvez a razão para se manter tão preso à garota estivesse relacionado a isso. Ao fato de ter visto nela uma luz, alguém para pedir por ajuda. 

Alguém que poderia pegar a mão estendida.

Mas não importava o quanto tentasse, Ryota jamais foi capaz de alcançar uma mão — e, se a pegou, soltou-a por um período muito curto para sustentá-la.

Caso agarrasse a palma daquele menino, agora… Saberia que ele morreria.

Ela era uma pessoa que estava circundada pela morte, e veio carregando-na como um encosto, atravessando tal energia para todos que estivessem ao seu redor. 

Era grotesco de imaginar, mas a verdade sempre foi terrível.

Mentiras eram fáceis de manter — mas acabou descobrindo isso tarde demais.

Ryota considerou que, da mesma forma que apontou o dedo e acusou aqueles que usaram máscaras para esconder fatos importantes e sentimentos, estava aproveitando-se de outro coração puro para satisfazer suas vontades. E, acima de tudo, proteger seus medos.

Por que havia aceitado o pedido de Dio?

Eles sequer se conheciam.

Não eram amigos.

Não havia razão para levá-lo consigo.

Era apenas um garoto que via nela uma imagem inexistente, uma falha, uma mentira. Uma farsa.

Sabia que estava cometendo um erro terrível. Sabia que estava sendo cruel. Sabia que estava perseguindo o mesmo pecado cometido contra ela, como um ciclo interminável de dor.

Deveria ter sido ela mesma a cortar esse mal, não? Havia visto com os próprios olhos o quão terrível era viver uma mentira, descobrindo tardiamente a verdade que poderia ter salvo vidas.

Poderia ter salvado pessoas queridas.

Jaisen.

Albert.

Fanes.

Kanami.

Zero.

Ryota viu a si mesma quebrando a janela da cabine e lançando-se da abertura. Enxergou o próprio corpo batendo contra os trilhos, esmagado pela locomotiva. 

O piscar de olhos, não mudando a expressão apática por um milésimo de instante, não revelou o pensamento intrusivo que invadiu sua mente.

— Por que decidiu embarcar neste trem?

— … Uh?

— Por que você não ficou em Hera?

Ao invés de responder apropriadamente à oferta, Ryota desferiu uma variedade de perguntas a Dio, que grunhiu em surpresa, arregalando os olhos. 

Expirando fundo o ar que havia preso em seus pulmões, cruzou os braços, como se protegesse o próprio corpo.

— Se tivesse ficado na capital, poderia ter conseguido um tratamento adequado. Mesmo que não tenha uma casa ou pessoas para onde voltar, haveriam responsáveis melhores para cuidar de você do que eu.

Ryota lançou aquelas palavras que fincaram como lâminas no coração do garoto, sem piedade. Estava pronta para fazê-lo entender como as coisas eram. Ela não era uma pessoa admirável ou digna de tomar conta de qualquer outro ser que não fosse a si mesma.

Era certamente um pensamento egoísta e ligeiramente arrogante, mas não podia fazer nada se era a verdade. Ryota não estava disposta a explicar as coisas para o garoto, pois algo em sua mente dizia que não haveria sentido em fazer isso.

Dio era apenas um menino abandonado à própria sorte — que vantagem haveria em contar a respeito da razão de sua mudança?

Aquilo apenas traria memórias desagradáveis à mente e faria uma criança preocupar-se com assuntos que não eram de sua conta. Portanto, ao invés de um meio direto, Ryota olhou para Dio com ar de seriedade, não deixando de expor sua desconfiança para a decisão dele. 

Se permanecesse na capital real, todos aqueles que foram vítimas das destruições causadas pela Ritus Valorem, perdendo entes queridos e moradias, seriam devidamente compensados. Novas construções foram demandadas graças aos esforços de Edward e do trabalho caridoso de Fuyuki. Ambos, em conjunto, ao lado de outros membros da nobreza, foram responsáveis por abaixar a poeira desde que o assunto reverberou na boca das pessoas.

Atentados de seres além da compreensão humana — achavam que eram casos isolados, destoantes de sua realidade. Entretanto, eles estavam ali, a poucos passos de distância, apenas aguardando o momento ideal para surgirem. 

A todas as crianças que ficaram órfãs, foi-lhes enviados aos abrigos uma quantidade grandiosa de roupas, alimentos e mantimentos. Como uma das representantes que pessoalmente trabalhou para proteger a cidade, havia um senso grandioso de responsabilidade em suas costas que não poderia ignorar.

Ryota sabia que Fuyuki era uma pessoa de coração gentil — entretanto, aquele mesmo coração usou todos aqueles que estavam ao seu alcance para atingir seus objetivos, escondendo a verdade para que não precisassem encarar complexidades maiores.

Ela era uma grande hipócrita.

Apesar do aperto em seu peito que quase a sufocou, não se arrependia das palavras direcionadas à duquesa no quarto de Zero, meses atrás. E, também, não voltaria as costas para ela durante a despedida, não importava o quanto seu emocional tendesse a desejar por isso. 

Não havia necessidade de mais palavras serem trocadas. 

Mas Ryota nunca mais confiaria nela de novo.

Como resultado, também decidiu que seria sincera com aqueles que ainda tinham coração puro o bastante para serem usados. 

Pessoas como Dio, que a olhavam como se pedissem por ajuda. Entretanto, se não havia salvação nas mãos dela, não existia razão para enganá-lo, fingindo que sim.

Era por isso que desejava saber a verdade. Por que Dio, mesmo ciente dos benefícios em permanecer em Hera, decidiu segui-la? Por que ela? Não havia qualquer benefício ou laço que pudesse uni-los. Mas, ainda assim…

— Porque eu quis.

Essa foi a resposta dele, após um instante de silêncio. Então, com os grandes olhos vidrados na expressão fria dela, abriu um sorriso tímido e solitário — como o de alguém que enxergava uma pessoa querida que sofria.

— … É tão estranho assim?

— O quê?

— Querer ficar perto de quem a gente gosta… Porque sim. A-Acho que pra essas coisas… Não existe um “porquê”.

Ryota franziu a testa, apertando ainda mais os braços cruzados contra o corpo.

Ela sentiu uma onda de enjôo, mas sua garganta se fechou com uma trava.

— … Não entendo.

— H-Hã?

— … Eu não entendo.

Ryota resmungou consigo mesma, escondendo uma expressão dolorosa por trás dos cabelos compridos. 

Por que você gosta de mim? O que eu fiz pra merecer esse sentimento? Por que… Você me olha como se eu fosse tão importante pra você, afinal?

Queria fazer aquelas perguntas com ar ríspido. Queria ser capaz de erguer a voz, afastar o garoto que sorria com ar triste para ela. Porém, foi incapaz de fazer isso, então apenas guardou para si o amargor que inundou seu estômago, tingindo-o com uma sensação de queimadura.

— Acho que é como… O amor de um cachorro.

Dio, alheio ao conflito interno dela, interpretando suas perguntas com objetivo diferente do intuito original, virou a cabeça para o filhote que dormia. O cachorro de raça consideravelmente comum chamado de Lion soltou um chiado agudo, como se sonhasse, remexendo uma das patas traseiras em movimentos circulares.

— Quando você cuida dele, dá comida, carinho e leva pra passear… Ele gosta de você, e quer te compensar por isso. É como… Como trocar amor por amor. E a gente não costuma ficar perguntando a razão disso, apenas… A gente apenas sente.

Passou a mão pelas orelhas do animal, que soltou outro barulho, ainda dormindo. Dio sorriu com calor para aquele gesto, então ergueu o queixo para Ryota, inclinando a cabeça.

— Ao menos… Acho que é assim que funciona. 

— Mas cachorros possuem um instinto natural de lealdade. Está no sangue deles se comportarem assim. Não se pode comparar um ser humano a um animal.

Ryota foi grosseira na resposta, e um pouco veloz. Mas ao invés disso deixar Dio magoado, pareceu contentá-lo — saber que o escutava era sinal de atenção, e até nisso o pequeno garoto se assemelhava a um filhote.

— Bem, talvez. Mas o mesmo não vale pra gente?

Os ombros de Ryota baixaram.

— Antes de duvidar de alguém, a gente nasce acreditando nas coisas, e nas outras pessoas. Só acabamos ficando desconfiados quando algo ruim acontece… Mas se a gente for bem tratado e sentirmos o laço de confiança… Ele não acaba sendo um amor tão puro quanto o de um animal?

Era uma lógica um pouco simplista, mas não era como se o garoto estivesse ligando para detalhes minuciosos. Dio era uma criança, então não havia razão para contrariá-lo com unhas e dentes, e nem havia necessidade. Sua personalidade pacífica fazia até mesmo os mais impulsivos pensarem duas vezes antes de falar, tremendo magoar o coração puro daquele jovem.

Não era justamente sobre isso que estavam discutindo? 

Se aquela alma infantil fosse manchada por mentiras e complexos falsos, o que seria dele? Para onde iria aquela confiança, aquele brilho nos olhos, aquela expectativa? 

Caso seu comportamento mudasse drasticamente, tornando-se agressivo, certamente aquela criança mudaria. Assim como um cachorro, que entende quando estamos sendo cruéis perante um ato de violência ou de erguer o tom de voz para repreendê-lo, o ser humano aprende com a dor e a diferença de tratamento conforme passa por experiências difíceis.

Ciente daquilo, não foi capaz de divagar outra resposta para ele, sequer retomar a pergunta original ao qual falavam. O silêncio, que antes era angustiante, tornou-se ligeiramente agradável para a dupla que seguia viagem.

Em determinado momento, apenas alguns minutos mais tarde, quando a locomotiva fez uma pausa, ambos permaneceram na cabine. Enquanto Ryota girava os ombros doloridos e buscava algo em seu bolso, ouviu a porta de correr sendo aberta. Quem surgiu pela fresta foi um senhor de aparência simpática com uma bandeja preenchida por potes de plástico.

Neles, haviam bolos gelados, recém saídos da geladeira. Os olhos de Dio se encheram de um brilho majestoso ao ver a variedade de recheios e cores. Havia passado um pouco da hora de um lanche da tarde, e o sol não pegava leve naquela temperatura de fim de ano. Com o verão dilacerando suas peles e fazendo os corpos suarem mesmo sob o ar condicionado, ela não poderia culpar o menino por desejar algo que saciasse sua sede.

Sem dizer nada, apenas sacou o cartão de um dos bolsos e entregou ao vendedor. Dio abriu a boca em surpresa, como se não acreditasse no que via, e riu baixinho. Quando o vendedor saiu, devolvendo o cartão e fechando silenciosamente a porta de correr da cabine, o menino sentou-se com um grande sorriso no rosto com a colher atravessando a massa.

Ao seu lado, Lion soltou um latido agudo. Ele parecia estar igualmente faminto. 

— T-Tá bom, tá bom, eu divido com você…!

— Não dê bolo a ele. Vai fazer mal.

— Ah, não se preocupe. O Lion é um cachorro bem diferente, ele come de tudo.

— Não foi isso o que que quis dizer… Huh?

Enquanto Dio desviava dos avanços do filhote que pulava em seu colo e Ryota fez um alerta quanto à saúde do animal, seus olhos se abriram um pouco em surpresa quando o menino, ao arrancar um pedaço do bolo e levar a boca, parou e estendeu tanto pote quanto colher em sua direção.

— Quer?

— … Não, obrigada.

— Tudo bem!

Dio parecia mais alegre com o doce nas mãos, e levou como um aviãozinho a colher de plástico à língua. A explosão de sabores o fez soltar um gemido de felicidade, ao que Lion continuou a latir, impaciente. O menino apenas soltou um “certo, certo” antes de colocar a tampa em cima do banco, tomando um pedaço do bolo e colocando-o sob ela.

— Aaah! Come devagar!

O garoto ficou assustado com a velocidade que Lion limpou a tampa, lambendo até o último resquício de chantilly, antes de erguer os olhos grandes com expectativa querendo mais. A um suspiro e murmurando algumas falas macias, Dio colocou mais bolo antes de rapidamente voltar a comer, esperando que seu filhote não devorasse tudo sozinho.

Enquanto ambos se distraíam e o trem não voltava a se mover, Ryota fechou os olhos. Imaginou que poderia descansar um pouco mais antes de chegar a Urânia, pois ainda tomaria mais algumas horas. Entretanto, parecia que não importava o quanto descansasse, a exaustão jamais desaparecia. 

Sentia que poderia dormir pela eternidade, se possível.

Entretanto, antes que sua mente vagasse para o mundo dos sonhos — mesmo ciente de que acabaria despertando sob pesadelos outra vez, era melhor do que continuar com pensamentos incômodos —, lembrou-se daquilo que trazia consigo.

Dio não reparou quando ela discretamente passou a mão no próprio bolso, sacando um objeto do tamanho de sua palma. Era um bloco de notas relativamente abatido, mas com as páginas inteiras e uma caneta de quatro cores presa na espiral.

Passando o dedão por cima da capa, um aperto brotou em seu peito quando leu o nome do dono do bloco de notas, colado com uma fita crepe e escrita a uma letra cursiva delicada.

ZERO

Ryota se lembrava de tê-lo visto escrevendo no pequeno caderno quando ainda não havia partido para a capital real. Por vezes, o via sentado na janela fazendo expressões que normalmente não veria, e sempre se exaltava quando qualquer um se aproximava. Ele escondeu o bloco de notas, não permitindo que ninguém o lesse.

Não havia se lembrado da existência dele até Sora lhe entregar o item durante a leva de meses que se passaram. A princípio, estranhou que o caderno estava com ele, mas o assassino foi rápido em se explicar.

— Zero o trouxe quando viajou para a capital. Por vezes, eu o vi fazendo anotações nele, mas, novamente, ele jamais permitiu que eu visse… Obviamente, não fui indelicado em ler sem sua permissão. 

A expressão tão apática quanto a dela, os cabelos negros curtos e os olhos vermelhos sem vida se voltaram para ela com ar de solidão.

— Entretanto, acredito que o bloco deva permanecer com a senhorita, e não comigo.

Ela pegou o bloco e agradeceu ao gêmeo, sentindo um aperto no peito ao vê-lo dar um cumprimento, curvando o corpo antes de ir embora. Sentia que a distância entre eles havia crescido, mas não culpava o gêmeo por tomar aquela atitude.

Havia o problema de Kanami — e, também, a discussão com sua mestre Fuyuki.

Era óbvio que acabariam se separando após tamanha humilhação.

Mas ela sentiu, bem no fundo, saudades do comportamento sarcástico que costumava ter sempre que se encontravam.

Inspirando fundo para guardar as memórias no fundo da mente, Ryota piscou para o bloco de notas nas mãos. Ouviu o som de pessoas andando, possivelmente se posicionando para que o trem partisse. O apito soou em seus ouvidos no mesmo instante em que seus dedos tocaram na capa do bloco.

E, assim que ergueu a primeira página, a locomotiva acelerou bem a tempo da porta de correr se abrir e duas armas serem apontadas para as cabeças de Ryota e Dio.



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