Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 8 – Arco 3

Capítulo 95: Fanes

A primeira vez que encontrou a doce jovem de cabelos castanhos e olhos azuis foi durante o fim de uma tarde, nas ruas de Hera.

Era um fim de semana, e como de costume, Fanes estava acostumado a receber palavras horríveis de seu pai. Natural, afinal, todas as vezes que se viam e trocavam interações se resumiam a gritarias, lançamentos de pratos e copos e o forte cheiro de bebida. Na pequena e pobre casa que viviam, a infância do pequeno garoto se resumia a uma existência miserável. 

Era filho de uma mulher que engravidou na adolescência após perder-se no mundo, e então fugiu com um amante mais jovem. Abandonou o “marido” — ou melhor, aquele com quem gerou sua criança — ao lado do filho, que na época tinha pouco mais de três a quatro anos de idade. A cartinha deixada por ela revelava que havia se cansado das brigas e violências domésticas, então deixou tudo aquilo que lhe enchia a mente para trás.

Bem, e seu filho era uma de suas dores de cabeça.

Fanes não havia se importado tanto com aquilo, na verdade. Afinal, nunca recebeu o amor digno passado de seus pais. A convivência não era agradável e estava longe de ser capaz de mudar. Não haviam tios, primos, avós ou quaisquer familiares que pudessem pedir ajuda — todos os abandonaram à mercê da sorte e do destino. Era esperado depois de terem discutido e fugido, não querendo ouvir sermões ou conselhos. 

Sua mãe se perdeu e seu pai obrigou-se a descontar a frustração em atos carnais, afundando-se principalmente na bebida. Este era seu remédio para desviar os olhos das perdas, dos sentimentos e pensamentos ruins. Entretanto, ainda era capaz de ver e ouvir seu filho, que sempre permanecia em silêncio ao ouvir seus gritos, reclamações e violências aos quais era incapaz de fugir ou pedir ajuda.

Mas Fanes jamais se rebelou. Ele era, acima de tudo, uma criança capaz de abaixar a cabeça diante de situações que sabia que não poderia vencer. Por isso, apenas aceitava os machucados e palavras que mancharam seu coração. 

Foi durante uma tarde, logo depois de um prato se quebrar em sua cabeça e sangue escorrer, que ele saiu de casa para comprar mais bebida ao seu pai. Ele acabou caindo no sono, mas sua tarefa ainda precisava ser cumprida, e assim o fez. Enquanto caminhava pelas ruas acaloradas, iluminadas pela luz alva e alaranjada do pôr-do-sol, deu-se de cara com algo que fez seus ouvidos atiçarem.

Era uma voz doce e aguda, cantada em uma melodia suave e baixa. Seguindo o som, como que hipnotizado, o garoto visualizou a dona da voz e arregalou os olhos. Era uma menina que parecia ter a sua idade com cabelos curtos castanhos. Ela estava sentada no meio-fio, de olhos fechados, enquanto cantarolava sozinha.

As ruas estavam vazias e a luz do sol cobria seus corpos como uma manta. Estava sempre cansado de ver as mesmas coisas e ouvir as mesmas palavras. Estava acostumado com a rotina, mas exasperado demais para fugir dela. Porém, como uma simples criança poderia se rebelar contra o próprio pai? Que destino estaria reservado para uma pessoa assim?

Aqueles pensamentos que não levavam a lugar algum desapareceram imediatamente, e apenas o som da voz da menina sobrou. Fanes ouviu a melodia por longos minutos, completamente hipnotizado pelo sentimento doce e suave que o preencheu. 

— … Ah! — exclamou ela ao vê-lo, suas bochechas se tornando imediatamente vermelhas de vergonha — Hmmm.

Ela soltou resmungos e se encolheu, virando os olhos azuis para o outro lado. Ao silêncio dele, a garota devolveu o olhar de novo, ainda constrangida.

— Você tá aí desde quando…?

Ele apenas piscou, e então a garota suspirou. Ela inspirou fundo para conter o nervosismo e se focou.

— Esquece. Quase senti meu coração parar de bater aqui — ela levou a mão pequena para o peito, e então sorriu — Ah, eu sou Teresa. E como você se chama?

Ela estendeu a mão na direção dele e assim falou. Fanes baixou os olhos do rosto dela, das íris azuis com uma pupila rodeada por um aro dourado, para a palma surrada. A garota era pequena e suas roupas estavam sujas, mas ainda assim estava ali, o cumprimentando. 

Hesitantemente, o rapaz ergueu o braço e aproximou a própria mão da dela. E as duas se uniram num aperto bem suave. 

— … Fanes.

— Prazer te conhecer!

Naquele dia, Teresa e Fanes haviam se conhecido. Logo após aquela curta conversa, o rapaz saiu correndo para comprar a bebida de seu pai, sabendo que receberia uma bronca caso se atrasasse. Porém, não disse isso à garota, que apenas chamou por seu nome e não entendeu a razão de vê-lo ir embora tão rapidamente.

Durante a noite, enquanto ouvia seu pai falar e beber, fazendo o jantar com o pouco de comida que tinham, a mente do rapaz apenas ficou vagando longe, pensando na garota que conheceu durante a tarde. A melodia grudou em sua mente e não o soltou, mesmo quando foi dormir. E, por alguma razão, estar dentro daquela casa não o incomodou nem um pouco. Pela primeira vez em muito tempo, Fanes não se sentiu mal ou ficou preso dos próprios pensamentos.

Ele achou que não a veria mais. Deveria ter sido apenas um encontro coincidental, afinal. Entretanto, ele sempre fazia o mesmo caminho para ir ao pequeno mercadinho da esquina, e quando dobrou a esquina, dando de cara com Teresa mais uma vez, seus olhos se arregalaram como se fosse a primeira vez.

— Ah! Oi, nos encontramos de novo! — ela foi a primeira a cumprimentá-lo, balançando a mão — Aaaah, não liga pra minha roupa toda suja. É que eu e minha mãe estamos cuidando de algumas plantinhas, e elas tão todas machucadas, tadinhas… Quer ver?

Teresa imediatamente iniciou uma conversa, temendo que o garoto pudesse sair correndo de novo. E, antes que o visse responder, o pegou pela mão, arrastando-o para dentro da própria casa. 

— Nossa, você é bem magrinho, igual eu… — observou ela, passando as íris azuis pelo físico dele — Ah! Nossa, o seu rosto é tão bonito! Parece o de uma menina! 

Fanes se encolheu ao vê-la se aproximar tanto, pronta para tocá-lo no rosto. Ele não estava envergonhado, mas verdadeiramente desconfortável com aquilo. Era a primeira vez que alguém ficava interessado nele daquela forma — nem sua própria mãe o tocou tanto assim. Percebendo isso, ela se afastou, apertando os lábios.

— Desculpa, eu não quis te assustar… Ah! Olha aqui! Essa é uma rosa, tá vendo?

Teresa se agachou e apontou para o jardim diante deles. Era bem pequeno, contendo pouco mais de dois metros. Agachada diante de uma plantação, com as mãos dentro da terra e um chapéu de palha, estava uma mulher.

— Mãe! Eu trouxe um amigo. Aquele lá que falei da outra vez! — Teresa exclamou para a mulher que era uma cópia sua, a fazendo se virar e dar-lhe um sorriso doce.

— Bem-vindo, Fanes. Fico feliz em conhecê-lo.

O corpo do garoto se enrijeceu todo, e ele apenas assentiu com a cabeça.

— Fique à vontade, mas tomem cuidado para não se machucarem.

— Tabooom! Vem cá, vem!

Teresa arrastou Fanes para o outro lado da casa e continuou a lhe apontar as plantações, bem como os vasos que haviam feito naquele dia. 

— … E esse daqui acabamos terminando só ontem. Essa daqui hoje de manhã, e esse-

— … Eu preciso ir.

O garoto interrompeu as palavras dela baixinho, desviando os olhos.

— … Aaah… Por quê? — perguntou, desanimada — … Não me diga que tô sendo chata. Eu só queria ser sua amiga.

— N-Não… Não é isso. É que, se meu pai descobrir que tô na casa de alguém, ou se eu demorar muito pra voltar, ele vai desconfiar e…

Seus ombros se encolheram e Teresa imediatamente entendeu do que se tratava a situação. Sua testa franzida deu lugar a uma expressão suave.

— Então, vamos juntos! Desse jeito, a gente pode ficar junto e você faz o que precisa fazer, né? — sorriu ela ao concluir o pensamento, segurando as duas mãos de Fanes — E então?

— … Acho que sim.

— Eba! Você vai no mercadinho do outro lado da rua, né? Eu sempre te-... Ah!

Ela tapou os lábios ao perceber que estava falando algo inadequado, e suas bochechas ficaram vermelhas.

— M-Mãe! Vou no mercado com o Fanes!

— … Certo, mas não demorem!

Após se falarem à distância, Teresa segurou a mão dele novamente e começaram a andar lado a lado pela rua sem asfalto. O garoto, depois de ver a interação agradável entre mãe e filha, apenas olhou com surpresa para a menina ao lado. 

Teresa sempre foi uma criança adorável. Era o tipo que os adultos gostavam: era educada, alegre e gentil. Aparentemente, assim como a mãe de Fanes, seu pai acabou deixando as duas para trás, mas a família de Teresa sempre as ajudou. E, acima de tudo, as duas, que viviam juntas, se amavam o bastante para continuarem a viver daquela forma. 

Fanes descobriu tudo isso, e cada vez mais, todos os dias ao passar diante da casa dela. Sempre que fazia isso, ela estava diante da porta, distraída. Às vezes, cantarolando; outras vezes, apenas mexendo nas plantas; às vezes, apenas olhando para os lados, como se procurasse alguma coisa ou alguém. E, toda vez que seus olhos se encontravam, um doce sorriso se abria em seu rosto, e ela chamava por seu nome:

— Fanes!

O tempo passou, e dessa vez foi o próprio garoto que começou a procurá-la com os olhos. Ele passou a prezar por sua companhia, mesmo que ficassem juntos por menos de uma hora. Os dois conversavam, compartilhavam sorrisos e doces, e andavam pela única rua. Se o pai de Fanes descobriu ou não aquilo, não deu qualquer sinal. Talvez ele sequer se importasse, no fim das contas. Mas, por garantia, o garoto decidiu que não testaria sua paciência e apenas continuou a cumprir com suas tarefas.

Porém, cada vez mais, seu humor e personalidade mudaram. Ele começou a sorrir mais e sua timidez se retraiu. A contagiante alegria de Teresa o fez se sentir mais confortável em expressar seus sentimentos e pensamentos, e lentamente os dois começaram a compartilhar os mesmos hobbies. O mundo cinza e monótono dele se tornou colorido e divertido, e todos os dias ele ansiava buscar suprimentos e bebidas no mercadinho — tudo para encontrá-la mais uma vez.

— Sabe, eu queria ser muitas coisas. Primeiro, falei pra mamãe que queria trabalhar com ela nas hortas e tal, pra ajudar nas vendas de casa. Mas aí ela disse pra eu buscar algo que realmente gostasse… E eu pensei em ser cantora ou a tocar algum instrumento, mas não sei se conseguiria fazer algo assim.

— Eu tenho certeza de que consegue — respondeu Fanes a ela, agora ambos tendo cerca de catorze anos de idade — A sua voz é muito bonita, e você tem talento pra ser e fazer o que quiser.

— Acha mesmo?! — perguntou ela de volta, segurando as mãos dele. Era um costume que tinham, desde novos. Eles achavam confortáveis o ato, e jamais se envergonharam da íntima amizade que compartilhavam — Obrigada! Mas… Se eu fosse ser mais realista, acho que queria ser médica.

— Por que médica?

— … Hmmm. Acho que porque gosto de pessoas, e porque gosto de cuidar delas. Ah, e também adoro conhecer coisas novas, então me daria bem com isso. A mamãe disse que eu poderia estudar fora, mas acho difícil conseguir nas nossas condições…

— Não vejo problema algum nisso.

— Mas… Eu não queria deixá-la pra trás… — ela olhou para trás, para dentro de sua casa. Os dois estavam sentados no meio fio, olhando para a movimentação da rua — Por isso pensei em continuar aqui, mas… Ah, é tão difícil.

Fanes abaixou os ombros e observou a garota. Seu olhar se amaciou e, então, ele deu um sorriso.

— Acho que sua mãe ficaria orgulhosa de qualquer caminho que decidisse seguir. 

— … Acha?

— Não, tenho certeza. Ela está sempre te apoiando, então não importa o que decidir para o seu futuro: Eu e ela estaremos ao seu lado. 

Teresa sorriu de volta.

— Obrigada, Fanes. Você é um amor.

As bochechas dele coraram e ele desviou os olhos.

— Mas… Agora que você mencionou isso, eu nunca te perguntei a razão de você sempre cantar a mesma música, não é? Desde que nos conhecemos, você sempre cantarolou ela…

Os olhos azuis dela brilharam.

— A mamãe ensinou pra mim. Parece que foi minha avó que ensinou pra ela, e ela fez o mesmo comigo. Ela é linda, não é?

Após refletir, ela fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Em seguida, seus lábios se abriram e Teresa começou a cantarolar a melodia que não possuía letras. Era apenas uma música casual e agradável, mas que, por alguma razão, fazia Fanes se sentir extremamente feliz ao ouvi-la. Quase lhe dava sono de tanto que relaxava.

E assim, os anos se passaram. Fanes e Teresa cresceram lado a lado, e até compartilharam o mesmo colégio. Eles estudaram juntos por algum tempo e, por fim, alguns anos mais tarde, quando Teresa se tornou uma bela moça e atingiu a maioridade, tendo estudado e pronta para seguir seu sonho de ser médica…

— Fanes! Fanes, Fanes, Fanes, Fanes! — ela gritou em sua orelha, colocando um panfleto diante de seus olhos — Olha!

— … Estou vendo.

— É uma proclamação real! Estão recrutando médicos para trabalhar no palácio! Será que… Eu deveria tentar? 

Havia uma animação tão grande contida em seu pequeno corpo que ela precisava expressá-lo através de pulinhos. Teresa encarou Fanes com tamanha intensidade que ele sentiu suor escorreu por suas costas. O rapaz passou a mão pelos próprios cabelos na altura dos ombros e suspirou.

— É claro.

— Mesmo?! Então, você vai comigo?

— O quê?

— Digo, nós prometemos estudar juntos para sermos médicos, não é? Então, por que não participa do teste comigo?

Fanes murchou a expressão. 

Sim, ele havia decidido seguir o mesmo caminho que Teresa. Em partes, porque realmente queria acompanhar a garota aonde fosse. Em partes, também, porque desejava encontrar algo que fosse bom. Entretanto, na realidade, Fanes não era exatamente bom na arte da medicina, e sim em conversar com as pessoas. Você poderia defini-lo como alguém compreensivo demais, capaz de entender perfeitamente o que os outros sentiam.

Portanto, seria mais correto dizer que Teresa era uma boa médica e Fanes um bom psicólogo.

Àquela altura, seu pai havia simplesmente o abandonado completamente. Em determinado momento, ele apenas não voltou mais para casa — mas ele já era um adolescente na época, então não se preocupou muito. Suspeitava que havia se envolvido em uma briga de bar, ou com drogas, e isso deixou Fanes realmente abalado. Querendo ou não, ele fora seu pai, sua única companhia desde então. Ainda que seu humor fosse terrível, ele jamais o deixou.

Parecia um pensamento triste demais para ser considerado, então Fanes apenas passou a dedicar-se a si mesmo e a Teresa, sua vizinha…

— … Muito bem. Eu participo com você.

… E seu amor de infância.

Uma semana mais tarde, os dois foram até o palácio e participaram do recrutamento. Fizeram a prova escrita e, então, a prática. Não demorou muito para que os resultados saíssem e ambos fossem levados para trabalhar no castelo. Teresa ficou especialmente feliz, pois receberia um salário bom o bastante para dar à mãe a vida que merecia. 

Fanes ficou feliz em saber que suas habilidades foram reconhecidas, e aparentemente seu carisma foi um dos critérios principais que fizeram com que o contratassem. Entretanto, ainda estavam no começo de suas carreiras, mas iniciar com um grande passo deixou ambos extremamente confiantes e determinados a dar o máximo de si mesmos.

O ambiente no palácio era bem agradável. Eles teriam seus próprios quartos, sendo apenas de visitas comuns — mas infinitamente mais chiques do que qualquer coisa que já tivessem visto antes. A dupla, que saía para os estudos e trabalho durante a manhã, se encontrava pelos corredores usando os jalecos de trabalho. Eles sorriam torto um para o outro, nervosos e felizes, enquanto seguiam para a sala em questão.

A proximidade de ambos foi um assunto bastante comentado no início, pois Teresa, além de ser uma mulher doce, era também muito bonita. Não havia nada de extraordinário em sua aparência, mas certamente os seus olhos com pupilas extravagantes eram um charme à parte. As pessoas comentavam sobre tudo, mas principalmente sobre seu talento, originado através de seu esforço desde a infância.

Fanes, estando sempre ao lado dela, era tratado igualmente bem. Na verdade, enquanto Teresa os conquistava por seu talento e doçura, Fanes fazia o mesmo com sua personalidade serena e carisma. Na realidade, em termos de comparação, o psicólogo poderia ser considerado quase que mais bonito do que a própria Teresa, uma vez que seu rosto e expressões delicadas indicavam certa feminilidade — talvez reflexo de sua passagem de tempo com a garota, ou apenas de sua própria personalidade.

Fosse o que fosse, a dupla, alguns meses mais tarde, acabou conquistando todos com quem conversavam no palácio.

— Vocês são namorados? — sussurraram-lhe uma vez.

Na ocasião, Teresa e Fanes se viraram para a outra médica em trabalho de aprendizado. E, então, a garota de olhos azuis respondeu:

— Não, o Fanes é meu irmão.

Ele sabia que a resposta correta seria “como meu irmão”, mas não optou por corrigi-la. Não era como se aquele tratamento o incomodasse, e seus sentimentos por Teresa jamais foram prioridade. Acima de tudo, ele sempre desejou a sua felicidade, e sentia que talvez não fosse homem o bastante para uma mulher com um grande futuro como ela.

Por isso, ele apenas optou por replicar sua resposta a todos que faziam a mesma pergunta.

“Ela é minha irmã”.

Pessoas vindas de classes baixas não possuíam sobrenomes, portanto, era fácil deduzir que isso poderia ser verdade. Eles não eram fisicamente parecidos, mas sua proximidade indicava um relacionamento bem próximo disso. A resposta que, a princípio, estava meio correta, se tornou uma verdade que todos acreditaram de prontidão.

Foi então que ele percebeu.

Aconteceu pouco depois de quatro meses ao chegarem ao palácio real. Enquanto andava pelos corredores, ele viu Teresa nos jardins. Observou sua figura, usando um vestido suave, olhar para as flores com carinho. Ela provavelmente relembrava de sua casa, talvez com um pouco de saudade. Ao mesmo tempo, parecia impressionada com a qualidade e quantidade de flores ao seu redor.

O sorriso de Fanes tremeu quando percebeu que uma pessoa o acompanhava. Era um homem de cabelos loiros na altura dos ombros e olhos rosados com postura digna de um soldado. A coroa sobre sua cabeça indicava perfeitamente o posto que tinha, e ambos sorriam um para o outro. Teresa apontava, animada, para o jardim, e Roger, o rei, a acompanhava.

Por que ela não me contou?

Esse foi seu primeiro pensamento.

Somos próximos desde novos, certo? Então, se ela tivesse tendo encontros com alguém, ela poderia ter contado a mim… Eu a teria apoiado.

Não era como se os sentimentos dele fossem impedi-lo de apoiá-la no romance. Ele se esforçaria ao máximo para fazer tudo dar certo. Mas, por alguma razão, vê-los juntos, com Teresa parecendo realmente próxima do rei… O deixou mal.

… Esqueça. Pode ter sido apenas uma coincidência. Talvez eles tenham se conhecido há pouco tempo, talvez hoje mesmo, não é? Ela pode vir me falar sobre isso mais tarde… Eu acho.

E foi justamente isso o que aconteceu.

— Fanes, Fanes, Fanes, Fanes! — ela se jogou em seus braços e segurou suas mãos, o puxando para o canto do corredor. Seus olhos e bochechas brilhavam — Eu tenho que te contar uma coisa!

— … O que foi?

— Eu… Ah, não conte a ninguém, certo? As pessoas podem comentar sobre isso!

— Está bem, eu não direi.

Teresa levou o dedo indicador aos lábios e fez silêncio. E, então, revelou aquilo que ele já desconfiava:

— … Acho que estou me apaixonando pelo rei.

Ela sussurrou como que contando um segredo, e então sorriu como uma garotinha. Fanes abriu um sorriso, mas seu coração se apertou.

Acalme-se.

— É mesmo? Fico feliz por você, mas… Como foi que se conheceram?

— Ah! Foi tudo muito rápido. Na verdade, eu estava nos corredores quando esbarrei com ele sem querer, e derrubei os meus livros.

O típico encontro clichê.

— Foi como se nossos olhos se encontrassem, e eu fiquei… Ai, meu rosto tá queimando! Quero dizer, ele pegou os meus livros e pediu desculpas, e os nossos dedos se juntaram por um segundinho, mas foi o bastante pra minha barriga ficar toda bagunçada.

Ela abraçou o próprio corpo e riu sozinha. Fanes apenas desceu os olhos para as mãos dadas dos dois, e franziu a testa.

— Eu ouvi falar que Sua Majestade era reservado e não demonstrava interesse nos outros, mas ele abandonou sua caminhada para me acompanhar ao jardim. Eu estava indo fazer uma análise, e ele me apresentou algumas flores tão lindas. Ele até colocou uma no meu cabelo…

Teresa riu mais uma vez, levando a mão aos cabelos.

— … E então… Fanes, o que houve?

— Hã?

— Você parece distraído. Desculpe, eu estou falando demais como sempre, não é? 

— N-Não! Claro que não! — ele suspirou, relaxando o rosto — Sinto muito. Eu estou realmente feliz por vocês, e espero que dê tudo certo. Mas será que ele é realmente um bom homem?

— Sim! Quero dizer, eu acabei de conhecê-lo, mas Sua Majestade foi um doce comigo. 

— Não há quem consiga ser maldoso com você, Teresa.

— Ah, é mesmo?

Ela riu sozinha.

— Acha que estou me iludindo um pouco?

— Eu acho que, se você realmente gostou dele e acha um bom homem, deveria tentar conhecê-lo melhor. 

Como se fosse a resposta que esperasse ouvir dele, Teresa ergueu o queixo e deu um beijo na testa de Fanes.

— Sim, será o que farei. Obrigada.

E, soltando as mãos unidas, ela saiu em disparada.

O que aconteceu durante o restante dos meses, dos anos que se seguiram… Não havia muito o que ser descrito. Aos poucos, Teresa arrumou convenientes para aparecer para Roger, de forma que pudessem conversar e andar juntos. Fanes observou aquilo com um sorriso, esforçando-se para não perder para o ciúmes e a dor em seu coração.

Ela está e será feliz com ele. 

Foi isso o que se convenceu a acreditar.

Quando Roger pediu a mão de Teresa, não foi uma notícia tão surpreendente. Ele ficou muito contente por ela e todos a parabenizaram. Sabiam que seria uma situação difícil, mas com certeza eles dariam um jeito na recepção do público. 

Bem, na verdade, as pessoas lidam até que muito bem com a notícia. Todos amavam Teresa, e ela foi muito bem recebida por tais pessoas. Ainda assim, houveram aqueles que espalharam fofocas sobre ela e o rei, mas ela lutou para não se importar.

Ela lutou contra os abusos verbais e até os físicos. Fanes chegou a presenciar uma das damas da realeza estapeá-la no rosto, chamando-a de usurpadora. Ele chegou a tempo de interromper a situação, segurando o pulso da dama da realeza e mandando-a embora educadamente, e limpou a lágrima que ameaçou escorrer de Teresa.

— Eu estou bem. Sei que, em breve, todos vão me entender.

Foram suas palavras naquele momento antes de ir embora a passos velozes. Ele sabia que Teresa jamais se permitiria demonstrar qualquer sentimento ruim na frente dos outros, mas mesmo assim a acompanhou. E, no fim, ela chorou em seus braços.

Fanes enxugou suas lágrimas e a encorajou, dizendo que o que importava era o amor que sentiam um pelo outro, e não o que diziam sobre eles.

— Você está certo — foi a resposta dela, com um sorriso doce.

Ela estava determinada a continuar a enfrentar aquilo por quanto tempo fosse necessário. Teresa, mesmo se tornando noiva e a futura rainha, não abandonou sua paixão pela medicina, por seu irmão Fanes ou pela música.

Um dos presentes — ou melhor, o primeiro — dado pelo rei a ela fora uma flauta graciosa. Não era exatamente chique ou caríssima, mas certamente apresentaria um som agradável. Teresa havia abraçado, chorando, Roger, e os dois giraram no lugar como um casal apaixonado. Fanes sorriu para os dois e assistiu quando Teresa levou Marie aos lábios pela primeira vez, tocando a música que sempre cantarolou.

Ela demorou um pouco para aprender, mas eventualmente sua melodia começou a ecoar sempre pelos corredores. Mesmo que não estivesse por perto, todos sabiam de onde vinha aquele som e o apreciavam. 

Quando os preparativos para o casamento começaram, Teresa fez algo que surpreendeu Fanes: o apresentou a Roger. Ele estava bastante nervoso no início, perguntando-se como o monarca reagiria. Entretanto, ficou surpreso quando eles apertaram a mão um do outro de forma respeitável, e sorriram.

— É um prazer conhecê-lo, cunhado.

Parecia que a meia verdade chegou até o rei, e ele ainda acreditava que aquilo fosse verdade.

— O prazer é todo meu, Majestade.

— Somos da mesma família, agora. Pode me chamar de Roger.

Apesar de sua postura e expressão duras, ele parecia um bom homem.

Fanes chegou a se sentir mal por tê-lo julgado pelos boatos, e passou a respeitá-lo.

As coisas prosseguiram muito bem a partir dali… Até a chegada do primeiro filho. O nascimento dele estava planejado para acontecer em breve, e Fanes sabia que as coisas não seriam fáceis.

— Será um parto difícil. A Teresa sempre foi muito delicada, e tenho medo de que algo possa acontecer a ela — explicou ele a Roger, estando isolados — Temo que-

— Não tema — corrigiu o rei imediatamente — Gostaria que ficasse responsável pelo parto.

— O quê?! Mas-

— Confio em você.

Roger deu um tapa em seu ombro, apertando-o. Era uma passagem de confiança, mas mesmo Fanes estava tremendo pelo futuro daquela criança. Porém, vendo Teresa sozinha no jardim, passando as mãos ao redor da grande barriga, seu coração se encheu de amor e sua determinação cresceu. Ele se aproximou dela lentamente e percebeu que não estava sozinha.

— Ora, veja se não é o capitão — cumprimentou Fanes a Luccas, que endireitou a postura imediatamente ao vê-lo — Como está, jovem?

— Estou bem, senhor. Muito obrigado. 

Luccas era um rapaz promissor que conseguiu o posto com muito esforço, e Fanes o admirava. Como os três vieram da classe baixa, sabendo exatamente a dificuldade para alcançarem onde estavam agora, o trio compartilhava uma amizade bastante agradável.

— Então, Vossa Majestade sabe qual será o nome dele? — perguntou Luccas, continuando a conversa que estavam tendo.

— … Eu não sou uma pessoa boa com nomes, sabe? Gostaria que fosse algo bonito, mas simples de se lembrar.  Gostaria que fossem em referência a algo importante para mim… Se bem que essa criança já será a minha nova razão de viver.

Teresa, com uma expressão madura, passou a mão pela barriga.

— Ao meu primeiro filho, darei o nome de Edward.

— Edward? — repetiu Fanes, franzindo a testa — … Mas, essa não é-

— Sim, é o nome da canção que minha mãe me ensinou.

Ela deu um sorriso largo para o homem.

— Significa “guardião de riquezas”. Parece um ótimo nome para um príncipe, não é?

— Mas é um nome estranho para uma música.

— Acha mesmo? Eu acho lindo. Um guardião é uma pessoa que protege algo, e a riqueza não necessariamente precisa ser dinheiro ou jóias, não é? Para um rei, sua maior riqueza pode ser seu reino. Para uma mãe, o seu filho. 

Ela assim concluiu seu pensamento acariciando a barriga.

— Esse seria o nome se fosse menino, certo? E se fosse uma garota? — perguntou Fanes.

— Hmm…

— Marie seria ótimo — observou Luccas, indicando com o queixo a flauta que estava nas pernas dela — Os dois seriam complementos um do outro.

Teresa bateu palmas.

— Nossa, perfeito! Você é um gênio, Luccas!

— Ah, não… — ele riu baixinho, desviando os olhos.

— Então, se eu tiver uma garota… Um dia, quem sabe — ela riu, sem completar a frase.

Adiante, o que aconteceu em seguida, nem mesmo Fanes soubesse explicar.

Afinal, Edward nasceu. Foi um parto difícil, mas suas habilidades como médico se provaram hábeis o bastante. Enquanto o segurava nos braços, Teresa olhou com exaustão para Fanes.

— Pegue-o. Você, sendo agora meu irmão, é como um pai para ele, também.

O corpo dele tremeu quando segurou o bebê. Ele sentiu o pequeno Edward se remexer em seus braços e, então, segurar o seu dedo, parando de chorar um pouco ao sentir o calor humano. O coração de Fanes se apertou e então, lágrimas escorreram por sua face.

— … Ele é lindo.

— Sim  — respondeu Teresa, fechando os olhos e caindo no sono.

Mesmo depois do nascimento do primeiro príncipe, as pessoas não deixaram de falar a respeito da rainha e da linhagem suja. Fanes jamais se permitiu levar por aquelas palavras, mas fazia questão de sempre conversar com todos que começavam o assunto. Ele desejava, ao máximo, dar tranquilidade e felicidade à Teresa. Mesmo que tivesse sido considerado como o irmão dela, mesmo que trabalhasse como o médico principal do palácio… Ainda desejava-lhe o melhor dos futuros.

Porém, em determinado momento, pareceu que o relacionamento entre Teresa e Roger desandou. Fanes nunca teve coragem para perguntá-la a respeito das marcas que apareciam em seus braços ou pescoço, que por vezes ela escondia com as roupas. Também não ia muito além nas perguntas dos olhos inchados e a forma com que se retraía um pouco toda vez que ele se aproximava silenciosamente, como se temesse o toque de alguém.

— Eu estou bem, apenas um pouco cansada do trabalho e por precisar cuidar do Ed.

As respostas eram sempre assim, e Fanes percebeu que era sua forma de manter a defesa. Ela estava preocupada com o que poderia acontecer caso contasse a alguém sobre os abusos de Roger, que repentinamente voltou a ficar violento. Ao mesmo tempo, Teresa começou a perder as forças e a prática de sua música, caindo de cama. Ela ainda se esforçava bastante para atender as pessoas no palácio, para passear em Hera e falar com o povo, para ser próxima de todos. Afinal, sua maior paixão eram as pessoas e a arte.

Entretanto, quando ela engravidou pela segunda vez e acabou ficando de cama, Fanes percebeu que não havia mais volta.

Edward ainda era uma criança. Seria incapaz de compreender a situação que se encontrava. E, aos poucos, quem começou a perder a paciência foi o próprio Fanes. Ele trocava olhares ferozes com Roger, que parecia cada vez mais distante. Jamais o desrespeitou diretamente, pois isso só traria ainda mais problemas. No entanto, seus consolos a Teresa pareciam não funcionar mais.

Acamada, magra até os ossos e pálida, o único resquício de vida eram seus olhos azuis e o aro dourado ao redor das pupilas. 

— Fa… Nes.

— Sim, Teresa? — ele se ajoelhou ao seu lado, fazendo uma expressão de preocupação quando uniram os dedos das mãos — O que foi?

— Eu… Quero que cuide deles.

Fanes fez uma expressão de desentendimento.

— Cuide… Da minha família. Diga ao Roger que sinto muito. E… Dê amor ao Edward, ele sentirá… Falta disso. E… E também… 

Havia muito custo até mesmo para falar, e Fanes concordou imediatamente. Ele tinha seus receios, mas sabia que a última coisa que poderia fazer era discutir com a rainha.

— Sim, deixe comigo.

— E…

— Sim?

— … Obrigada.

Fanes sentiu seu corpo tremer.

— Obrigada por ter sido… Meu único… E verdadeiro amigo. Por ter… Me tirado da solidão… E sido a luz da minha vida. Acho que… Se não fosse por você…

— Senhor! Os sinais estão indicando movimentos! O parto vai começar a qualquer instante! — quando a enfermeira gritou, Teresa apertou sua mão com força o bastante para rasgar sua pele com as unhas.

— … Talvez… Eu não… Tivesse sido tão forte.

Suor escorreu por sua testa e manchou seus cabelos. Seu ar se prendeu e ela conteve um grito de dor. Lágrimas começaram a escorrer de seus olhos, e os dois se encararam.

— E… Me desculpa por… Não ter sido capaz… De te ajudar… Naquela época. Eu… Sempre fui muito fraca e covarde… Eu sabia o que seu pai fazia, mas… Mesmo assim, fingi que não. E, mesmo assim… Você me ajudou tanto… Me abraçou, riu comigo… Torceu pela minha felicidade e sucesso… E, agora, está aqui, fazendo meu… Segundo parto… Ah… Há, há… — as lágrimas molharam o travesseiro — … Me desculpa. E… Muito obrigada… Por ter sido o meu milagre, a luz da minha vida.

Os dois estavam chorando agora.

— … Por favor. Salve essa criança. Não deixe… Que ela morra… Proteja o que restou… Por mim.

— Sim, Teresa. Eu… Eu sempre te amei, muito. Você também foi o meu milagre, e sempre… Estará comigo, no meu coração.

Ela abriu um sorriso fraco.

— … Obrigada. Eu… Também… Te amo.

O parto de Marie foi um verdadeiro desafio. O desespero, unido das lágrimas e da determinação de Fanes em manter mãe e filha vivas o fez perder o equilíbrio várias e várias vezes.

… Eu…

Ele segurou o bebê no colo, e ela chorou alto.

… Vou… 

Mas o corpo da mulher na cama estava imóvel, mesmo sorrindo.

— … Teresa? 

… Proteger o que você deixou para mim.

Fanes começou caiu de joelhos, contendo o grito e as lágrimas. Em determinado momento, o bebê foi tirado de suas mãos, e uma discussão se iniciou quando o grito de Roger soou pelos corredores.

Ele não sabia dizer o que aconteceu. Em determinado momento, havia perdido a razão de sua vida. De repente, sua memória sumiu e a razão se tornou branca como névoa. Seus olhos perderam a vida ao ver o corpo da mulher que amava tanto quanto qualquer outra coisa no mundo… Simplesmente, parar.

Roger enlouqueceu. Ele quis matar Fanes, acusou-o de traição. Mas, àquela altura, estava claro para todos que ele havia simplesmente perdido a sanidade ao longo do tempo. E, para o médico… Para o homem que recebeu a responsabilidade de dar seu melhor por todos os sonhos e vontades conquistados por Teresa…

Eu vou… Cuidar de tudo. Eu vou… Dar meu melhor para orgulhar você, Teresa.

Fanes foi coroado. Ele se tornou um rei amado e bem aceito pelas pessoas. Demorou um pouco para reconhecerem seu potencial, mas com o estudo e treinamento necessários, ele foi capaz de alcançar o patamar adequado. Enquanto isso, aproximou-se cada vez mais de Edward.

Afinal, Marie, a bebê que estava em seus braços… Fora dada como morta. Seu corpo desapareceu algum tempo depois, e ninguém soube dizer o que aconteceu. Foi uma completa bagunça, um completo caos. Fanes se sentiu muito, muito mal. Ele chorou por noites inteiras, percebendo que foi incapaz de fazer algo tão simples.

E se, mesmo assim, ainda havia lhe sobrado uma única coisa para chamar de seu…

— … Pai?

Ele ouviu a porta se abrir e um garotinho de cabelos loiros aparecer. Era noite, e seus olhos rosados com aro dourado ao redor das pupilas pareciam ansiosos.

— Sim? — perguntou ele de volta, enxugando o rosto e sentando-se na cama. — Outro pesadelo?

Desde que a rainha faleceu, o primeiro príncipe começou a ter sonhos horríveis com quedas e gritos que o acordavam. Ele se encolheu e assentiu.

— Venha aqui.

Fanes bateu a mão na cama e acendeu o abajur. Com um sorrisinho, Edward fechou a porta e correu até a cama de casal, onde se sentou ao lado do rei. Do monarca coroado por uma mentira.

Edward passou os braços ao redor do corpo dele e se aconchegou.

— Quer ler aquele livro de novo?

— Sim!

— Certo… — ele suspirou, pegando o livro dos Irmãos Estrela — Então, vamos começar?

Por noites, Fanes leu os livros favoritos de Edward até ele cair no sono. Por vezes, era o rei que dormia ao seu lado, na cama de solteiro. Eles eram duas pessoas que foram deixadas para trás, solitários, mas que puderam se apoiar um no outro para seguirem em frente.

— Pai.

— O quê?

— Eu te amo!

— … Eu também.

E Fanes, de fato, amou Edward como se fosse o próprio filho.

Descobrir que Marie estava viva o fez sentir um grande alívio no peito.

Ele ouvira de Miura que, com a chegada da coroação real, Luccas retornara à capital — e, com ele, trouxera uma garota estranhamente chamativa.

— Entendo… Então, eu…

Ele escondeu o rosto de Miura, contendo as lágrimas.

— Majestade? O que faremos quanto ao pedido deles?

— O que a Ritus Valorem está exigindo?

Miura franziu a testa.

— Em troca de pouparem a população de um verdadeiro genocídio, eles desejam espaço para realizarem um teste.

— Teste?

Quando o guardião se calou, Fanes soltou um suspiro.

— O que eles andam aprontando dessa vez?

— Aparentemente, os experimentos andam tendo resultados. Eles disseram que invadiriam durante a coroação e, se quiséssemos ter a mínima chance de sobreviver… De não tomarem a vida do primeiro filho… Precisaríamos dar-lhes ela.

— Ela?

— A segunda filha.

Fanes arregalou os olhos.

— Isso é loucura! Jamais permitirei que algo assim aconteça!

— Foi o requisitado.

— Eu me nego! Jamais darei a vida de nenhum deles! 

Mas não posso permitir que destruam Hera. E, também, eles tomarão a vida de Edward se eu recusar…

Fanes estalou a língua.

— Mas, aparentemente, se Vossa Majestade recusar, eles poderiam oferecer uma proposta melhor — disse Miura, devagar, fechando os olhos.

— … E o que seria?

— Eles desejam… O sangue da segunda filha. Mas não qualquer sangue, precisa ser da região dos olhos. E… Desejam que coloquemos um fim aos poderes de teleporte dela.

— … Teleporte?

A mente de Fanes estava a um milhão.

— Eu não entendo para que propósito seria tal requisito, e desconheço a origem de tantas informações sigilosas como o paradeiro da segunda princesa — disse Miura ao ver o rei desesperado — Mas acredito que seja nossa melhor opção.

— … Não posso fazer isso.

— Então será o fim de Hera… E do príncipe.

Fanes inspirou fundo e engoliu em seco.

Eu… Preciso realmente fazer isso? Ela só deve ter… Uns treze anos de idade. Mas, pelo bem maior… Se eu puder impedir a morte de todos os outros. Se eu puder impedir que Edward e Marie morram… Eu prometi pra ela.

— Muito bem. Pelo menos… Me deixe vê-la uma vez. Mas, por favor… Quanto ao pedido deles…

— Deixe comigo.

Com uma expressão de dor, Fanes lhe deu um sorriso trêmulo.

— Obrigado.

Fanes jamais seria capaz de machucar Edward ou Marie. Ainda que não conhecesse a garota, sabia que, ao ver seus olhos, ao ver sua face… Encontraria o rosto de Teresa. E, também, veria parte de Roger. Era um misto de sentimentos que quase o levou à loucura, mas seu amor e a determinação para salvá-los seria ainda maior.

Ele não podia fazer nada para impedir o ataque à Hera — se a Ritus Valorem determinou, eles agiriam independentemente das ordens do rei. O que poderiam fazer era, pelo menos, prepararem-se para impedi-los. Portanto, pediu pela presença de toda a corte e que trouxessem guardiões. Manteve a guarda real pronta, diante do palácio, para proteger a população e Edward.

Suspeitou de Ryota e a testou, embora Miura tivesse levado as coisas longe demais. Ele acreditou que, ao saberem da verdade, poderiam estragar tudo.

Fanes não queria que ninguém soubesse de suas falhas. As suas mentiras e máscaras seriam o bastante.

Ele não queria reconhecimento ou compreensão. Ainda que seu coração se comovesse a cada insistência de Edward, ainda que a dor de precisar afastar o próprio filho para fazê-lo criar independência, para fazê-lo ver como uma pessoa terrível, fosse difícil… Ainda que sua máscara insistisse em cair a todo instante, a todo momento…

A dor e o sofrimento eram o combustível necessário para acessar os limites de alguém — e, então, trazer seu melhor e pior lado à tona. Fanes sabia que, ao levar ambos os herdeiros Fiore a tal, seria capaz de extrair o máximo de capacidade de cada um, e tendo eles pelo menos um pilar para se apoiar e se erguem, visando vingança contra ele… Estava tudo bem. Edward ressentiria contra o pai, descobriria a verdade e seu amor por ele se tornaria raiva. Marie se revoltaria completamente, sem conhecer a verdadeira história — o que era ainda melhor.

Fanes desejava encerrar tudo aquilo da melhor forma possível: Com seu próprio fim.

Ele levaria os dois irmãos a se voltarem contra ele, revelaria sua “verdadeira” face, e então…

O som da flauta tocou e o levou a acordar para a realidade. A ventania gerada por seus leques não era mais poderosa o bastante para conter os avanços de Ryota, que saltou para a varanda. Ela imediatamente sentiu dor ao tentar concentrar chi em seus pés e perdeu o equilíbrio, então desistiu de abusar da marca do voto para lutar no corpo a corpo.

Fanes imediatamente teve seus leques derrubados e a ventania chegou ao fim. Eles trocaram golpes corporais, mas ela era forte demais. Quando foi finalmente capaz de contê-lo, segurando-o pelos pulsos, Fanes se jogou no chão, de costas, e chutou-lhe o estômago. A dor a fez ver estrelas e vomitar enquanto rolava contra o parapeito, do outro lado do campo de batalha.

Edward se aproximou e, ao ver Fanes sacar uma faca longa, protegeu a garota que tentava se levantar agarrando as costas do pai. Os dois rolaram pelo chão e então se colocaram de pé. Fanes afastava Edward, mas o príncipe insistia em se aproximar. A faca de Fanes rasgava o ar e ele desviava habilmente, sem precisar usar sua flauta.

O príncipe empurrou o monarca contra o parapeito e Fanes sentiu seu peso ceder sobre a construção. Sua faca, ainda numa das mãos, foi virada para cima e Edward o prendia. O monarca imediatamente notou que Ryota se ergueu, pronta para segurá-lo também.

Eles vão, realmente, tentar apenas me imobilizar?

Fanes fechou os olhos e franziu a testa.

Não, ainda não é o bastante.

Ele deu uma cotovelada no parapeito — que doeu —, mas fez a estrutura ranger e ceder ainda mais. Edward notou que a sacada estava rachada, e a luta estava apenas fazendo a varanda ceder cada vez mais.

Vamos lá, apenas mais um pouco-

Um terremoto.

De repente, uma explosão surgiu quase que ao lado deles, fazendo tudo tremer. Edward quase perdeu o equilíbrio e empurrou ainda mais Fanes, que grunhiu quando o chão cedeu completamente. A rachadura cresceu desde o solo, abrindo um grande rombo no palácio, e fez a torre começar a se desfazer.

Edward caiu de joelhos, perdendo o equilíbrio. Fanes, no entanto, desabou de costas junto com os grandes blocos de pedra do castelo em direção ao chão. Ele largou a faca, baixou os ombros e soltou a máscara.

Seus olhos se abriram bem a tempo de ver a expressão de Edward se transformar em desespero, de lágrimas escorrerem por seus olhos e ele estender a mão na direção de Fanes.

— PAAAAAAAI!

Dessa vez, Fanes não conseguiu conter as lágrimas e se permitiu dar um último sorriso de orgulho para o filho.

… Está feito.

Ele cumpriu a promessa com Teresa e transformou Edward em uma boa pessoa, mas também em um rei que poderiam contar. Ele, mesmo que tardiamente, custou a proteger Marie — e ficou abalado em perceber que jamais teria a capacidade de conhecê-la apropriadamente.

E, por fim, foi capaz de ter a morte ideal. Aquela em que seria considerado culpado por tudo, mas ao custo de dar aos seus filhos, à mulher que amou e à vida que tanto prezou, um final feliz.

Ao menos… Sim, mesmo com os arrependimentos de sua vida, mesmo com suas mãos pequenas e incapazes de alcançarem sonhos tão simples… Ao menos, no fim, ele pôde ser capaz de cumprir com todas as promessas que fez.

A verdade era que ele estivera, por tanto tempo, muito cansado. Exausto de fingir, de buscar e se arrepender. Ele queria ser capaz de finalizar com tudo de uma vez, mas nunca houve uma oportunidade. E, acima de tudo, jamais se permitiria morrer antes de cumprir com suas palavras.

E parecia que tudo havia colaborado para aquele exato momento.

Até o fim, o sorriso de satisfação e tranquilidade em seu rosto não desapareceu.

Ryota segurou os ombros de Edward, pronto para saltar atrás do rei que caía em queda livre, e ele desapareceu quando os escombros caíram sobre seu corpo, criando um grande estrondo.



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