Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 8 – Arco 3

Capítulo 92: Nós Somos Um

A nobreza, desde os tempos antigos, nada mais eram que um grupo de pessoas que seguiam regras tradicionalistas afim de manterem a honra de seus antepassados e repassar a aura de superioridade aos demais. Tal como qualquer outra família, os Akai participavam dessa mesma linhagem e seguiam as três regras básicas: Orgulho pelo sangue que corre em suas veias, lealdade ao posto que está e diligência em atingir os objetivos em comum. 

Apesar de cada família da nobreza estar determinada a se manter neste patamar tão admirado e digno para pouquíssimos, o método para se manter era diferente. Os Minami foram reconhecidos por seu grande poder de combate e inteligência ao longo das décadas. Os patriarcas que representavam o símbolo do floco de neve em seus peitos recebiam, a cada geração, o poder da Graça Polar — a habilidade de controlar o frio. Fuyuki Minami foi a única de sua família a alcançar o auge de tal poder, criando o inverno dentro de um território fechado. 

Quem diria que aquela que fora censurada desde o início alcançaria tamanha conquista.

Cada família da nobreza recebia o poder de uma graça — as bênçãos dadas pelo Pequeno Sol. Ao serem consagradas com tamanha dignidade e passarem pela aprovação do mundo, aquele que descenderia como o novo líder recebe o poder da graça especial dada a cada família. Aos Minami, foi dada a Graça Polar; aos Fiore, a família real, foi dada a Graça da Espada; aos Al-Hadid, família da nobreza e a representação do antigo país de Polímia, foi dada a Graça do Sol; aos Megalos, a Graça da Luz; aos Over, representantes da pequena ilha Clior, a Graça do Leão; aos antigos Furotos, a Graça Natura; e então, à família Akai, foi dada a Graça do Sangue.

Ao contrário das demais, a Graça do Sangue era uma habilidade que passava em todos os descendentes dos Akai. Entretanto, tal poder necessitava de estímulos para serem despertados, e nem todos eram capazes de alcançá-lo. Como sendo uma família com dons especiais e um estilo de vida difícil, todos os demais sempre os olharam com preocupação e reflexão.

Afinal, os métodos de criação e ensino dos demais não eram nada comparado aos deles, sempre orgulhosos e dedicados em criar os melhores guardiões de todos.

Os membros da família Akai possuíam uma lista de regras bastante simples para decidir se um recém-nascido era digno ou não de permanecer vivo: se não pudessem extrair sangue o bastante para uma amostra considerável usada em pesquisas, era descartado; se fosse incapaz de crescer sem desenvolver qualquer apego a objetos ou pessoas, era descartado; se seu corpo não fosse resistente o bastante aos ensinamentos, era descartado; se era incapaz de aceitar ou seguir as regras da casa, era descartado; se seu poder, até a pré-adolescência, não atingisse o mínimo requerido, era descartado; se quebrassem qualquer uma das três regras básicas da realeza, eram descartados.

Não eram necessárias explicações para justificar o número baixo de membros daquela família. Ao nascer, o recém-nascido passava por testes mentais e físicos para descobrir sua resistência, e retiravam sangue para análise. Em geral, as mulheres que eram descartadas e deserdadas permaneciam nas casas como amamentadoras e mães adotivas. Elas eram usadas para cuidar e criar cada uma das crianças até completar os seus seis anos de idade, devendo ensiná-los o básico e, principalmente, as práticas da famíla: como se portar perante as pessoas, como se dirigir a eles, o que mostrar ou não, como usar suas habilidades, estimular ao máximo seu cérebro e inteligência… Tudo para criarem crianças capazes de seguirem suas ordens sem hesitação.

Houveram aquelas que, até a devida idade, não foram capazes de se submeterem aos métodos, então foram descartadas. Outras vezes, algumas mulheres tentavam escapar com essas mesmas crianças incapacitadas, mas ambos eram imediatamente eliminados e trazidos como exemplo para as demais.

— Ouçam-me: Quem ousar escapar, será descartado. Portanto, se esforcem para atingir os requisitos exigidos pela família — à voz do patriarca, a garota de cabelos negros curtos baixou as íris sem vida para os corpos cheios de sangue — Matem, ou morram. Descartem, ou serão descartados. Cumpram as ordens, ou as consequências chegarão.

A passos lentos, outro homem de cabelos negros se aproximou, pegando pelo couro cabeludo da mulher que segurava nos braços um garoto de três anos. Ela estava com uma expressão de desespero, como se tivesse gritado antes de morrer. Lágrimas escorriam pelo seu rosto, misturando-se ao sangue que viera de seu crânio aberto.

Com um corte liso, Miura separou a cabeça do corpo, que caiu duro no chão. O sangue esparramou ainda mais, chegando aos pés das crianças. Os gêmeos, que observavam a cena sem demonstrar um único sinal de expressão em seus rostos, apenas assistiram a cena em silêncio. As íris vermelhas sem vida, a pele pálida, a neutralidade completa em sua postura… Eram daquilo que precisavam. Uma vez que nenhum dos presentes demonstrou surpresa, nojo ou choque, parecia que o objetivo de levar os cadáveres até o local fora cumprido.

— Limpem essa sujeira — ordenou Miura para as mulheres, e seguiu o patriarca que saiu pela porta de correr.

Kanami, de cinco anos, estava em silêncio. Seu irmão Sora, ao seu lado, permaneceu diante dela enquanto todos eles iam embora. Ele baixou os ombros um pouco e desviou os olhos para a irmã.

— Está tudo bem, agora — disse, e olhou para as mãos unidas que escondiam atrás do corpo. A garota estava tremendo, mas seu rosto nada expressava — Acabou.

Ainda que não houvesse uma troca de sorrisos, os gêmeos eram capazes de se entender facilmente apenas usando os olhos. 

Os dois eram netos do patriarca Shin e filhos de Shin Akai, seu braço direito. Mas, apesar disso, ambos eram constantemente vigiados pelos membros da família e pelo próprio pai. Afinal, ao contrário do comum, foram gêmeos amamentados pela própria mãe durante o nascimento. 

Aquela ato foi permitido apenas durante os primeiros meses, e pouco depois os fizeram abandonar o leite materno por vitaminas e suprimentos que mantinham os nutrientes necessários. Aprenderam a comer o básico, a serem capazes de digerir todo o tipo de alimento e não possuírem gostos em especial. E, é claro, consumiram itens vencidos ou venenosos, forçando-os a lidar com infecções, envenenamentos e criar resistências desde cedo.

Como estavam em fase de crescimento, era importante frisar tais informações em suas mentes. E, dentre as memórias mais fortes deles, estava a cena de sua mãe com uma corda amarrada ao redor do pescoço, pendurada no próprio quarto, anos mais tarde.

Eles a descartaram sem piedade.

Kanami havia chorado durante a noite, naquelas semanas que se seguiram. E Sora, que dormia ao seu lado, afagou seu cabelo e ocultou seus soluços para que não pudessem ser ouvidos. 

— Eu estou aqui, então pode chorar à vontade, irmã — ele abriu um sorriso pequeno — Vou protegê-la.

— … Uhum — ela se aconchegava em seus braços — Eu te amo, irmãozão.

Sora e Kanami, desde seu nascimento, receberam olhares diferentes. Eles nasceram de uma mãe que criou sentimentos por eles, e então se humilhou para que pudesse dar-lhes leite. E, pouco tempo mais tarde, não suportou as consequências disso e tirou a própria vida — foi uma pena que os filhos tivessem presenciado aquilo. 

Miura jamais demonstrou um pingo de tristeza ou compaixão por sua falecida esposa ou pelas crianças. Assim como qualquer membro, tratou-os com frieza e os afastou. Aos seis anos, passaram nos testes de resistência — a choques, queimaduras, envenenamentos — e inteligência — provas e testes psicológicos — e, finalmente, puderam alcançar o estado básico de um membro da família.

Agora que podiam resistir, ao menos um pouco, a circunstâncias como aquelas aos quais foram postos para testar desde novos, era chegada a hora do teste final.

— Vocês passarão sete dias e sete noites nesta floresta. Nos vemos ao amanhecer da oitava manhã.

Essas foram as palavras de Miura ao levar o grupo composto por vinte crianças ao matagal. Era uma floresta fechada, com copas de árvores enormes e um silêncio aterrorizante que fazia os pêlos se arrepiarem. Sons de animais ou insetos eram ouvidos aqui e ali, e alguns dos pequenos se encolheram quando ficaram sozinhos.

— N-Não se preocupem! — exclamou um, determinado — Vamos sobreviver juntos!

Estavam com onze anos na época. Alguns na faixa dos dez, outros dos doze ou treze. Entretanto, a grande maioria presente ali estava entrando na pré-adolescência, época ao qual seus corpos e hormônios se desenvolveriam mais do que nunca — permitindo não apenas o despertar de seus poderes com chi, descobrindo seu elemento correspondente, mas também a experimentar o Instinto Assassino.

Algumas crianças seguiram a ideia de andarem lado a lado para sobreviver. Eles conheciam o básico, então poderiam se virar.

— Nós seguiremos sozinhos — disse Sora, baixo, para o grupo, e então pegou na mão de Kanami.

— N-Não podem! — exclamou uma garota, levando as mãos ao peito — Vão morrer!

— Será mais fácil se formos todos juntos, teremos mais chance de sobreviver!

Sora parou de andar, de costas para todos. Ao seu lado, sentiu o aperto de Kanami em sua palma.

— Vocês ainda não entenderam o propósito desse teste? Estamos aqui para sobrevivermos sozinhos, e não em grupo. — ele virou suas íris frias para o grupo, e franziu a testa — Matem-se e rastejam pela floresta pedindo socorro, mas não viremos ao seu socorro. 

Ao dar-lhes as costas novamente, eles ouviram xingamentos e as demais crianças os chamando de covardes, de grosseiros e torcendo para que morressem sozinhos. Kanami não olhou para trás, mas o abaixar suave de suas pálpebras indicava sua preocupação.

— Está com medo?

— Não.

— Então, não precisa se preocupar. Eu vou te proteger.

A expressão dela não mudou.

— O que foi?

— … Eles vão morrer.

Não foi uma dedução, foi uma frase dita com certeza. Sora desfez a expressão suave.

— Quem decidiu ignorar as regras foram eles.

— Mas nós também estamos andando lado a lado… Não estamos quebrando as regras do teste?

Kanami desceu os olhos para as mãos unidas deles e franziu a testa. Sora, então, semicerrou os olhos.

— Nós somos um.

— … O quê?

— Nós somos gêmeos, então funcionamos como um, certo? Eu não posso ficar sem você, e nem você sem mim. Então, é apenas natural que estejamos sempre juntos.

Foi uma lógica um pouco simples e direta demais, e talvez não tivesse sido feita com a intenção de parecer sentimental. Afinal, Sora não era capaz de expressar tais sentimentos aos outros, e apenas se mantinha perto da irmã. Para o gêmeo, era apenas um instinto natural como o mais velho de ficar à frente da mais nova e ser seu espelho. Então, mesmo que suas inseguranças e sentimentos viessem à tona, ele seria seu escudo e a pessoa ao qual poderia usar como referência para se tornar melhor. Na época, era incapaz de enxergar o que aquilo significava, mas Kanami, ao perceber o carinho transmitido por aquelas ações e palavras, abriu um sorriso doce.

— Sim. Nós somos um, e sempre estaremos juntos.

Eles apertaram ainda mais as mãos unidas e continuaram a marcha pela floresta.

Os dias passaram. Forjando armas com pedaços de madeira e pedras, usaram-nas para matar os animais e se alimentar. Criaram uma fogueira e encontraram o rio, onde poderiam se banhar e beber água. Testaram os cogumelos e frutas da floresta, mordiscando-os e testando seus venenos. Kanami, ao tentar ser corajosa, tomou a frente e comeu uma fruta que a deixou com febre durante um dia inteiro. Sora precisou cuidar dela, e trabalhou por dois para evitar que fossem pegos.

Ele não queria deixá-la morrer.

No caminho para o oitavo dia, encontraram os restos de uma das crianças — possivelmente morta por um animal silvestre. Sora pegou os restos das roupas e sementes que levava, e Kanami fez uma expressão dolorosa. No caminho, ouviram sons de luta e perceberam que eram duas das crianças que se batiam. Eles observaram a cena e perceberam que ambos lutavam por território e comida — aparentemente, a união havia se desfeito não muito tempo depois.

No final, ainda são crianças. Suas mentalidades não mudaram nada.

Sora assim pensou ao ver uma delas enfiar a pedra no olho da outra, e então esmagar sua cabeça a pedradas. O sangue se espalhou e manchou o chão da floresta. Kanami cutucou seu ombro e fez sinal com a cabeça para irem embora, e assim o fizeram antes que o animal silvestre que havia matado a outra criança aparecesse com o cheiro de sangue.

Entretanto, ao contrário do que esperavam, eles não passaram muito longe daquele mesmo cenário. Enquanto Sora andava em busca de coelhos e pássaros para o jantar carregando seu arco feito de galhos e fios de tecido improvisados, foi atacado por um leopardo. Era um animal que estava fora de seu habitat natural, parecendo faminto e muito irritado. Ele fechou seus dentes no pequeno braço do rapaz e, ao sentir seu sangue, pareceu ficar ainda mais ansioso para matá-lo.

— Irmão! — gritou Kanami ao vê-lo debaixo da fera. Suas pernas tremeram e, então, segurando o pedaço de madeira, ela avançou — Afaste-se dele!

Kanami bateu com toda a sua força na cabeça da fera, que rosnou para ela, pronta para saltar sobre a garota de braços abertos após o golpe. A cauda do leopardo bateu em seu braço com força o bastante para machucar, e a garota recuou rangendo os dentes. O felino ergueu sua pata direita para atacá-la, mas o golpe foi impedido pelo braço de Sora, que bateu no pescoço da fera com força o bastante para derrubá-la para o lado contrário.

Quando o leopardo bateu a cabeça, pareceu ficar momentaneamente tonto. E Kanami, pronta para acertá-lo novamente, baixou os braços ao ver o estado de seu irmão. Afinal, com os próprios punhos e unhas, começou a dilacerar o felino. Seus dedos atravessaram a carne como lâminas, seus socos afundaram a cabeça do adversário. Ainda que as garras tentassem se prender nele e os dentes passassem de raspão por suas mãos e braços, o garoto não parou de bater até que o corpo ficasse imóvel. 

Sangue pingava de suas unhas, e os braços que deveriam ter tido pedaços arrancados pela violência dos golpes das garras estavam resistindo mais do que o comum à dor e hemorragia. Sora voltou seus olhos vermelhos para a irmã, assustando-a com a expressão sorridente dele.

O despertar nasceu ao vê-la se machucar minimamente, e Sora percebeu que protegê-la foi o que lhe deu forças para contornar a diferença de tamanho e poder.

— Eu vou te proteger — afirmava ele, mesmo cheio de ferimentos e sangue.

Era o mesmo agora, na floresta, e no passado. Mesmo quando percebiam que Kanami não era tão fisicamente forte e desatava a cansar mais facilmente, com os instrutores se voltando contra ela com chicotes e pedaços de madeira, Sora recebia as punições em seu lugar. 

— Vamos trocar nossos uniformes, não vão perceber — dizia ele.

Na época, seus corpos não haviam se desenvolvido o bastante, então era fácil confundi-los até mesmo pelo tom de voz. Abria as palmas e recebia as chicotadas, as costas ficavam cheias de cortes e os joelhos sangravam ao ficarem por horas em cima de arroz ou milho crus. Eram penalidades simples, mas que o machucavam o bastante para que ficasse um tempo sem andar ou mover-se. E Kanami, então permanecia em seu lugar, por vezes colocando mais esforço do que nunca nos treinamentos para alcançar seu irmão.

Eu preciso ser mais forte.

Era o que pensava, em silêncio.

Não posso chorar.

Refletia, segurando as lágrimas.

Preciso… Protegê-lo, também. Mais forte, mais rápida, mais inteligente… Mais… Muito mais!

— Há, há, há, há, há, há, há, há! Eu consegui, irmão!

Kanami se virou, com um sorriso psicótico, para Sora, que arregalou os olhos e derrubou as frutas que carregava da floresta. Ele desceu suas íris trêmulas para as mãos dela, cheias de sangue das três crianças que estavam no rio, com cortes lisos e quentes em seus peitos e pescoço. As marcas de queimado e o cheiro de carne impregnaram em seu nariz.

— Viu só? Eu me livrei deles, por você! Estavam comendo nossas frutas, caçando nosso jantar e usufruindo de nossa água… Agora ninguém mais poderá nos atrapalhar! — e, então, pegou as mãos limpas dele, manchando-as com o sangue das crianças, e sorriu — Vamos sobreviver, juntos!

Com a chegada da oitava manhã, apenas os dois foram de encontro com Miura, que os aguardava de braços cruzados. Ele franziu a testa para suas roupas cheias de sangue, rasgadas e alguns ferimentos.

— Sigam-me.

Foram levados até a sala do patriarca, que os recebeu naquele mesmo estado. Nem Sora ou Kanami tremeram diante de sua presença, embora em suas mentes a dúvida do que viria a seguir os fizesse observar atentamente os arredores. Eles viram que, próximo da entrada, estava uma mulher com cabelos negros curtos e olhos vermelhos — era Amane, sua tia.

A moça, ao desviar a atenção para eles, abaixou suavemente as pálpebras — foi um gesto que os surpreendeu, pois indicava aprovação. E Shin, ainda não mostrando qualquer emoção em sua face, fez um corte em suas palmas, observando o sangue escorrer.

— Retirem-se — foi tudo o que escutaram antes de serem mandados embora.

Mas, apesar de Kanami demonstrar felicidade durante a noite, sorrindo para o irmão enquanto dormia ao seu lado, Sora estava em silêncio. Seus pensamentos o levaram a refletir sobre o despertar de sua irmã e a forma com que ela matou as três crianças.

… Eu teria sido capaz de matá-los?

Tirar a vida de animais para sobreviver era uma coisa, mas e quanto a de humanos? Ele sabia que, em breve, trabalhariam tomando vidas e precisariam dedicar-se a isso, mas… Ainda parecia difícil de imaginar.

Eu matei aquele leopardo porque avançou contra ela. Mas e se fosse uma daquelas crianças?

Sora imaginou a situação e, imediatamente, seu Instinto Assassino despertou.

Mas, provavelmente, eles não a atacaram. Ela deve tê-los atraído e eliminado um a um. E seus cortes com a pedra… Foram tão lisos. Então, ainda estando pronta para tirar vidas, preza ao máximo por evitar fazê-las sentir dor?

Observando a irmã dormindo, Sora passou a mão por seu cabelo preto.

Se continuar assim, em breve, ela perderá todo o seu charme. A Kanami… Poderia se tornar uma dessas mulheres. Talvez fosse expulsa e torturada como nossa tia.

Ele passou uma mecha de cabelo para trás de sua orelha.

— … Eu vou te proteger. 

Sora não queria que Kanami se tornasse uma assassina fria. Apesar de tudo o que passou, mesmo com as dores que teria que enfrentar, as mentiras contadas e as humilhações… Ele nunca se importou com nada daquilo. Sua prioridade era, e sempre foi, sua irmã.

Kanami, você é uma menina muito gentil.

Ela chorava por si e pelos outros com facilidade. Temia por si e pelas pessoas ao seu redor. Se preocupava com seu irmão à beira da morte e veio protegê-lo, mesmo correndo perigo de vida. Mesmo que devesse descartá-lo para priorizar sua segurança, ela ergueu o pedaço de madeira e avançou. 

E se essa gentileza desaparecer… O que restará? Eu nasci uma casca vazia, e estou aqui apenas porque você também está. Se você… Se minha cara metade sumir, o que aconteceria comigo?

Eles foram gerados como um. Foram criados e tratados como um. E se um deles se fosse, não seria o mesmo que dizer que ambos morreriam?

Sora pegou a mão que estava unida a sua e deu-lhe um selinho.

— Eu sou você, e você sou eu. Seja meu coração, e eu serei o seu corpo. Vou protegê-la de tudo o que estiver em nosso caminho, minha irmã. Então, por favor…

Ele encostou a testa dele na dela, e fechou os olhos.

— … Não me abandone.

Sora seria sincero com seus sentimentos, e a protegeria. 

Com os anos, os dois afinaram suas habilidades e se tornaram jovens prodígios. Foram capazes de concluir as missões de teste com êxito, matando seus alvos sem chamar a atenção e limpando vestígios. E mesmo com o trabalho sendo excepcional, os olhavam torto. Mas Sora jamais permitiu que Kanami passasse por tamanha humilhação, e colocava-se diante dela. Ele sabia que ela desviaria a atenção para o chão ou fingiria que não ouvia, mas seu coração de cristal era frágil o bastante para liberar suas emoções em lágrimas noturnas. E, cada vez mais, Sora endureceu o seu próprio coração.

Para proteger a doçura da irmã, ele se tornaria rigoroso e frio com qualquer um que ousasse se aproximar para feri-la — principalmente pessoas mal resolvidas consigo mesmas, prontas para atrapalhar suas vidas com seus problemas. 

Ryota foi um dos maiores conflitos que precisou lidar, mas, por sorte, ela acabou se provando uma pessoa minimamente respeitável conforme o tempo passou. E, posteriormente, uma boa amiga para Kanami, que lentamente começou a se reencontrar.

Mas e quanto a ele? O que Sora teria feito durante todo esse tempo, que não fosse o mesmo desde o início?

Não, na verdade, mesmo agora…

“Você não será capaz de proteger ninguém.”

… Ainda não era o bastante.

A mesma irmã que chorava em seu colo nas noites frias e solitárias, que pedia desculpas quando ele se colocava em seu lugar pelas punições, que sorria docemente para ele em raras ocasiões, agora estava segurando sua espada contra seu próprio pai. Era uma mulher com uma aura assustadora e, definitivamente, não era mais a mesma garota do passado.

— Por que me olha dessa forma? Não me diga que está irritada.

Kanami continuou descendo as escadas, seus passos se tornavam cada vez mais e mais quentes conforme se aproximava.

 Miura, tendo perdido o braço direito, seu olho e orelha esquerdas, franziu as sobrancelhas e segurou a única haladie que tinha em sua mão.

— Vai me culpar pela fraqueza dele? Ou será que está frustrada por não ter vindo mais cedo?

As marcas dos pés dela deixavam um preto derretido para trás.

— Diga alguma coisa!

O corte deslizado no ar, contendo uma lâmina de calor, bateu de frente com a garota. Ela, erguendo Alhena em proteção, sequer demonstrou dificuldade para se proteger, e continuou descendo as escadas.

— Não há nada para ser dito, pai — respondeu ela, baixo, enquanto erguia as íris repletas de fúria — Vamos encerrar isso de uma vez.

Os passos dela pararam e, agora, com um salto, seu corpo desapareceu, surgindo diante de Miura. Os dois chocaram suas lâminas que queimaram a uma temperatura altíssima, e o ar balançou. O calor atingiu Sora, que assistia a luta deitado. Em sua visão embaçada, apenas foi capaz de ver as luzes da katana de Kanami, vermelha, batendo contra as da haladie de Miura. 

—Aparentemente, você também precisa de uma punição por sua desobediência, Kanami.

— … Sim — as lâminas se chocaram novamente, criando faíscas — Durante todo esse tempo, eu estive sendo deixada de lado e jamais pude provar o meu valor. Eu… Sempre me escondi nas costas do meu irmão. Ele… Sempre me protegeu.

Kanami desferiu um chute no estômago de Miura e então desviou do contra-ataque dele.

— Durante vinte anos, você nos humilhou — ela rasgou um pedaço do cotovelo dele — Então, agora, arcará com as consequências de seus atos.

Miura fez seu poder ferver para superar a temperatura da adversária, mas Kanami igualou-se e ambos continuaram a chocar as lâminas que queimavam como fogo. Seus rastros deixavam marcas de derretimento, e Sora sentiu como se pudesse desmaiar de exaustão a qualquer instante.

Porém, mesmo assim, ele lutou para se colocar de joelhos. Limpou o sangue que manchava seus olhos e lutou para focar a visão, embora fosse difícil graças a troca de golpes calorosos.

Em determinado momento, com Miura elevando suas emoções ao ápice, Kanami desviou de seus golpes como uma sombra, desferindo um corte nos dedos do pai. Não foi o bastante para arrancá-los, mas causou dor o bastante para que ele soltasse a haladie. 

— Acabou, pai.

Com um passo veloz e que fez Sora ficar zonzo, Kanami fincou Alhena no estômago de Miura e seu poder explodiu. Embora sua resistência ao calor fosse alta, ele ainda sofreria com as queimaduras em seu peito. O assassino, tendo perdido ambas as suas armas e a chance de derrotá-los, vomitou sangue no chão. Suas pernas quase cederam, sendo sustentado, por pouco, apenas pela katana.

Miura ergueu sua vista para Kanami, que o fitava. Sua expressão de fúria era bela, quase afiada demais para um rosto como aquele. 

— … Sim, acabou, filha.

À distância, Sora demorou para entender o que aconteceu a seguir. Porém, unido ao tom de sol poente da katana da irmã, ele viu um brilho branco surgir da palma esquerda do pai. 

— Kanami! — o seu grito, que chegou tardiamente, não foi capaz de impedir que Miura segurasse a cabeça de sua irmã com a mão que brilhava em branco.

Sora reconheceu que era um brilho muito semelhante a quando Ryota usava seu poder, mas com uma tonalidade diferente. Na verdade, aquele era…

— AAAAAAAAAAARRRRRRRRRRRRRGHHHH!!!

Kanami soltou um berro de dor alto o bastante para arrancar um tremor no corpo de Sora. Sua visaão, ainda um pouco turva, se ajustou para enxergar a cena. Miura, mesmo perfurado, fez Kanami soltar Alhena ao tocá-la na cabeça, os olhos sendo cobertos por sua palma que brilhava, reluzente.

— … Para!

— AAAAAAAAAARRRGH! AAAAAAAAAAAAH!

— … Para! Para, por favor!

Sora sentiu as lágrimas escorrerem de seu rosto ao ver o corpo de Kanami se contorcer em dor. 

— AAAAAAAAAAAARGH!

— PARA, POR FAVOR! PARA, PAI!

Sora se arrastou pelas escadas, chorando, e sentiu a dor dos ferimentos o atingir com uma força abismal. Mas, foi capaz de apenas descer por um ou dois degraus antes de ver o corpo de sua irmã cair de bruços no chão, duro como pedra.

Ele perdeu o ar. Sentiu que seu mundo se tornou sombrio e o frio atingiu seus poros como uma onda. Não importava como olhasse, Kanami perdeu a consciência de olhos abertos, mas as íris sumiram, deixando à mostra apenas a parte branca de seus olhos. 

Soluçando, Sora se arrastou pela escadaria, ainda gemendo o nome de sua irmã.

— … Kanami… Kanami, Kanami… — ele fungou, desabando em lágrimas — … Kanami!

— Cale-se.

Então, ao ouvir a voz de Miura, sentiu um golpe em seu rosto — foi um chute que imediatamente o fez cair na escuridão da inconsciência.



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