Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 8 – Arco 3

Capítulo 88: Choque

Na pequena escadaria que dava visão para toda Hera, segurando uma espada simples em uma das mãos e com um sorriso neutro em sua face, Fanes começou a descer. Degrau a degrau, ele se aproximava de seu filho, Edward, que enrijeceu o corpo ao vê-lo apontar a espada na sua direção. Ao invés de fazer o mesmo, talvez por meio choque, meio ainda tentando se convencer de que aquilo não era real, o príncipe apenas inspirou profundamente. 

Ao falar, sentiu uma gota de suor escorrer por sua têmpora.

— Por que aponta sua espada para mim?

O monarca ficou em silêncio. Ele desceu mais um degrau. 

Edward cerrou os punhos.

— Responda! Por que está fazendo isso?

— Porque é necessário.

— O que é necessário? Causar a destruição do povo que tanto te prezou? Matar dezenas de pessoas? Qual o objetivo disso tudo?

Edward disparou várias perguntas em sequências. Ele estava nervoso demais para conter-se. Sentia o corpo tremer conforme seu pai se aproximava, lentamente, passo a passo. A lâmina da espada continha um brilho misterioso, mas ameaçador.

— O que é a Ritus Valorem? 

Silêncio.

— Por que isso? Você está com eles, afinal? Então, desde o início, nunca… Nós dois, nunca…?

Seus ombros tremeram de raiva e Edward encarou o pai. As palavras do príncipe pareceram mudar algo nos olhos do monarca, mas sua expressão não se alterou. Ele parecia realmente determinado a encerrar aquilo de uma vez por todas. 

— … Desde o início, você nunca teve a intenção de me dar sua bênção? Você nunca desejou me passar a coroa?

Ainda que fosse um tópico que parecesse bastante insensível, quando se tratava da relação entre aqueles dois era algo sério. Afinal, repassar a coroa entre gerações não era apenas uma tradição a ser seguida, era também a demonstração da confiança que o anterior tinha por seu sucessor. Era o reconhecimento de suas capacidades e palavras promissoras como futuro rei. 

Era um conflito que ia muito além de uma simples briga entre pai e filho — Edward queria, sim, ser reconhecido. Mas, dentre todos os que estavam ao seu redor, seu maior desejo era receber a aprovação de Fanes. 

Não era à toa que ele estivera tão ansioso por isso durante toda a semana. Não foi justamente por isso que se esforçou além do imaginado para tal? Ainda que seus meios tenham sido frios no início, ele percebeu que, com o cuidado correto, poderiam, sim, serem capazes de se entender. E, dessa forma, durante a coroação, não aconteceria apenas a passagem entre gerações, mas haveria orgulho no discurso e olhos de seu pai ao fazer o ato.

Ao menos, esse foi o cenário idealizado pelo príncipe. 

Fanes parou de andar, ainda no meio da escadaria. Ele baixou sua espada, apontando-a para o chão. 

— O que foi tudo isso que fizemos ao longo dessa semana, então? Se, desde o início, você nunca planejou me dar sua bênção… Por que não disse antes? Se eu soubesse…! Se eu soubesse desde o começo, eu não teria…!

Ele se interrompeu nas próprias palavras e abaixou a cabeça. Haviam lágrimas se acumulando em seus olhos de cor púrpura. Elas se aglomeraram e escorreram por sua face.

Se eu soubesse que desde o começo você me desprezava tanto assim… Se eu soubesse que jamais me olhou com orgulho… Eu não teria me esforçado tanto por isso!

Ainda que fosse uma vontade de seu coração abraçar o povo com seus ideais para o futuro, ser reconhecido pela única pessoa que considerava como família… Receber palavras de carinho e admiração pela única pessoa que esteve ao seu lado desde o começo era seu maior sonho. 

Se Edward fosse capaz de ouvir de sua boca que, desde o início, ele jamais tivera a intenção de lhe repassar a coroa, teria desistido. No mínimo, teria repensado suas próprias ações. Afinal, se mesmo se esforçando tanto para chegar até ali não fora o bastante — e jamais seria —, qual o sentido?

Se nada que fizesse mudaria sua posição, por que se esforçar para começo de conversa?

Ele não queria enfrentar seu próprio pai. Ele desejava ser reconhecido, mudar sua mente através de suas ações e palavras.

Edward não queria lutar contra Fanes. Então, fraquejou e chorou de frustração, raiva e tristeza. Ainda que seu braço lhe cobrisse os olhos para conter as lágrimas, as emoções continuavam a ferver em seu peito e perfurar-lhe o coração.

— Por que está chorando?

Essa foi a resposta dada pelo monarca, que havia interrompido seus passos. Os olhos dele brilhavam com alguma emoção desconhecida para o príncipe. Não era capaz de ler o que se passava em sua mente. Afinal, parecia que a expressão sem emoções não era apenas uma máscara.

Na verdade, ele sempre esteve usando uma, não é? Se todos aqueles momentos que passaram juntos foi uma mentira, se todas as palavras de esperança e olhares fossem apenas omissões… Se, desde o começo, Fanes também estivera vestindo uma máscara para manter consigo suas verdadeiras intenções e sentimentos… O que o diferenciava de qualquer um da realeza?

— Erga sua cabeça e empunhe sua espada, primeiro filho — continuou Fanes, a voz dura e determinada. Era totalmente diferente da que estava costumada a ouvir.

Primeiro filho?

Houve alguma vez que Fanes lhe chamou daquela forma?

Daquele jeito tão frio?

Edward, tendo enxugado as lágrimas que mancharam seus olhos de vermelho, ergueu as íris violetas com aro dourado ao redor das pupilas para encarar seu pai. Fanes endureceu ainda mais a expressão e apontou-lhe a espada.

— Enxugue suas lágrimas, inspire fundo e enfrente-me.

Era uma ordem. 

Mas de quem para quem?

De Fanes para Edward? De pai para filho? De monarca para príncipe?

Quem era aquela pessoa que falava com ele?

A expressão de Edward murchou, mas ele não baixou os olhos novamente. Não parecia que suas perguntas seriam respondidas tão facilmente. Era quase como se ele quisesse que as respostas fossem arrancadas à força. O príncipe podia sentir que não havia nenhum sentimento exposto ao redor daquele homem de cabelos compridos e face delicada como o de uma mulher. 

— Muito bem — disse Edward, fungando uma vez antes de retirar lentamente a própria espada da bainha. A lâmina brilhou à luz do sol, revelando-se como um cristal — Então, caso eu vença, responderá todas as minhas perguntas e me dará a sua benção.

A mente do rapaz estava confusa. Ele não sabia ao certo como agir perante aquela situação. Entretanto, se houvesse a oportunidade de conseguir entender tudo o que acontecia ao seu redor, iria atrás dessa possibilidade. Talvez, dessa forma, fosse capaz de compreender a situação. E, então, tomar uma decisão.

Se suas perguntas e emoções não foram capazes de chegar até o coração de Fanes, então sua espada o alcançaria.

Mas poderia ele ferir o próprio pai?

Por que estou tão inseguro? Por que estou me fazendo tantas perguntas? Por quê…?

E, enquanto assim refletia, ele viu Fanes saltar o restante dos degraus e cortar o ar na vertical contra sua cabeça, forçando-o a erguer Gore e fazer as duas lâminas se chocarem.

***

Pelos corredores e escadarias que seguia, Ryota acelerou os passos. À distância, podia ouvir sons de combate que poderiam vir ou não de outras alas do palácio. Enquanto atravessava a construção, notou que não haviam mais pessoas ali dentro, o que significava que a evacuação havia sido concluída com sucesso. No entanto, o embate ainda acontecia do lado de fora.

Os seus avanços pareciam ter diminuído de ritmo — algo natural, já que não apenas a queimação em seu pescoço parecia ligeiramente mais forte, mas também carregava em suas costas uma garota na faixa dos treze anos de idade. Ainda que fosse pequena e magra, querendo ou não, era um pequeno peso. 

Ryota negou todos os pedidos dela para irem teleportando. Afinal, Marie estava exausta e precisava estar ao menos um pouco estável para se encontrar com o irmão. Além disso, algo dentro da garota a fazia acreditar que o príncipe não estaria exatamente parado em meio a toda essa situação.

Segundo os guardas que mantinham a segurança do lado de fora, o Edward não saiu. E, se ele não está enfrentando ninguém nestes corredores, então… Ele só pode estar lá em cima.

Era apenas uma aposta mental dela, mas Ryota quase podia sentir a conexão que havia entre ambos. Agora que a queimação da marca do voto se tornara incômoda ao ponto de doer, sabia que era questão de tempo para que coisas piores acontecessem. Ela nem conseguia imaginar qual deveria ser a intensidade de incômodo que Edward deveria sentir agora.

Me espera mais um pouco, Edward! Eu tô quase… Chegando…!

Assim pensou Ryota, continuando seu caminho pelos corredores vazios.

***

Os passos de Sora começaram antes mesmo que sua mente pudesse processar os movimentos. Ele se aproximou de Miura, que estava em um estado terrível, e o encarou com fúria.

— Vou matá-los — anunciou Miura com um sorriso horrendo, mas havia pura raiva transbordando de sua voz.

E então, ele rasgou o ar contra o pescoço de Luccas, que havia caído de bruços no chão. Mas, antes que a carne fosse cortada, a faca kukri de Sora desviou o golpe para o lado e o guardião chutou o outro, afastando-o imediatamente. Parecia que a dor de ter o braço arrancado era demais até para ele suportar.

Miura se encolheu, praguejando. Ele arregalou seu único olho para Sora e apontou a ponta de sua haladie, manchada de sangue, para ele.

— Afaste-se.

— Você passou dos limites!

— Eles apenas receberam o que mereciam.

— … Mentecapto.

Sora assim o chamou e olhou para o estado dos dois homens inconscientes no chão. Eles estavam péssimos. Haviam cortes por todas as partes de seus corpos, alguns mais profundos do que outros. O sangue que escorria era demais para ser contido. A hemorragia apenas continuava, imparável, e Sora se desesperou. 

Ajoelhou-se ao lado de Luccas, tentando virá-lo, mas percebeu no ferimento que atravessou seu torso e paralisou, arregalando os olhos.

— … Estão praticamente mortos.

— CALE A BOCA!

Sora gritou imediatamente ao ouvir a voz de Miura.

Sua respiração perdeu o compasso e ele se viu enfurecido. Seus olhos brilharam e ele ativou o Instinto Assassino imediatamente para tentar controlar as próprias emoções. Caso não o fizesse, provavelmente apenas mataria aquele homem ali mesmo. 

… Por quê? Por que estou com tanta raiva?

Mesmo ele não encontrava uma razão para suas reações. Estava com raiva por Miura ter perdido o controle? Era por Luccas, uma pessoa importante para sua mestre, ter sido ferido? Era seu orgulho que fora manchado? O que estava errado? O que havia abalado seu coração a esse ponto?

Em que momento Sora havia perdido o controle de si mesmo?

Em que momento ele passou a se importar com os outros?

Nesse instante, eles ouviram um som. E então, ambos se viraram para o homem que, mesmo sangrando, com o nariz quebrado e a face praticamente destruída, se ergueu para se aproximar de Luccas. O capitão da guarda baixou os olhos quase vazios, sem vida, para o colega deitado.

Tom parecia menos pior do que Luccas, embora não estivesse exatamente bem.

— … Vou… Curar… — disse ele, aos murmúrios, como se lutasse para manter a consciência, e se abaixou na altura de Sora — … Primeiros… Socorros.

Ele tinha dificuldades para falar, mas o sentido da frase ainda chegava aos seus ouvidos.

— Fujam — ordenou Sora, colocando-se de pé — Eu cuido dele.

Os dois assassinos se fitaram com brilhos ameaçadores no ar. Sora, com fúria; Miura, com um sorriso meio irritado e meio divertido. Parecia que a luta acabou fazendo sua sanidade despencar. E, àquela altura, o rapaz acreditava que não havia forma dele retornar ao normal que não fosse através da força. Ou isso, ou com Miura matando os três.

— Consegue se mover?

— … Sim.

— Leve-o para o corredor e cuide de seus ferimentos. Então, vão embora.

O capitão da guarda, ainda um pouco zonzo, apenas assentiu. E então, quando passou o braço de Luccas ao redor de seu pescoço, sentindo muita dor no processo, ouviu de suas costas:

— E, quando ele acordar, diga que a garota está bem.

Tom inspirou fundo e começou a lentamente descer o lance de escadas manchado de sangue.

Mas não parecia que Miura permitiria aquilo tão facilmente. E, em um piscar de olhos, avançou como uma sombra contra a dupla que lutava para sobreviver. O capitão sequer se virou quando as facas kukri se chocaram contra a haladie e Miura soltou um berro de frustração ao ter seu golpe bloqueado perfeitamente.

Ao contrário de Luccas e Tom, Sora era capaz de ler seus movimentos.

E, quando Luccas finalmente chegou a um local seguro, com Tom começando a invocar o pouco de habilidade que tinha com shui para curá-los, a luta na escadaria se tornou ainda mais violenta.

***

Quando as duas espadas se encontraram e o som agudo soou em seus ouvidos, Edward sentiu dor. Não porque a força contida nos braços de um homem magro como Fanes era absurda, mas porque o choque do contato o lembrou da queimação em seu pescoço.

A cada minuto, se tornava mais e mais insuportável. Ele estava surpreso que, no processo, sua própria pele não se avermelhou de tanto calor que sentia. Agora, a sensação de queimadura parecia pinicar todo o seu pescoço, descendo por suas costas e quase chegando ao lombar. Fazendo uma expressão dura para aquela sensação, o príncipe firmou os pés no chão e saltou para trás. 

No processo, ele soltou a mochila amarela que ainda estava em suas costas no chão, colocando-a perto da porta. Em seguida, levou a mão livre para a marca do voto e a tocou. Era engraçado que a palma não conseguia sentir a pressão, mas, lentamente, o calor se estendia para todos os lados de seu corpo. 

Edward fez outra expressão de dor e conteve o gemido quando o calor aumentou no ponto da marca, quase como se ferro quente tocasse sua pele por alguns segundos e se afastasse. Suor escorreu por seu rosto e pescoço.

— Não se distraia.

Não demorou mais que alguns instantes para que, após ter seu golpe desviado, Fanes avançasse novamente. Ele brandia a espada como um especialista, e prontamente se aproximou de Edward. O golpe passou direto e a lâmina fincou o ar, mas rapidamente voltou a bater contra Gore. Havia uma nítida diferença na qualidade de ambas as armas, mas, mesmo sob aquela circunstância, parecia que o príncipe estava em desvantagem.

Natural, afinal, enquanto precisava lutar contra o pai que o traiu, estava sendo lentamente queimado vivo.

Isso o desconcentrou e impediu de dar o seu melhor no combate. Assim, quando ambos começaram a trocar golpes casuais com as espadas, as lâminas se chocando várias e várias vezes, era Edward quem estava na defensiva. Ele recuava seus passos o máximo que podia, mas Fanes parecia disposto a encurralá-lo. 

À primeira vista, quando se observava o comportamento e físico de Fanes, ninguém poderia dizer que havia ali a mentalidade de um espadachim. Era uma pessoa que parecia magra e fraca sob as roupas grandes demais. O sorriso e palavras sutis acompanhados de sua aura infantil davam-lhe a impressão de ser um rei inocente e incapaz de ler as entrelinhas. Uma pessoa manipulável e fácil de se aproximar.

Em contrapartida, essa mesma pessoa agora empunhava uma espada contra ele usando uma expressão perfeitamente dura. Nenhuma emoção escapava. Através de seus movimentos lisos, Edward percebeu que seu pai outrora aprendera a arte da espada. Não parecia estar perto de ser alguém absurdamente poderoso, mas certamente não poderia subestimá-lo pela aparência.

— Não pense.

— Ugh!

Edward soltou um grunhido quando Fanes pisou em seu pé e o afastou com um golpe da coronha da espada no estômago. Imediatamente, a descarga de dor cresceu como um relâmpago e atingiu o cérebro, fazendo-o se encolher. Parecia que a queimadura da marca do voto não apenas o distraía, o fazendo se cansar nas menores coisas — ao mesmo tempo, qualquer ferimento causado tinha sua intensidade aumentada.

— Leve isto a sério ou não poderá me derrotar, primeiro filho.

— … Não me chama assim.

Com toda a força que conseguiu, o príncipe respondeu. Ele limpou a saliva que escorreu de sua boca e ergueu o corpo novamente. Na mão direita, ergueu a bela espada Fiore perante o corpo, como que se preparando para a nova leva de ataques.

E então, após um instante que pareceu levar uma eternidade pelo silêncio, o príncipe murchou a expressão de dor para uma de melancolia.

— … Você me odeia?

A pergunta foi feita com tamanha tristeza que pareceu mexer com Fanes. Ao menos, seus olhos cintilaram e os músculos de seu rosto endureceram, mas novamente voltaram ao lugar quando ele fechou os olhos.

— Não vai me responder? — ele riu sozinho — Que cruel.

Os dois se entreolharam mais uma vez. O clima entre pai e filho não se tornou ameaçador em nenhum momento, e ambos pareciam apenas estar trocando golpes por uma razão estúpida. Ao menos, quando via Fanes se calar diante de tudo o que era dito, era assim que o príncipe se sentia.

Os olhos do monarca, após se abrirem e virem sua face, desceram para a espada real. Para Gore.

E, neste instante, as duas íris se arregalaram. Fanes engasgou e baixou os ombros, desfazendo a postura de combate. 

Edward não entendeu a razão da reação e apenas piscou, confuso.

— … Isso… É…

A voz engasgada de surpresa de Fanes fez Edward olhar para a própria mão direita e entender o que o deixava tão chocado. O monarca olhava fixamente para o anel que estava em seu dedo anelar.

— … Por que você possui isso?

— Foi o presente da dona Sofia durante a Cerimônia de Benesse. Não se lembra?

Quase como um estalo, Edward recordou-se de que, na verdade, essa era a primeira vez que o monarca o via. Se bem se lembrava, sequer o mostrou ao pai quando recebeu, e desde então estivera guardado em seu quarto.

Edward ergueu as íris violetas para o pai e percebeu que ele havia, mais uma vez, baixado a espada. Porém, agora, sua expressão neutra desmanchou-se em uma pensativa, quase triste.

O ar se tornou subitamente pesado e Fanes apertou os lábios, parecendo conter um turbilhão de emoções.

O sol atravessou as janelas e iluminou o cenário em que estavam, refletindo ambas as espadas e, por fim, a jóia que estava naquele anel.



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