Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 8 – Arco 3

Capítulo 93: Queimando de Dentro para Fora

Quando Edward havia ido até o seu pai para obter as respostas que preenchiam sua mente, não esperava que as informações que receberia fossem tão absurdas. Intrusos interromperam a coroação — provavelmente rebeldes — e Fanes deveria saber de algo. Possivelmente, eram apenas um grupo que não fora revelado a público para não gerar caos, assim como eram os casos das Entidades que se misturavam às pessoas ao redor do mundo.

Sua expectativa de lutarem lado a lado contra a ameaça em comum desmoronou em cima de sua cabeça. Certo, ele não estava tão otimista assim para dizer a verdade. Fazia algum tempo desde que percebera algo diferente no monarca, em suas palavras e ações. Na sua falta de interesse no filho como rei. Normalmente, seria o contrário, certo? Quando uma pessoa muito importante para você estava prestes a ganhar um posto honrado por gerações, algo passado entre a linhagem, deveria ser algo a ser comemorado.

Mesmo que Fanes fosse uma pessoa orgulhosa e que não aceitasse os métodos dele, Edward estava disposto a melhorar. Ele queria provar seu valor através de suas próprias ações, então vestiu uma máscara dura para isso. Entretanto, aquilo apenas causou problemas a todos. Suas ações impensadas, geradas através da necessidade de reconhecimento, colocaram pessoas inocentes em circunstâncias terríveis.

Sua falta de coragem de enfrentar o pai diretamente, sua falta de comprometimento com a tarefa de ser rei, sua fraqueza mental em encarar os sentimentos que lentamente descobria ao longo daquela o semana o tornou outra pessoa. E todos aqueles problemas apenas se acumularam sobre a sua cabeça, impedindo que fosse capaz de desabafar sobre com o próprio pai — aquele quem deveria confiar em tudo. 

Era difícil saber que a origem de todos os conflitos que o cercavam era ele mesmo. O sofrimento de Ryota, que se esforçou por longos dias para alcançar expectativas que nada tinham a ver com ela em primeiro lugar; a tortura da garotinha chamada Marie, apenas uma criança em fase de crescimento que tinha muito o que experienciar em sua vida; a ausência de esforço por sua parte em entender como o outro lado se sentia desde o começo, de forma que pudessem conversar adequadamente…

Quantas vezes Edward havia falhado com as pessoas ao seu redor?

Como uma pessoa assim, que deveria ser empática, observadora e dedicada, poderia ser rei?

Não era à toa que seu pai desejava ficar com o trono. Seria um absurdo ter uma criança sentada no trono. Edward era um homem falho de várias maneiras, e mesmo correndo tanto para alcançar a perfeição, foi incapaz de fazer o básico. O mínimo.

Faltava-lhe as características essenciais de um líder. Haviam mais contras do que prós. A marca do voto, que queimava seu pescoço e arrancava-lhe pensamentos e ações fundadas nas emoções mais profundas, o lembrava de seu erro. Ele jamais deveria ter envolvido outras pessoas em seus problemas.

Os arrependimentos que se acumulavam a cada instante, a cada palavra ditada pelo monarca, acusando-o, pesavam em seus ombros e mente. As revelações, unidas desses sentimentos conturbados, apenas o fizeram congelar no lugar, forçando-o a raciocinar tudo aquilo como uma verdade. Era incapaz de contestar, e as conclusões que gerava dilaceraram seu coração.

Fanes não era apenas um rei gentil e carismático; era um homem manipulador, que desde o início jamais desejou passar a coroa para seu filho. O fez se convencer disso e o levou à exaustão, usando o momento oportuno para se livrar dele e manter a estabilidade do reino com as próprias mãos. Ele o havia usado e, então, descartado. 

Havia torturado e causado sofrimento a outras pessoas, a crianças e inocentes. Destruiu suas determinações, pisou em seus corações e mudou suas vidas. Marie perdeu a visão por sua culpa. Ryota foi levada ao maior dos extremos, precisando se submeter a uma tortura por dias para compensar por suas próprias falhas. A corte real e todo o povo de Hera entrou em conflito, gerando mortes e dor, por sua incapacidade.

A espiral de negatividade afundava cada vez mais em sua garganta, sendo dura de engolir.

Mas nada daquilo superou as palavras que saíram dos lábios da pessoa que era sua guardiã. Uma verdade que, apesar de ter sido processada pelo cérebro, o corpo que queimava internamente havia sido capaz de entender. O coração, ao sentir o toque de suas mãos, lembrou-se de um calor conhecido. Ouvir sua voz e entender suas palavras era quase nostálgico, mesmo que jamais o tivesse feito em primeiro lugar.

E agora, aquela menininha corajosa e com um futuro inteiro pela frente, sua irmã mais nova, era segurada contra o corpo de seu pai que fazia uma expressão leviana para a verdade dita por Ryota.

— … Minha… Irmã…?

Ao ver Edward colocar as mãos nos cabelos, sem entender, ela abriu os lábios para dizer algo, mas foi interrompida:

— É verdade — disse Fanes, de expressão neutra — Até algum tempo atrás, eu desconfiava de que ela estivesse viva, mas vê-la com meus próprios olhos foi a prova concreta. 

— Mas se você sabia desde o começo, por que fez algo tão horrível com ela? — indagou Ryota, balançando um dos braços.

— Era necessário.

Ryota distorceu a expressão em confusão e irritação.

— Tô ficando cansada desses seus joguinhos de palavras. Pessoas que ficam tentando ser misteriosas o tempo todo enchem o saco, sabia? Que tal falar as coisas de uma vez e resolver todo esse problema?

— Não há razão para isso. Mais uma vez, preciso lhes explicar que todos os meus movimentos, até agora, foram para alcançar meu objetivo que é a coroa? Vocês são realmente patéticos se sequer conseguem compreender isso.

Era um motivo simples, mas suas ações realmente não batiam com suas expressões. Ryota desconhecia Fanes, pois falou com ele uma vez ou outra e apenas o viu discursar perante a corte. Para ela, é quase como se o homem estivesse revelando sua verdadeira personalidade por baixo da máscara. Para Edward, no entanto, era algo muito mais complexo do que aquilo.

— … Você é horrível.

Fanes, ao ouvir aquilo, abriu ainda mais o sorriso.

— Sim, eu sei.

Apesar de afirmar aquilo, seu tom de voz era leviano o bastante para sugerir outra coisa.

— Eu… Ainda não consigo acreditar que você realmente tenha me… Nos traido — lentamente, o príncipe endireitou a postura, inspirou fundo e conteve as emoções. Suas íris violetas brilhavam com um misto de decepção, tristeza e determinação — Eu gostaria que tudo pudesse ter sido diferente, pai. Eu queria ter te orgulhado, ter me tornado a pessoa ideal dentro de seu ponto de vista. Mas… Parece que falhei.

Ele balançou os ombros, melancólico.

— Ainda assim, não consigo permanecer parado quando ameaça uma pessoa que deveria ser importante para mim. Você escondeu a verdade e, até agora, se recusa a me contar. E se insistirá com essa farsa que chama de resposta, tudo bem. Eu gostaria de poder entendê-lo, mas… Não posso fazer nada se continuará calado.

Fanes ficou em silêncio.

Edward segurou sua espada e ergueu o queixo.

Ainda havia muito para ser refletido, muito para ser discutido e chegado a uma conclusão. Porém, ainda que todas essas perguntas e sentimentos o incomodassem, ainda que a dor de ser queimado vivo o atacasse de dentro para fora, ainda que o suor o impedisse de segurar adequadamente Gore… Ele empunharia sua espada e a apontaria para seu pai, se necessário.

— Solte a minha irmã.

Ao vê-lo, Ryota abriu um sorriso. Ela ficou feliz em ver que, mesmo sofrendo, o príncipe decidiu se erguer e lutar. Ainda era difícil, mas havia um longo caminho a ser trilhado, e ela gostaria de poder apoiá-lo — não apenas como guardiã, mas como amiga. Dito isso, ela deu um tapa carinhoso em seu ombro e olhou para Fanes.

Quando tudo isso aconteceu, o leque na mão do monarca se abriu e a ventania varreu a sala. Ela balançou roupas e cabelos, mas também impedia que pudessem se mover. Com um braço diante da face, Edward tentou dar um passo, mas percebeu que seu corpo foi puxado para trás. Ryota fez o mesmo e conseguiu ir pouco mais além, mas logo após foi arrastada de volta para o ponto de início.

— Ele não vai deixar que a gente se aproxime dele…!

Edward franziu a testa para as palavras dela.

— E quanto àquele seu teleporte? Você não consegue usar, igual a Marie?

Marie era capaz de ativar aquela habilidade através da visão. Se ela conhecesse o ambiente e pudesse enxergá-lo, era capaz de atravessar paredes e até distâncias maiores. Em contrapartida, Edward, ao que Ryota se lembrava, foi capaz de se teleportar para dentro do seu quarto no hotel e levá-la até o campo uma vez, e então devolvê-la.

— Será que não pode nos mandar até lá?

— Eu posso tentar, mas não acho que seja uma boa ideia — eles se olharam — Ao contrário do que parece, nunca fui capaz de treinar essa habilidade corretamente. Não importava o quanto eu tentasse, sempre acabava indo para o local errado ou nem saía do lugar. Como, ao contrário da arte da espada, não quis exercitar essa habilidade diante dos olhos das pessoas, acabei não conseguindo aperfeiçoá-la.

— Então, ela é diferente da Marie? 

Ele assentiu com a cabeça.

— Eu posso me mandar para lugares que lembro ou vejo, mas isso demanda muito esforço pela falta de experiência. E, além disso, existe a chance de sermos mandados para o lugar errado ou nem sairmos daqui… 

Era uma aposta com vários riscos. E, ao mesmo tempo, ela conseguia ver pela sua expressão que Edward estava cansado mentalmente e fisicamente. Da mão que o segurava no ombro, Ryota tocou suavemente o rosto dele e sentiu sua carne queimando.

— Você tá pegando fogo! — exclamou ela, assustada, antes de levar a mão para o próprio pescoço — Bem mais do que eu.

Edward apenas abaixou as sobrancelhas. Havia suor por todo o seu corpo, e a dificuldade para se mover era nítida. Ryota não poderia contar muito com ele naquelas condições, mesmo que a vontade do príncipe fosse a de derrotar o seu pai.

Com o tempo passando e as possibilidades ficando cada vez mais reduzidas, a garota soltou um gritinho baixo de frustração que assustou o principe.

— Tá legal! Olha, por enquanto, vamos só resgatar a Marie. Me teleporta pra lá.

— Mas eu acabei de dizer que-

— Não importa, só faz!

Ryota bateu o pé e o retrucou imediatamente. Edward piscou e, por fim, suspirou, cedendo.

— Segura firme a minha mão.

Ela fez como pedido. Fanes, como sempre, apenas aguardou que eles fizessem seu movimento. Ele jamais se propôs a atacar em primeiro lugar, estando decidido a se defender. Era uma estratégia inteligente, considerando que usava uma refém para se proteger.

Ryota franziu a testa quando o mundo balançou e a terra tremeu. Edward, de olhos fechados, sentiu o mesmo, mas era uma sensação infinitamente mais difícil de suportar. Sua cabeça chacoalhou e ele quase desmaiou de tanta tontura, mas quando finalmente surgiram por trás do monarca, ele caiu de joelhos e vomitou. A garota, sem perder tempo, avançou contra as costas de Fanes, que imediatamente se virou ao vê-los.

Ele colocou a garota diante de seu corpo e então, com a mão que usava o leque, o fechou, apontando-o na direção dela. Ryota sabia que o que viria seria uma sequência de Lâminas de Vento, um golpe invisível aos olhos, mas que era possível de detectar e desviar a longas distâncias. Em contrapartida, ela estava a pouco menos de um metro de distância, o que significava que nenhuma das duas coisas aconteceria.

— Ugh! — então, ao invés de continuar correndo, ela se jogou no chão e deslizou com os joelhos. A dor foi difícil de suportar, mas o ataque que viria de cima atravessou o espaço, atingindo as janelas ao fundo — Solta isso!

Após rapidamente se erguer, ela partiu para cima de Fanes. Rapidamente, segurou o pulso da mão que segurava o leque e o ergueu, e com a outra tentou libertar Marie de seus braços.

— Q-Que força… É essa…? — murmurou o monarca ao ver que, de forma assustadora, a garota conseguia puxá-lo sem se esforçar tanto.

Apesar de suas habilidades, Fanes não era uma pessoa absurdamente poderosa. Quando o assunto era combate corporal, ele certamente era frágil. Seus braços magros eram incapazes de suportar a força bruta dela por muito mais tempo, e lentamente o corpo da garota de cabelos loiros foi cedendo.

Ryota soltou um gritinho de dor quando o monarca pisou em seu pé com força o bastante para fazê-la ver estrelas. Ao mesmo tempo, se perguntou por que tamanhos ferimentos, tão simples, lhe causavam tanta agonia. Enquanto refletia a respeito daquilo e enfrentava Fanes, Edward se colocou de pé e limpou a boca cheia de vômito.

Ainda estava vendo tudo borrado e balançando, mas mesmo assim segurou sua espada…

Edward percebeu tardiamente que havia largado Gore do outro lado da sala ao fazer o teleporte e praguejou, estalando a língua.

Eu não tenho escolha!

Quando o príncipe se aproximou, Fanes imediatamente fez uma expressão de irritação e recuou alguns passos. Entretanto, ele não conseguiu ir tão longe. Ryota virou ainda mais o pulso da mão que segurava o leque e tornou a se esforçar para mantê-lo parado. Ela sabia que não deveria machucar o monarca além da conta em respeito a Edward, que ainda estava lutando internamente para decidir o que fazer a respeito da situação. 

Portanto, quando ele se aproximou para abraçar Marie, ela puxou ao máximo o braço que a envolvia, de força que seu pequeno corpo escorregasse e caísse. Imediatamente, os dois desapareceram do mundo e surgiram do outro lado da sala, mas caindo de uma altura considerável. O príncipe abraçava o corpo da menina quando caiu de costas contra o chão, tossindo ao perder o ar de seus pulmões.

Assim que Marie foi liberta de seus braços, Fanes deu mais alguns passos para trás — alcançando o outro leque que fora roubado e lançado para longe. Ao ter ambos em mãos, Ryota colocou os braços diante de seu corpo para se proteger. Porém, ao contrário do que esperava, a ventania que a atingiu não foi tão forte, e essa surpresa permitiu uma abertura para que Fanes avançasse.

Ele era um homem que não possuía músculos ou qualquer poder físico admirável, mas era fato que suas habilidades manejando armas deveriam ser admiradas. Portanto, quando ele a acertou com um dos leques fechados no estômago, roubando-lhe o ar, ela cuspiu saliva. Em seguida, desferiu uma cotovelada em seu rosto que fez escapar sangue de seu nariz. Outro golpe com o leque a atingiu, mas ela rapidamente conseguiu segurar esse pulso, virando-o para o lado e impedindo que mais ataques viessem.

Entretanto, a outra mão portando o item de batalha fez o leque se abrir e, com um movimento para a direita, o corpo dela voou contra uma janela. O vidro se estilhaçou contra sua pele e carne foi cortada, sangue se espichou e manchou a parede. Ryota caiu sentada no chão sentindo uma dor aguda atingir seu cérebro, e a queimação de seu pescoço ficou mais forte. A luz alaranjada do sol, agora iniciando a tarde, indicava que o tempo estava chegando ao fim. Ela viu… Não, sentiu seu próprio ser queimar de dentro para fora, como se mergulhasse nas chamas, e soltou um grito de dor, encolhida no chão.

Era uma tortura interna incapaz de ser comprendida por qualquer um que não fosse ela e Edward — este que, após se recuperar e colocar Marie sentada ao lado de sua espada, ergueu os olhos para a cena que se desenrolava do outro lado do salão. 

Sangue escorreu do nariz dele, assim como escorria da cabeça e corpo da garota, perfurada por cacos de vidro. Ambos sentiram a agonia perfurar seus ossos e impedi-los de se mover, paralisando suas pernas e braços. A mente se tornou branca e apenas a dor permaneceu. Naquele instante em que a garota experimentou, pela primeira vez, a dor que Edward sentia há mais de uma hora, o príncipe lutou para se colocar de pé.

Sua mão, tremendo, alcançou Gore, mas percebeu que não tinha forças para segurar seu cabo. Seus dedos estavam fracos demais, e as circunstâncias não estavam a favor deles. Tanto Ryota quanto Edward sofriam as com as condições da marca do voto, e não haviam nada que pudessem fazer para interromper aquele processo.

Fanes observou a garota se contorcer no chão, agarrando os próprios cabelos, enquanto gritava. Ele notou a marca do voto em seu pescoço, o símbolo da família real, mas nenhuma reação escapou de sua feição. Então, ergueu o leque aberto para cima.

— Ei! 

Mas a voz de Edward interrompeu seu golpe final, pois quando o monarca se virou e viu que ele segurava o anel na mão, apontando-o para ele, seus olhos se arregalaram um pouco.

— Quer descobrir por que a dona Sofia me mandou isso?

Fanes franziu a testa, sem entender aonde ele queria chegar.

Edward, após apertar os olhos, inspirou fundo.

— … Estive sentindo essa conexão estranha durante algum tempo, mas nunca respondi o seu chamado. Mas, agora, acho que é o momento correto.

Resmungando para si mesmo aquelas palavras, Edward olhou para a pedra do anel e concentrou-se. E, então, algo absurdo aconteceu.

Um brilho irradiou da jóia, alcançando as janelas, que refletiram a luz com as cores amarelo, laranja e rosa. Aqueles tons, que circundaram a sala como se fossem de um sol poente, rodearam Edward, e o objeto que segurava nas mãos mudou.

O anel se contorceu e cresceu, tornando-se estreito e comprido. Sua jóia desapareceu, tornando-se parte daquele instrumento que era segurado pelas duas mãos frágeis do príncipe. Quando a transformação se concluiu, Fanes engasgou com o que viu. Ele abaixou o leque e, sem entender, olhou para a flauta que Edward segurava.

— … Essa é…

Era a flauta que Teresa usava para tocar no jardim, quando ainda estava viva.

Se bem estava lembrado, seu nome era…

— … “Marie” — eis era o nome gravado no corpo da flauta com letras cursivas prateadas como uma jóia.



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