Volume 8 – Arco 3
Capítulo 91: Sangue e Calor
À distância, após fechar parcialmente os ferimentos causados pelo combate, Tom arrastou Luccas pelos corredores. Ele escutava a troca de palavras ficar cada vez mais e mais distante, e o som das lâminas e explosões tremerem o solo balançava seus pés, fazendo-o perder o equilíbrio. Por vezes, voltava seus olhos para trás, procurando uma forma de enxergar o que acontecia, mas sabia que não poderia voltar.
Eles morreriam se fizesse isso. Deveriam rumar para fora do palácio e encontrar um local seguro.
— … Você fez bem — disse ele, baixinho, para Luccas, que ainda estava desacordado — Cumpriu com sua vingança. Agora… Precisamos deixar tudo nas mãos do rapaz.
Enquanto terminava de falar, ouviu o choque de suas lâminas à distância; foi entre Póllux e a haladie do assassino com apenas um braço, que usava toda a sua força para contornar a situação desfavorável. A perda de dois membros importantíssimos para um guardião, para um lutador, havia sido o ponto principal para tornar o combate difícil.
Miura perdeu o braço direito e o olho esquerdo. Os ferimentos não foram fechados ou cicatrizados, então o sangue ainda continuava a escorrer. A dor corroía seus membros e o fazia perder a noção de espaço, por vezes o forçando a tomar distância antes de avançar novamente.
A escadaria, que antes era clara à luz do sol, agora estava manchada de sangue. As paredes foram pintadas pelos respingos, e as movimentações de seus pés apenas fazia tudo aquilo sujar-se mais e mais. Com certeza, o primeiro que visse aquilo após a batalha encerrar tomaria um verdadeiro susto.
Sora avançou com o Instinto Assassino atiçando os pêlos de seu corpo. A habilidade que lhe permitia ganhar ainda mais poder e habilidades no campo de batalha fazia seus olhos vermelhos, normalmente sem qualquer traço de vida, ganhar um brilho afiado. Sob circunstâncias normais, em uma luta divertida, ele estaria rindo. Da mesma forma que no combate contra o Tigre Branco, quando ele e Kanami o dilaceraram com suas lâminas, ambos riram em êxtase até o final.
Aquele era um reflexo do seu despertar. A sede de sangue e pelo divertimento, por algo que fizesse seu sangue ferver era o que permitia usar aquele poder. Os Akai eram não apenas guardiões ideais para qualquer membro da nobreza que esperava excelência nas menores tarefas, eram também lutadores excepcionais, assassinos treinados desde o nascimento para se importarem apenas consigo mesmos, usando e descartando uns aos outros ao máximo.
Uma vez que isso acontecia, o uso do Instinto Assassino, que nada mais era que um aguçar de todos os seus sentidos e habilidades, traçava todos os sentimentos de êxtase que normalmente não sentiriam. Tirar a vida das pessoas era seu hobby, sentir o sangue quente espirrar em sua pele era como tomar um banho quente, rir do sofrimento alheio era como música para seus ouvidos.
Possivelmente, era com essa mentalidade que Miura lutava agora. Ainda que lhe faltassem membros, ainda que suas pernas perdessema a força a cada instante, ainda que tudo ao seu redor fosse sangue e dor, ainda que a pessoa que enfrentasse fosse seu próprio filho… Nada o faria recuar. Com o braço esquerdo, ele segurava a única haladie possível e avançava com um brilho assassino nos olhos. Seu sorriso, sendo um misto de divertimento com desespero, era nítido, e revelava-se de forma cada vez mais sinistra através de suas risadinhas que escapavam de sua garganta.
Ele brandiu a arma branca contra o guardião, a haladie sendo capaz de defender as duas facas kukri com certa facilidade. Era possível virá-la, tornando-a uma espécie de shuriken segurada, podendo ser usada como parte de sua defesa aos ataques, ou como uma investida para fazê-lo recuar. O choque de lâminas faziam o ar tremer, e aquilo apenas atiçava ainda mais a vontade de Miura.
Com a dança, o assassino se aproximou da outra haladie que havia derrubado. Aproveitou-se do corte no ar para abaixar-se, usando o pé para jogar a segunda arma para cima. E, então, segurá-la com os dentes. E então, usando um método louco demais para ser real, Miura avançou contra Sora usando aquela que estava na mão, fazendo-o se defender. Em seguida, esticou o corpo, usando o pescoço como forma de deslizar no ar a lâmina da haladie entre os dentes, rasgando o rosto e orelha do rapaz por pouco — este, que desviou curvando o corpo para trás o máximo que pôde.
Vendo que Miura estava disposto a ir tão longe apenas para vencê-lo, estava pronto para matá-lo a qualquer custo, Sora franziu a testa e usou sua raiva para melhorar ainda mais seu potencial. Com o Instinto Assassino despertado, o que fervia por seu sangue e chegava-lhe ao cérebro não era êxtase pela luta ou felicidade por finalmente poder bater de frente com a pessoa que lhe causou tanta humilhação e dor. O que o fazia lançar-se contra seu próprio pai era fúria.
Sora não era uma pessoa que costumava demonstrar tantos sentimentos. Em geral, sim, os Akai eram sinceros quanto ao que sentiam — tanto que, ao passarem por determinadas situações, principalmente ao que tangiam sentimentos bons, não sabiam como reagir. Normalmente, as expressões estavam relacionadas à neutralidade, ao ódio ou à vontade de matar. Ao contrário de sua irmã, ele era incapaz de se controlar e entender o que o fazia reagir a determinadas situações.
Entretanto, ao longo daqueles últimos meses, o que sentiu em seu coração foi um grande misto de sentimentos novos. Estava sendo capaz de experimentar novos sentimentos, mas não sabia como conectá-los a uma razão plausível. Sua mente não processava a origem deles, e, por consequência, era incapaz de encontrar uma resposta final. Dessa forma, tudo o que poderia fazer era expressar ao máximo aquela emoção incompreensível, e que por vezes o fazia pensar demais.
E, por ter dificuldades em pensar, que abandonou completamente seu raciocínio para concentrar-se na luta. Os avanços de ambos os lados eram ferozes, e a luta que se iniciou apenas com o troque de ataques com suas armas brancas causou rasgos na pele. Por vezes, as haladies passavam perto de atravessá-lo, mas Sora foi capaz de desviar de cada golpe com maestria. Em contrapartida, seus avanços brutos com Póllux e Castor não eram o suficiente para machucar Miura. O assassino profissional estava acostumado com seus ataques — afinal, foi ele mesmo quem os ensinou, em primeiro lugar.
Dito isso, apesar da perda de um braço e um olho, que supostamente deveria lhe dar uma abertura, Miura ainda era um adversário formidável. E, se mantivessem aquilo por mais algum tempo, era bastante possível que perdesse.
A dança de golpes evoluiu e ambos começaram a se locomover. Com o guardião segurando a haladie entre os dentes, eles saltavam e corriam pelas escadas de um lado para o outro, batendo as costas contra a parede antes de saltarem sobre ela, voando no ar para pousar do outro lado do adversário. Mesmo este movimento não fez Miura se surpreender, e ele velozmente defendeu o ataque de Sora com a haladie que segurava nos dentes. A outra voou contra seu queixo, de baixo para cima, mas as lâminas das facas kukri o impediram, mantendo-a no lugar.
As forças se repeliram e ambos deram passos para trás, mas então foram de encontro novamente.
— Você está realmente acabado, hein? Parece que aqueles dois lhe deram trabalho.
Sora soltou uma provocação e sorriu, ao que Miura imediatamente demonstrou irritação. Seus pés deslizaram pelo chão como se estivessem no gelo, e, parando ao seu lado, ele atacou com a haladie que segurava entre os dentes. Sora desviou rolando para a frente, colocando-se em posição de combate novamente.
— O que houve? Seus movimentos estão ficando mais lentos.
Miura cuspiu a haladie e segurou ambas as armas brancas com a mão esquerda.
— Não me provoque, garoto. Estou apenas me divertindo com você.
— Por que estava tentando matá-los?
— Como eu disse, eles foram audaciosos em me desafiar. E, então, apenas receberam as consequências disso — Miura abriu um sorriso largo — Uma morte lenta e dolorosa por me humilharem.
Sora estalou a língua, rindo.
— Seu ego está cada vez mais frágil. Você mereceu essa vergonha.
Miura lançou uma das haladies contra Sora, mas o assassino sequer se mexeu. A arma branca passou voando ao lado de seu rosto, fazendo outro corte leve, mas levando um pedaço de seu cabelo consigo. Alguns fios caíram no chão, e a ponta da haladie cravou na parede.
— Aparentemente, trabalhar para a duquesa o tornou estúpido. Eu deveria ter imaginado esse resultado — os dois se fitaram — Não deveria ter permitido o contrato. Vocês dois se tornaram preguiçosos, uma completa vergonha. Sequer foram capazes de cumprir com seus deveres básicos como Akai, como poderiam se tornar guardiões?
Refletindo consigo mesmo, Miura assim lembrou-se do passado. Sora apenas franziu a testa.
— Isso lhe cabe o direito. Quem decidirá o nosso futuro… Seremos nós.
— Cale-se! — gritou Miura, fazendo mais sangue jorrar de seu olho perdido — Suas insolência não passará impune… Acho que precisa de uma punição adequada.
De repente, um arrepio percorreu a espinha de Sora.
— Huo.
No exato instante em que a palavra que evocava poder foi enunciada de seus lábios, o corpo de Miura ganhou uma pressão absurda o bastante para fazer o guardião semicerrar os olhos. A visão se tornou embaçada graças ao aumento de temperatura, e Sora assistiu a haladie que o assassino segurava se tornar alaranjada, e então vermelha como a cor de suas íris.
Com um salto, a velocidade se tornou absurda o bastante para que desaparecesse a olho nu. No chão, apenas o rastro preto de seus pés permaneceu quando Miura surgiu diante de Sora, e a pressão da temperatura o atingiu como um soco na pele. Era como se estivesse a um palmo do fogo, pronto para tocá-lo.
A haladie entrou em contato com as facas kukri de Sora, e ele recuou imediatamente ao ver ambas derreterem. Póllux e Castor já haviam ganhado algumas rachaduras na antiga luta, e, temendo perdê-las, o guardião recuou para o lado. Ao movimento, Miura cravou os dentes no cabo da haladie que estava na parede e a trouxe para a luta.
— Tu!
Sora entoou o nome do elemento que lhe traria mais poder, e sentiu seu corpo tornar-se mais resistente. Foi como no tempo perfeito, pois Miura avançou, pronto para derrubá-lo. O choque as lâminas ocorreu novamente e Sora foi forçado a recuar mais uma vez; porém, neste instante, Miura desferiu-lhe uma rasteira, levando-o a cair.
O guardião levou um dos braços ao solo, pronto para amaciar a queda e rolar para o lado, mas a haladie desviada imediatamente voltou ao seu curso e fincou-se em seu abdômen.
— Argh! — exclamou Sora ao sentir a lâmina fervente derreter suas roupas e acertar sua carne.
Enquanto se contorcia no chão com o ataque, abrindo novamente o antigo ferimento, Sora estava pronto para chutar Miura para longe. Entretanto, ao mantê-lo naquela posição, o assassino mais velho virou o pescoço de forma que pudesse acertá-lo com a haladie em seus dentes. A lâmina voou contra sua orelha, pronta para atravessar seu ouvido e matá-lo instantaneamente. A muito custo, Sora ergueu as facas kukri e defendeu-se do golpe, contendo-a por uma distância ínfima.
Miura riu ao ver Sora se contorcer de dor, preso ao chão. Seus joelhos fizeram as pernas dele manterem-se paradas — ou melhor se contorcendo — enquanto o guardião lutava contra a dor e o fato de que, em instantes, as suas facas se tornariam material derretido.
Sangue emergiu dos ferimentos e Sora grasnou, tossindo sangue. A lâmina da haladie começou a se mover na direção da frente do estômago, pronto para acertar as entranhas e derretê-las, também.
Graças ao entoar de tu, os machucados não seriam tão severos quanto o normal. A resistência de seu corpo permitiu conter os ataques por um pouco mais de tempo, e Sora usou sua força para desviar o golpe mais uma vez. Ele virou o pescoço para a esquerda, e então a haladie, depois de destruir Castor e Póllux, atingiu sua nuca.
— Aaaaaaargh!
Sora esperneou e chutou, mas não foi capaz de afastar Miura. O assassino observou o mais novo se contorcer, com lágrimas começando a se formar sob seus olhos, e riu abertamente. Àquela distância, a voz estava ao lado de seu ouvido, e ela impregnou seu cérebro. O vórtice de risadas malignas e dor pareceu dilacerar seu cérebro, e Sora percebeu que estava sem saída.
Eu…
As haladies cortavam sua carne e pele como papel, e lentamente se aproximavam cada vez mais de partes vitais de seu corpo. Entranha e pescoço seriam queimados e rasgados.
Sora encarou Miura bem de perto, e os dois sentiram uma faísca mexer com seus corpos.
… Eu não posso perder aqui!
Ainda que a dor fosse insuportável, que sua visão se tornasse turva e as risadas desejassem fazê-lo desistir, ainda que a tortura lenta e maldita o contorcesse da cabeça aos pés, Sora soltou um grito interno e usou todas as forças que tinha para se mover. Isso fez com que as lâminas se aprofundassem, mas ele as ignorou e, então, largando os cabos das facas kukri que não mais existiam, ele passou os braços ao redor do pescoço do adversário.
Miura não entendeu a princípio aquela ideia, e então sentiu seu ar começar a sumir. O sufoco causado pelos braços que se tornaram ainda mais fortes e resistentes, deram a força necessária para que Sora fosse capaz de asfixiá-lo. Porém, sabendo que aquilo não seria o bastante para fazê-lo parar, ele desviou uma das pernas e o prendeu ainda mais ao próprio corpo. Isso apenas deu margem para as haladies se aprofundarem ainda mais em sua carne, e sangue espirrar, manchando suas roupas.
A dor o fez ver estrelas. Sora achou que fosse morrer a qualquer instante, mas o tempo não passava.
Entre a inconsciência e a vida, entre a dor e o sentimento do frio que o abraçava, ele apenas desistiu de sentir. E, dessa forma, focou-se em destroçar o seu inimigo. Ao prendê-lo consigo, e bem perto de seu rosto, o assassino levou seus dentes até a orelha mais próxima, arrancando-a com uma mordida.
Miura, incapaz de berrar, apenas desmanchou as risadas em um grito de dor e desespero. Ele arregalou os olhos na direção de Sora, que, agora agindo como uma fera, cuspiu a orelha arrancada dele para longe. Em seguida, o rosto se pintou com o sangue que escorreu, mas ele o ignorou. Na verdade, quase como se o sugasse para si, como um monstro despertado, ele levou seus dentes para o pescoço do adversário e o mordeu. A dor fez Miura se contorcer, e agora ambos estavam prontos para levarem seus adversários a uma tortura lenta e dolorosa.
Haladies perfuravam carne e a derretiam. Braços tiravam o ar e o asfixiaram. Ao mesmo tempo, a dor de outro membro arrancado o fez ver estrelas enquanto os dentes afiados novamente se afundaram em seu corpo, prontos para arrancar pedaços dele se fosse necessário para sobreviver. Eram como dois leões brigando, prontos para despedaçarem um ao outro. Os olhos vermelhos sanguinários brilhavam, furiosos.
Miura sentiu que perderia completamente a consciência em instantes. Mas, mesmo assim, não deixou de avançar com suas lâminas. Era um processo lento e que demandava esforço de ambas as partes… Mas, eventualmente, um deles precisaria ceder.
… Eu não vou perder! Eu… Preciso ser… Mais forte! Eu… Vou… Proteger…!
Os pensamentos que não faziam sentido subiram ao seu cérebro, e Sora estava pronto para arrancar um pedaço do pescoço de Miura quando uma anormalidade surgiu. Uma figura saltou de uma das janelas quebradas e apareceu no limiar daquele embate. Como se a gravidade não funcionasse ao seu favor, a garota de haori vermelho imediatamente pousou atrás de Miura.
E, então, o chutou.
Ela o levitou no ar com o golpe repentino, fazendo-o perder o ar completamente. Seu corpo quicou e voou pelas escadas, parando na área mais baixa. Sora, tendo seus braços soltos à força, engasgou com o sangue que entrou em sua garganta e tossiu, vomitando. A dor em sua nuca e estômago eram cruéis demais ao ponto de lágrimas escorrerem por seu rosto. Graças ao movimento brusco, a lâmina que cortava seu pescoço passou voando por seu rosto, criando uma linha de corte que chegou até seu nariz.
Sora não conseguia se mover. A dor e a exaustão o fizeram permanecer parado. Embora ele soubesse que poderia se recuperar mais rapidamente do que pessoas comuns, não era uma regeneração perfeita como o poder de Eliza. Era apenas uma resistência maior à dores e ferimentos — e, unindo ao poder de tu, foi realmente muita sorte que não desmaiou antes da chegada da interferência.
Ele viu os passos da jovem passarem diante de si, e então ela se ajoelhar ao seu lado. Ela tirou o cabelo de seus olhos e sorriu para ele.
— Não se mova, irmão. Permita que eu encerre por aqui.
— … O que…?
Sora não foi capaz de encerrar a frase, pois emitiu um gemido de dor quando os ferimentos em seu estômago se abriram, jorrando sangue. Kanami, desmanchando o sorriso, ergueu os olhos furiosos para Miura, que se levantou para olhá-la.
— E, então, você finalmente apareceu — comentou o assassino.
Ela deu um passo adiante, descendo as escadas. Em sua mão, a katana que fervia em poder imbuído de huo balançou a atmosfera. O ar esquentou cada vez mais, e Sora se sentiu dentro de um forno. O calor não ajudava a conter a dor, e ele mal conseguia se mover. As manchas negras da queimadura, da pele e carne derretidas mancharam sua nuca, rosto e estômago, assim como o sangue.
Sua visão turva apenas viu as costas de sua irmã Kanami se aproximar de Miura, que estava à beira da queda, para o ato final daquela batalha.