Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 7 – Arco 3

Capítulo 87: Covardia

Sentados diante um para o outro, as costas encostadas contra a parede, Sora olhou para Marie e afinou a visão. Desde que haviam sido capazes de derrotar Roger e os aprosopos, a exaustão tomou conta de ambos e eles decidiram descansar um pouco. O assassino ainda estava inteiro, embora um pouco ferido graças ao golpe profundo que tomara no estômago até um tempo atrás. Porém, nada demais.

Em contrapartida, a garota, ao perceber que a ameaça se fora, acabou desmaiando imediatamente. Sora a deixou descansando, percebendo que ela não deveria estar acostumada a usar tanto o seu poder. Uma parte dele desejou apenas seguir em frente, deixando-a para trás. Entretanto, um outro pedaço entendeu que largá-la ali poderia ser perigoso.

Não que ele se importasse com ela, é claro. Na verdade, havia apenas o sentimento de cumprir um dever em seu coração, esse que o fazia ressentir de deixar para trás uma pessoa que sua mestre jurou proteção. O mesmo teria sido feito por Luccas, provavelmente. 

Sora soltou um suspiro e apurou os ouvidos quando sons de passos alcançaram seus ouvidos. Haviam se passado cerca de alguns minutos desde que tudo acabou. Os corpos dos aprosopos ainda estavam no chão, assim como o de Roger. Imaginando que eram reforços, ele se colocou de pé e levou a mão até sua faca kukri, pronto para sacá-la ao menor sinal de perigo.

Entretanto, quem surgiu correndo foi uma figura conhecida. Era uma garota de cabelos negros e olhos azuis usando uma roupa branca cerimonial, correndo desgonçadamente e com uma expressão amarga. Notando-a, Sora relaxou os ombros e Ryota arregalou os olhos.

— Ah! Mas o que é que você tá fazendo aqui, cabelinho?

— Este é o seu cumprimento? Péssimo, tente de novo.

— Nossa, que rude! E eu aqui preocupada com você!

Os dois se aproximaram e trocaram palavras casuais. Ryota abriu um sorriso e desceu os olhos para o ferimento dele.

— Isso-

— Foi apenas um arranhão.

— Não parece um arranhão pra mim! — retrucou ela — Você devia dar um jeito nesse sangue todo!

Ela bateu o pé e exigiu que consertasse a hemorragia que insistia em continuar. Sora soltou um suspiro cansado e passou a mão na nuca.

— Vai cicatrizar.

— Mas você pretende continuar lutando, certo? Isso vai te atrapalhar.

O guardião franziu a testa, sem querer dizer que ela tinha razão. Então, apenas se calou.

— Estou bem — disse ele, agora mais baixo e de forma que ela pudesse realmente acreditar em suas palavras.

Não era como se ele fosse dizer “olha, na verdade eu tive meu estômago perfurado por uma espada!”, pois isso claramente apenas a deixaria ainda mais nervosa. Em contrapartida, Sora não estava mentindo. Não tinha tanta dificuldade para andar ou se movimentar. Ryota era incapaz de ler suas expressões e dizer se ele sentia dor ou não, mas apenas pelo esforço dele em tentar convencê-la do contrário um pedaço dela acabou cedendo.

Ainda não convencida, ela apenas soltou um suspiro e olhou ao redor.

— Mas o que foi que aconteceu aqui? Esses caras apareceram de novo?

— Sim. Enquanto seguia em direção ao palácio, fui interceptado pelos aprosopos e seu suposto líder.

— Aprosopos?

Uma vez que Ryota estava por fora dos nomes e explicações, Sora imediatamente lhe explicou. Depois de ouvir, seu semblante se tornou melancólico.

— … Pessoas que desistiram de suas próprias vidas… — foi o que murmurou, unindo as sobrancelhas.

Sora lhe deu um olhar lateral, sem entender o que a afligia. Sua atenção desceu, também, para as roupas completamente destruídas pelos prováveis embates que passou para chegar até ali. E, devido a isso, o rapaz foi incapaz de respondê-la ou encontrar uma forma de consolá-la.

Ora, ele era Sora Akai, alguém treinado para matar, torturar e aproveitar-se daqueles que estavam ao seu redor. Não era como se ele fosse capaz de expressar seus sentimentos adequadamente ou entender o dos demais.  

Mas, mesmo assim, ele se sentiu na necessidade de evitar continuarem naquele tópico que a desconfortável e pigarreou.

— Marie está aqui.

— O quê? — imediatamente, ela desviou a atenção para ele — Onde?!

Os dois se aproximaram da menina que estava inconsciente e Ryota se ajoelhou ao lado dela. O sangue de seu nariz havia secado e ela parecia realmente cansada. A garota de cabelos negros tocou o rosto da menina e a chamou, baixinho:

— Marie? Ei, Marie?

— … Hmm?

Foi uma cena que lhe trouxe alguns flashbacks desagradáveis, mas Ryota tentou ignorar isso e apenas se preocupou em tentar saber o estado da garota que estava recostada contra a parede. Imediatamente ao despertar, Marie segurou a mão quente da outra e abriu um sorriso.

— … Ryota?

— Sim, sou eu. 

Com a outra mão, Marie tateou até encontrar o próprio colar com o botão e o segurou também.

— Como você tá? Ela lutou? — perguntou a Sora, então, virando-se.

— Um pouco.

— Não vai me dizer que ficou usando o teleporte pra lá e pra cá!

Ao ouvir o sermão dela, Marie se encolheu.

— E-Eu não tive escolha.

— Mas por que você tem que ser sempre tão cabeça dura? Para de fazer as coisas sem pensar!

— Olha quem fala… — murmurou Sora, alto o bastante para que elas pudessem ouvir.

Ryota apenas lhe deu um olhar irritado e voltou-se novamente para a menina.

— Se machucou? 

— Não, só tô um pouco cansada. 

— Ótimo. Então, agora você precisa ir embora, entendeu? É muito perigoso.

Marie ficou em silêncio por um instante.

— Não, eu vou com vocês.

— O quê? Mas-

— Eu vou encontrar o meu irmão.

Ela falou com tanta determinação que Ryota engasgou.

— Não ligo se tô fraca. Eu só quero… Encontrar ele antes que seja tarde demais.

Assim dizendo, a menina tateou a parede até se colocar de pé. Ryota fez o mesmo e, ainda segurando sua mão, a apertou.

— … Tem certeza?

— Sim.

Foi como se perguntasse a ela qual era esquerda ou direita — e ela lhe dera uma resposta que soava como óbvia. Por um instante, Ryota se preocupou com o que encontrariam caso continuassem seguindo em frente — afinal, ela estava indo encontrar Edward. Estava contente por sua decisão, mas naquele estado…

… Será que foi mais ou menos assim que o tio Jaisen se sentiu quando eu fiquei falando que queria encontrar o vovô?

Eram comparações bem extremas, mas Ryota quase podia entender seu nervosismo em tentar impedi-la. Ao mesmo tempo, uma parte dela desejava que fosse capaz de encontrá-lo e ter sua impressão por si mesma.

Ainda que não seja como ela esperava, Marie tem o direito de saber a verdade e conhecê-lo.

Foi isso o que concluiu mentalmente, percebendo que era aquilo que gostaria que tivessem dito a ela.

— Tá legal, então vamos. Mas eu vou te carregar.

— Hã?!

— Vai ser um problema se você acabar se cansando nas escadas e, até lá, você pode relaxar um pouco.

Sequer houve espaço para reclamações, pois Ryota imediatamente se agachou e pegou suas pernas com os braços, enrolando-os ao redor do corpo. Marie, desequilibrada, agarrou o pescoço dela e apoiou o queixo em seu ombro.

— … T-Tá — foi sua resposta, meio nervosa. Ela parecia estar constrangida, mas não houve tanta resistência assim.

Sora ficou um pouco impressionado ao ver o quanto a garota parecia ceder seu orgulho diante de Ryota. 

— Eu vou procurar o príncipe — disse ela, virando-se para o guardião — E você?

Sora abaixou o olhar.

— Estou procurando Miura.

— … Certo. Mas não se descuida, e toma cuidado! — Ryota apontou o dedo indicador contra o rosto dele — Vê se pára de se machucar à toa e ser teimoso!

O guardião abriu um sorriso.

— Digo o mesmo.

Depois de se despedirem, os dois seguiram em frente, passando por caminhos diferentes. Ryota seguiu para a direita; Sora, para a esquerda. 

Enquanto tudo isso acontecia, nas escadarias, outro combate continuava.

Ao contrário do anterior, ele estava sendo bem mais imparcial e digno de ser definido como uma verdadeira tortura.

Afinal, não importava o quanto Tom e Luccas avançassem ou se defendessem, os movimentos de Miura eram simplesmente absurdos demais para serem previstos. Ao contrário do início do combate, em que ambos os lados pareciam ter conseguido, ao menos um pouco, igualar-se, agora as coisas descarrilaram de vez,

Quem poderia ser capaz de acompanhar o movimento de uma sombra? Quem seria capaz de defender-se de quatro lâminas que atacavam como se fossem parti-lo ao meio? Quem seria capaz de atacar quando os olhos do assassino brilhavam em um vermelho tão sanguinário, quando seu sorriso meio divertido, meio irritado, estava estampado em sua face?

A aura de um Akai era aterrorizante o bastante para fazer os joelhos de qualquer um ceder. Mesmo Luccas, que outrora se encontrou com eles, estava se sentindo aterrorizado. As mãos dos dois espadachins se encheram de calos que abriram ferimentos, fazendo sangue manchar as palmas. Em seus corpos, diversos cortes foram desferidos, causando machucados grandes e que se cruzavam. 

Agora, mesmo que se afastassem para recuperar o fôlego ou preparar uma estratégia, não havia mais tempo. Miura estava impaciente e irritado. Dito isso, ele não permitia que nenhum deles fosse longe demais ou passasse muito tempo fora de seu alcance. Se divertia em vê-los se desesperarem, em ver as duas formigas lutarem pela sobrevivência. 

E Miura, ainda que quisesse, — mas não queria —, poderia interromper a luta e dar-lhes a oportunidade de escapar. Sim, poderia ter feito isso. Ter tido misericórdia de seus estados lastimáveis. 

Mas um desafio era um desafio. Seria “desonroso” para eles fugir com o rabo entre as pernas quando haviam sido eles mesmos a partirem para cima dele, certo?  O que diriam aos outros quando descobrissem que apontaram suas espadas para o guardião do rei e quase morreram, voltando para suas casas se arrastando como insetos?

As trocas de golpes continuavam. Tom e Luccas, encharcados de sangue da cabeça aos pés, ainda brandiam suas espadas. Ferimentos eram feitos uns sobre os outros, mas eles não podiam recuar. Suas pernas tremiam e o medo de morrer estava estampado em seus olhos, mas os dois ainda continuavam. Se Miura não parasse, eles não seriam capazes de se afastar.

Nesse ritmo…

Os pensamentos negativos de Luccas começavam a tomar forma. Enquanto se defendia dos ataques de Miura, que rasgavam o ar e seu corpo, e ele apenas era capaz de se defender, franziu a testa.

… Vamos realmente morrer.

Luccas ergueu sua espada e evitou o golpe que passou raspando por seu antebraço. 

— Vamos, vamos, vamos! Venham! O que foi? Estão se borrando de medo, é? — provocava o guardião com um sorriso divertido — Cadê a coragem, capitães?!

Coragem?

Luccas nunca teve isso, para começo de conversa. Ele era um homem simples, com visões práticas de mundo e que se obrigou a esconder-se por anos a fio. A palavra ideal para defini-lo era apenas covarde.

Nós vamos morrer.

Miura esfaqueou sua coxa e o chutou para trás, fazendo-o cambalear. E então, refletindo o ataque de Tom, deu-lhe um golpe no nariz com o cotovelo. O capitão deu alguns passos para trás, sentindo o machucado doer e sangue escorrer por seus orifícios como uma cachoeira.

Estamos mortos. Acabou.

Deitado de bruços no chão, tal foram os pensamentos de Luccas.

Eu fui um estúpido. Como achei que seria capaz de derrotá-lo?

Foi apenas um sonho de criança. Uma motivação baseada em sentimentos que não se igualam ao verdadeiro patamar do inimigo. 

… Marie.

Ele pensou na menina que sofreu nas mãos daquele homem que, agora, rasgava as articulações do braço esquerdo de Tom. Miura dava risadinhas baixas, mas assustadoras, enquanto o espancava. 

Se eu morrer, como você vai se sentir? 

Ela certamente ficaria triste.

Poderia continuar vivendo sem mim?

Provavelmente, não.

Mas, se minha vontade de acabar com Miura e de encontrá-la novamente forem em sentidos opostos, o que eu deveria fazer?

Ele deveria, de novo, fugir com o rabo entre as pernas?

Deveria ele, um antigo capitão da guarda, um homem que falhou nas coisas mais simples, virar as costas? Mas, dessa vez, não para outra pessoa, mas para si mesmo?

… Se, no fim das contas, eu vou continuar sempre fugindo e fugindo… Por que eu não simplesmente saio correndo?

Se a espiral de perguntas sem respostas circundasse sua mente e ele, mais uma vez, fosse incapaz de resolvê-lo, qual deveria ser sua decisão? Será que poderia apenas fechar os olhos, tapar os ouvidos e selar os lábios, como fez com Teresa?

Se vou correr de qualquer forma, se ainda existe força nas minhas pernas para me colocar de pé…

Luccas endireitou a postura e segurou sua espada, firmando os pés no chão ao erguer-se.

Seus olhos bicolores brilharam.

… Se eu for correr de toda forma, por que não ir em direção ao meu inimigo?!

— Raaaaaaargh!

Quando Tom derrubou sua espada e o golpe certeiro viria, Luccas gritou e avançou. Os ataques de Miura se voltaram contra ele, e o ex-capitão defendeu-se. Imediatamente, sentiu a perfuração no peito e vomitou sangue. 

— Então, acabou — disse o assassino, rindo — Esse será o seu fim, Luccas!

— Talvez.

Com a mão esquerda, Luccas segurou o pulso da mão que afundava a lâmina em seu corpo e a segurou.

— Mas, pelo menos…

Uma segunda espada cortou o ar e, com ela, levou um membro. Miura sentiu a presença e a aproximação, mas não houve tempo de resposta o bastante quando Tom decepou o braço esquerdo dele com um único golpe. 

— Seus merdinhas!!

Miura arrancou a haladie do peito de Luccas, que cambaleou para trás, e deslizou no ar um chute. Acertou a canela no rosto do capitão e o fez cair no chão, inconsciente. Aquele foi seu último ato de forças antes de finalmente ceder.

Luccas, no entanto, permaneceu de pé. Ainda que a dor e a ardência inundasse seu cérebro, o impedindo de pensar… Ainda que a cena de Miura, com o membro faltando, fosse ligeiramente agradável… Ainda que o assassino tivesse se virado para dar o golpe final nele também…

— Urgh! — defendeu-se do golpe com toda a força que tinha, passando a única haladie restante para o lado.

Mesmo que estivesse completamente machucado, agora era capaz de enxergar melhor os estragos que poderiam fazer. Agora, mesmo que caísse, poderia ser capaz de, no mínimo, frustrá-lo o bastante para manchar seu orgulho.

— Isso é pela Marie!

Ao berro, depois que a haladie teve seu ataque desviado — e não havendo outra para compensar a abertura —, Luccas desferiu um corte de cima a baixo. Infelizmente, não foi capaz de arrancar o pescoço dele, pois o assassino imediatamente recuou a cabeça. Entretanto, um estrago fora feito em seu rosto.

— Aaaargh!

O olho direito dele recebeu um rasgo, fazendo sua visão tornar-se escura por um instante. O grito de dor e surpresa escapou de sua garganta e, enfurecido, Miura se virou para Luccas.

— Morra!

A espada dele foi arrancada de suas mãos com o choque de lâminas e, por fim, o assassino chutou o joelho dele, que se deslocou para trás, quebrando. O corpo de Luccas caiu duro no chão, e sangue continuou a se espalhar. 

As poças vermelhas mancharam toda a escadaria, continuando a crescer cada vez mais. Praguejando, Miura amarrou perfeitamente o ombro do qual a hemorragia escapava, estancando o sangramento ao menos um pouco. Seu olho direito fora retirado dele, assim como um de seus membros mais preciosos.

— Seus merdinhas. E então? Conseguiram sua vingança? Hã? Me falem!

Miura, irado com a vitória ao custo de tantas perdas, pisoteou a cabeça de Luccas várias e várias vezes. O corpo não se moveu. Sangue espirrou e espichou enquanto se movimentava. A expressão do assassino se contorceu, tornando-se cruel, frustrada e assustadora.

— … O que está fazendo?

Até que uma voz conhecida chegou aos seus ouvidos, e Miura virou lentamente o rosto para a pessoa que apareceu ao pé das escadas.

Sora arregalou os olhos para o sangue que pintou o chão e as paredes. E, por fim, seus pêlos se arrepiaram quando viu o estado de Luccas e Tom.

Eles estavam… Mortos?

“Você é lento. Se continuar assim, jamais conseguirá proteger ninguém.”

Tais foram as palavras ditas a ele por um inimigo honrado.

E agora que elas se tornaram verdadeiras, atingindo o coração de Sora como uma lâmina… 

O QUE VOCÊ FEZ?!

… Ele soltou um berro de fúria grande o bastante para ecoar pelos corredores do palácio.



Comentários