Volume 8 – Arco 3
Capítulo 99: Vazio
A mente que raciocinava, de repente, tornou-se nublada e tão branca quanto a neve. A capacidade de mover os membros de seu corpo, que queimava como se tivesse sido largado às chamas, lentamente se esfriava ao ponto de amortecer. Em um instante, a memória que buscava uma forma de contornar a situação a se desenrolar, agora, tornou-se um imenso vazio.
Seus passos velozes soavam por seus ouvidos, desesperados para alcançar a pessoa à sua frente. Eram apenas mais alguns metros, apenas mais um pouco para que pudesse mudar aquele fim. Quando seus olhos azuis deslizaram para a cena, para a mulher que estava prestes a finalizar o combate, seu coração bateu tão rápido que o som desapareceu, assim como o tempo e espaço. Para Ryota, que disparou a toda velocidade que conseguiu colocar nas pernas bambas, o mundo se tornou oco.
O corpo enfraquecido pela marca do voto não foi capaz de dar seu melhor para alcançar o objetivo. A mão estendida na direção das duas figuras, como se pudesse pará-las a uma distância enorme, bateu ao vento e nada tocou. O grito de desespero, o chamado por sua voz e os grunhidos emitidos por sua garganta enquanto lutava para parar a cena ardiam como brasa.
Em menos de cinco segundos de movimento, em que corpo e cérebro compreenderam a situação, nada poderia ter sido feito para impedir aquele fim. O destino de um pecador estava selado desde o momento que cometera seu primeiro erro, e aquilo valia para todos os presentes na cena. Para Albert, um homem que tomou decisões inexplicáveis por um futuro utópico; para Gê, que enquanto beirava a loucura para matar aquele que lhe causou sofrimento, hesitou um instante antes de dar o golpe final, e portanto a morte causada não lhe trouxe sossego; e para Ryota, que ao tomar ações precipitadas, laçou um destino para si mesma impossível de ser mudado.
As lágrimas, que começaram a escorrer antes mesmo que o fim chegasse, chegaram ao chão no segundo exato que uma raiz grande como um tronco de árvore atravessou o corpo do velho de cabelos brancos. Em um mero segundo, Ryota viu seu avô ganhar um enorme buraco no peito e cair de costas no chão, o corpo voando para longe com o impacto antes de parar completamente. O rastro de sangue se espalhou, e então começou a se acumular abaixo do cadáver.
O chamado por seu nome não foi o bastante para interromper a passagem, e Albert havia recebido o golpe final. Seus pés pararam, sem rumo, e Ryota sentiu que o ar fugiu de seus pulmões. O mundo tornou-se escuro lentamente, como se uma borda começasse a crescer ao redor de seu campo de visão. O queimar de seu corpo lentamente desapareceu, e apenas a entorpecência do desespero se acumulou. Sua boca, ainda aberta do último grito, permaneceu daquela forma quando começou a soluçar e gaguejar pequenos gritos.
— … Aaaah… Aaaaah… Aaaaaarhhh…?
Ryota sentiu que iria desmaiar. Com a pele perdendo a cor e a pressão caindo, suor escorreu por suas costas, mãos e rosto. A visão, mesmo escura, ficou borrada e manchada pelas lágrimas.
— … Aah? — Ryota arfou dando um passo adiante e quase sentindo seus joelhos cederem — … N-Não… Não, não…
Mas antes que pudesse ser levada pela escuridão que ameaçava apagar sua mente, a vontade de tentar entender a situação a fez mover seus pés. Muito lentamente, eles voltaram a se arrastar, até finalmente serem pisadas mais fortes que a fizeram correr como se a gravidade não existisse na direção do corpo.
Ryota passou correndo, sem norte, na direção de Albert. Gê, enquanto isso, sentiu que algo dentro dela se despedaçou. Foi um misto de felicidade, pois ela estava sorrindo. Era uma risada sem-graça, quase como se comemorasse algo desconhecido. E, em seguida, seus joelhos cederam e ela caiu no chão, ainda rindo um pouco. Seus braços bateram no solo cheio de poeira e ela fez o mesmo com a testa. O baque foi forte o bastante para escorrer um fio de sangue até seu nariz. As íris negras perderam o brilho e a curandeira, que momentos antes se permitiu duvidar outra vez de seus meios, não sentiu nada dentro de si quando atravessou o corpo daquele homem.
Nem mesmo ao vê-lo sangrar até a morte, nem quando vomitou diante dela ou sorriu. Em momento algum a satisfação pulsou em seu peito, e o peso de seus ombros, na verdade, pareceu se tornar ainda mais duro de carregar. Talvez foi por isso que havia se encolhido daquela forma, apoiando-se nos joelhos e cotovelos, enquanto lágrimas escorriam por seu rosto pálido e frio. Ela estava rindo, mas não sabia de quê. A origem de suas ações uniu-se com a confusão do objetivo, e tudo o que Gê sentiu ao completar sua vingança… Foi um profundo vazio.
Sua mente, corpo e coração não mais existiam. Elas se tornaram um profundo negro, tão duradouro e difícil de lidar quanto qualquer outra coisa que sentira em sua vida.
Tamanho buraco em suas almas não poderia se preencher. E Ryota, que parou diante do corpo de Albert, sentiu o mesmo quando suas pernas perderam as forças e ela caiu ao lado do avô. Seus braços, moles, ergueram as duas mãos trêmulas. A garganta queria dizer algo, chamar seu nome. Queria sacudi-lo com força, mas não encontrou uma forma de fazer aquilo. Queria colocar o ouvido em seu peito e escutar seu coração, mas tinha medo do que aconteceria. Queria tocar seu pulso e sentir batimentos, mas e se nada ouvisse em resposta?
— … Ghu…
Ryota resfolegou ao ouvir um gemido, e ela imediatamente aproximou seu rosto do homem que tinha sangue escorrendo pelos lábios. Em um instante, viu que seus olhos permaneciam abertos, sem qualquer brilho… Mas, de alguma forma, ele tentou erguer o pulso direito na direção dela, e a garota imediatamente o segurou. Era leve e macio, mas esfriava a cada instante. Seus dedos trêmulos tocaram a pele enrugada que era branca o bastante para enxergar as veias, quase como se pudesse olhar através de sua palma. A mão não devolveu o aperto, mas mesmo assim ela não a soltou.
— … V-V-Vo… V-Vovô…? — estava soluçando demais para sequer pronunciar uma palavra, a perda do ar não a ajudou a se estabilizar.
As lágrimas escorreram ainda mais quando Ryota o ouviu responder — algumas delas rolaram pelo braço dele.
— … A-Ah…
Ele parecia estar engasgando com o sangue. Era terrível ver seu corpo, ainda de olhos abertos, se remexer um pouco, como se lutasse com as forças restantes. Os sons quase inaudíveis que saiam de sua boca eram difíceis de serem escutados, e Ryota inclinou seu corpo para mais perto, temendo tocá-lo. Seu ouvido alcançou uma distância saudável dos lábios dele, manchados de vermelho.
Eles se moveram devagar, emitindo gemidos.
— … A-Aqui...
Ela ouviu um murmúrio e, ainda com lágrimas nos olhos, piscou para entender o significado delas. Foi quando percebeu que havia algo amarrado no pulso direito — era uma pulseira de fios pretos. Parecia gasta, velha, e alguns pequenos fios saltavam das amarras.
Ryota sentiu seu corpo perder o peso e flutuar para longe, sua mente vagou para o passado como em um choque. Aquela fora um dos presentes dado por ela quando ainda era criança, feito a mão. Com uma costura mal feita — afinal, eram dedos de uma menina que mal havia completado seis anos de idade —, ela o presenteou em uma de suas viagens para Aurora.
“O vovô sempre me dá presentes quando vem, mas dessa vez eu quero dar um pra ele!”, foi o que disse à mãe.
“Está bem, querida. Vamos fazer algo para o vovô, juntas.”, foi a doce resposta de sua mãe, dando um sorriso.
O que restava de brilho em seus olhos se desmanchou, tornando-se opaco, ainda mais vazio. Ryota percebeu que os dedos de seu avô se moveram um pouco, apontando para ela.
— … que…
— … “Fi… Que”...?
Os lábios dela se apertaram ainda mais para conter a carga de emoções que a fizeram se debulhar em lágrimas, e Ryota retirou a pulseira que Albert, colocando em si mesma. O calor de seu corpo, agora, havia se esvaído completamente. Parecia que, em pouco tempo…
— … Vo… Vovô… Eu… Procurei por você… Pelo senhor, por tanto… Tan… Tanto tempo… E-Eu… — Ryota gaguejou, perdendo o ar ao se inclinar novamente para perto dele — … Eu…
Ryota sabia que ele não tinha muito tempo. Ela não sabia se podia ouvi-la, ou sequer entender suas palavras. Era esperado que não, pois a própria sequer conseguia formar uma frase adequada. Entretanto, havia tanto dentro dela para ser dito, tanto para ser explicado, tanto para ser ouvido…
Sentiu que a mão dele segurou suavemente seu queixo, e seus dedos frios passaram por suas lágrimas, enxugando uma bochecha.
— … O-O… Ga… Do…
— … Sim, sim — ela resmungou de volta, resfolegando — … Eu te amo, vovô…!
Ela não sabia se suas palavras o alcançaram — apenas viu que, enquanto pronunciava a última frase, a mão que acariciava seu rosto despencou, batendo contra seu peito. Uma singela, pequena e solitária lágrima escorreu por um dos olhos dele, parando perto do nariz. E, então, Albert não mais se moveu.
A princípio, a carga que havia disparado pelo corpo de Ryota apagou como uma vela ao vento. A queimação de seu corpo desapareceu, e ela sentiu que estava ficando tudo escuro, tão frio quanto um abraço do inverno. Os sons ao seu redor desapareceram, e, em sua visão turva pela queda da pressão e lágrimas, havia apenas o cadáver de seu avô. Ela não soltou sua mão até o final… E, de certa forma, foi quase como se pudesse senti-lo se tornar completamente vazio de um segundo a outro.
Seus dentes que rangiam das lágrimas pararam os movimentos e os sons, estagnando-se no lugar. Os ombros dela, que tremiam, assim como as mãos, congelaram. A respiração entrecortada, difícil, se estabilizou de repente, mas tornou-se lenta o bastante para entrar apenas o ar necessário em seus pulmões. Os olhos azuis dela, agora sem vida, sem qualquer noção da realidade, se estreitaram, e sua cabeça baixou um pouco — os cabelos esconderam sua expressão.
Eu…
Ryota sentiu como se o mundo se tornasse sombrio, um grande vazio. Não havia som, calor ou movimento.
… Falhei.
Não havia corpo ou vida.
Por quê?
Sua mente era um breu completo, mas o raciocínio ilógico, os pensamentos pertubáveis que a faziam querer vomitar, de repente, a atingiram como um baque.
… Por que eu vim pra cá?
Ela olhou para o corpo de seu avô.
Por que eu vim atrás… Dele?
Por o que pareceu uma fração de segundo, o rosto dele se tornou censurado aos seus olhos.
Por que… Eu sai de casa?
Era quase como se sua mente retornasse ao passado, quando ainda sequer havia presenciado o segundo inferno.
Eu… Cometi outro pecado?
Uma azia que queimava sua garganta subiu.
A culpa é minha? Eu… Eu matei meu avô? Foi porque eu vim pra cá? Porque eu decidi me importar com ele? Acreditar em suas palavras?
Lentamente, o frio completo começou a esquentar.
Então, se é assim… Por que ele morreu?
Hã? Morreu? O que isso significa? Ele… Não vai… Mais poder…
O choque de realidade era difícil de lidar, e Ryota sentiu como se suas memórias entrassem em conflito com a carga de informações. O mundo girava, o estômago queimava e seus olhos ardiam.
Mas ela não deixou de segurar a mão fria dele.
… Não. A culpa… Não é… Apenas minha.
As lágrimas que escorriam começaram a secar, a evaporar.
Eu… Cometi outro pecado. Eu… Falhei em proteger alguém… Mais uma vez… E outra vez, e mais uma vez… Eu… Hesitei… Eu… Virei as costas, e desisti… Eu… Eu… Eu…!
Lembrou-se de cada um dos corpos. Cada. Um. Deles. De todos os gritos, todo o sangue, todas as chamas, todos os sentimentos que pareciam socar seu estômago e face cada vez mais forte. Como se os pensamentos a espancassem, pisando em seu coração rachado e remendado. Por fim, se tornaram cacos estilhaçados que não poderiam ser remendados por suas mãos manchadas em sangue e feridas.
Seu corpo colocou-se de pé. Os movimentos eram cambaleantes, e a sensação de mundo não existia. Era como se assistisse a si mesma, mas não fazia ideia de como, ou quando.
A realidade, para ela, assim como jazia o corpo sob seus pés, era vazia.
Apenas dessa forma… Apenas esvaziando sua mente e ignorando as consequências de seus atos, daquilo que a machucaria… Daquilo que aconteceria a seguir… Poderia se erguer.
Seus olhos deslizaram, lentamente, na direção da mulher encolhida no chão.
Ryota não sentia mais a dor da marca do voto — natural, pois ele não mais residia em seu corpo. A origem de sua promessa fora destruída, portanto, ele não mais precisava existir.
Mas, mesmo estando fraca, mesmo que as lágrimas escorressem sem parar, evaporando antes de pingarem de seu queixo, a garota saltou na direção da curandeira com um único passo. O poder concentrado em seus pés permitiu que tal velocidade fosse alcançada, e, no mesmo instante, um chute em sua orelha fosse desferido. O calor que acumulava-se nos membros de seu corpo era quente ao ponto de queimar, e o corpo de Gê quicou pelo chão, batendo e contorcendo antes de parar a uma longa distância.
Entretanto, não importava o quão distante ela fosse, Ryota era capaz de alcançá-la. Ao concentrar chi em seus pés, a velocidade alcançada superava a visão, e imediatamente estava diante de Gê novamente. A mulher, que não se defendeu ao golpe, apenas se levantou um pouco, olhando para cima com olhos igualmente vazios, antes de receber um nocaute com as mãos cruzadas em sua cabeça. De cima a baixo, o acerto em cheio fez Gê perder os sentidos e seu rosto foi de encontro com o solo, abrindo um verdadeiro rombo que tremeu a terra.
Ryota nada disse enquanto desferia aqueles ataques — na verdade, apenas um rugido animal saia de sua garganta, como que a rasgando. Em seguida ao golpe, ela a puxou pelos cabelos negros, arrancando fios, e a jogou para trás. Como não foi capaz de conter-se em pé, o corpo dela apenas bateu contra a parede e escorregou, mas a garota que vinha como uma fera imediatamente colocou-se sob ela, desferindo socos e chutes.
Em determinado momento, quando sangue e ossos foram destruídos, mas a curandeira não moveu ou disse nada, Ryota olhou para o resultado de sua fúria. Ela havia caído sentada, de pernas abertas e cabeça inclinada para o lado. Havia perdido o braço esquerdo e, agora, que não podia conter a hemorragia, o sangue escorria. O jaleco se manchou-se de vermelho, e respingou ainda mais quando Ryota começou a socar a face de Gê.
Eram golpes lentos, mas doloridos o bastante para fazer os dentes dela voarem. Sangue escorria de seus lábios, espirrando na face da garota enfurecida, mas não se importou.
Apenas socou, socou, socou e socou.
— RAAAAAAAAAAAAAAAAAAARRRRGH!
Ryota rugiu como uma besta no rosto de Gê, prestes a dar outro golpe com as mãos cruzadas em sua orelha.
Entretanto, algo gelado segurou seus braços e pernas, puxando-a para trás. Seus movimentos foram impedidos e não foi capaz de alcançar seu objetivo, o que a deixou furiosa. Ela virou seus olhos azuis na direção da pessoa que surgiu, usando seus poderes para puxá-la para trás, afastando-a de sua adversária.
Foi naquele instante que, mais uma vez, um imenso vazio inundou a mente dela.
Afinal, o que segurava seus membros, a impedindo de se mover, eram como amarras de sombra. E, diante dela, colocando a mão nas costas da mulher de face e corpo destruídos. estava um rapaz que vestia preto. Sua expressão triste era dolorosa, e ele deslizou aquele mesmo olhar na direção da garota que sentiu seu mundo se desfazer mais uma vez. A fúria deu lugar ao espanto, que sobressaltou-se ao choque completo, congelando cada um de seus neurônios.
Kuro franziu a testa.
— … O quê? — murmurou Ryota, sentindo sua voz rouca — … O que você tá fazendo? Por que…?
Foi quando percebeu o cachecol violeta que estava preso no pescoço da curandeira — agora, manchado de sangue. As lágrimas pararam de evaporar, e Ryota encolheu seu corpo ainda sendo segurada pelas mãos de sombras frias, cedendo-se ao desespero do choro. Abaixou a cabeça e tremeu os ombros, soluçando alto como uma criança.
Kuro olhou para a garota e abriu a boca, parecendo querer dizer algo. No entanto, selou os lábios e balançou a cabeça, olhando com pesar para o cadáver do homem à distância e, então, para a mulher que era como uma mãe.
— … Vamos — sussurrou ele no ouvido dela, abraçando-a com delicadeza.
O afago no corpo de Gê a fez abrir um pouco os olhos negros vazios, observando a cena diante de si. Ela viu a garota se debulhando em lágrimas, aos gritos, dando socos no chão, fazendo-o tremer um pouco.
— … Não vou te perdoar… Não vou te perdoar… Não vou te perdoar… Não vou te perdoar…! — Ryota dizia, batendo no chão para se conter, e então ergueu os olhos na direção de Gê — … Você é um demônio! Morra!
— … Mãe? — Kuro franziu a testa para a mulher que acordou, enrijecendo o corpo.
Gê não o respondeu e, após isso, apenas fechou os olhos pesadamente. Em seguida, como uma coberta, as sombras os envolveram de baixo a cima, e os dois afundaram-se nela como se fosse areia movediça. Em um instante, desapareceram, e as mãos sombrias soltaram Ryota, acompanhando-os.
— Aaaaaaaaaaaaargh!
Ryota soltou mais um berro imbuído em fúria e dor, dando um último soco no chão antes de se encolher.
O mundo se tornou silencioso, e apenas o cheiro de poeira e sangue ficariam impregnados na mente de Ryota. E, mesmo que os passos de pessoas pudessem ser ouvidos, aproximando-se dela, perguntando o que havia acontecido, a garota os ignorou. Em sua mente, nada além de um breu se espalhou, assim como o mais profundo oco das paredes destruídas de seu coração.