Volume 7 – Arco 3
Capítulo 86: Anuência
— E então?
— “E então”, o quê? Fala direito!
Ouvindo as reclamações dela, Sora soltou um suspiro pesado.
— Conseguirá usar os teleportes?
— Há! Acha que tá falando com quem? Respeita a minha história, cara!
— … Um “sim” era o suficiente. Sendo assim… Prepare-se.
Para os padrões de Sora, aquelas palavras foram realmente gentis. Em verdade, não havia preocupação nelas, mas apenas a cautela necessária com uma pessoa que precisava ser protegida e era importante não apenas para sua mestre, mas também para sua irmã. Quando tinha isso em mente, o Akai conseguia se concentrar no combate e ter noção do que precisava fazer.
Como antes, o estado dos aprosopos era catastrófico. Afinal, eles lentamente voltaram a circulá-los e estavam prontos para atacá-los a qualquer instante. As figuras encapuzadas se moviam como sombras, segurando espadas ao lado do corpo. Elas atacariam imediatamente assim que se aproximasse, isso era certo. Enquanto fosse capaz de saber os seus arredores, poderia continuar lutando.
O problema era que, agora, ele precisava se preocupar com mais uma pessoa.
Isso não me trás boas memórias…
Lutar sozinho e lutar ao lado de alguém que precisava de proteção eram coisas totalmente diferentes. Quando estava com Kanami, havia a segurança de suas habilidades que podiam acompanhá-lo, além do quesito experiência em trabalharem como uma dupla. Era completamente diferente quando lutava contra um adversário perigoso com Ryota ou Marie ao seu lado.
As facas kukri em suas mãos foram apertadas e Sora se preparou. Afastando-se da garota, deu um, dois passos adiante. Isso pareceu atiçar os aprosopos, que fizeram o mesmo. Ao contrário das criaturas na cidade, eles não pareciam ter a inteligência de um animal, andando como bandos atrás de uma presa. Assim como na Cerimônia de Benesse, seu objetivo não era exatamente matar, mas ganhar tempo.
Com mais um suspiro fugindo de seus lábios, o assassino olhou para as duas companheiras que segurava nas mãos.
— Me emprestem sua força… Castor, Pollux.
Depois de sussurrar para suas próprias facas, Sora abriu os olhos e saltou no ar, misturando-se ao ambiente. Como se fosse capaz de se tornar o próprio vento, seu corpo moveu-se velozmente, alcançando o grupo que se aproximava. Em um instante, a chacina logo recomeçou.
Cortes eram desferidos contra os pescoços, peitos e pernas dos adversários. Ao invés de lisos, o golpeamento era bruto e profundo, demorando-se o bastante para fazer o ser sofrer antes de cair de joelhos e começar a morrer lentamente, a hemorragia se tornando cada vez mais forte.
Enquanto o assassino dançava à sua frente, a garota de cabelos loiros permaneceu parada. Ela não moveu um único músculo, mas concentrou tanto quanto podia sua atenção nos sentidos. Agora que um deles fora completamente privado dela, precisava se esforçar para contar com os demais. Naquela circunstância, em que o som de algo rasgando o vento e de passos eram dados, de grunhidos guturais saindo pela garganta indicando sufocamento, de sons ocos alcançando seus ouvidos quando coisas batiam contra o chão… A captação era perfeitamente sentida por ela.
O cheiro impregnado de sangue vazava e continuava a se espalhar. Ela conseguia, aos poucos, entender quais vinham de corpos velhos e quais eram recém feitos. Havia uma pequena diferença entre eles.
Mas, dentre todos os sentidos que trabalhavam, havia aquela visão de luzes que a fazia ser capaz de detectar presenças como a de Sora. Como silhuetas com cores que não poderiam ser distinguidas através do sexo, a menina apenas era capaz de ter noção onde estavam e, é claro, se elas seriam ameaçadoras ou não.
Enquanto o assassino tinha aquele tom mais forte, porém um pouco longe de se tratar de um coração totalmente ruim, as demais figuras eram como grandes traços cinzas sem qualquer mescla. Não havia degradê ou qualquer brilho em suas auras. De forma resumida, não aparentavam ser más, mas também estavam bem longe de serem boas pessoas. Eram quase como seres completamente mortos, sem qualquer traço de vida.
Marie sentiu um arrepio percorrer seus braços e afinou os olhos. Aquelas pessoas…
… Quase me são familiares. Onde foi que senti uma falta tão grande de vida, antes? Ah… Foi na prisão, não é?
Abraçando a si mesma, ela refletiu em silêncio e chegou a conclusão que a cena que “via” era incômoda por se tratar de um bando de seres que sequer poderiam ser chamados de humanos lançando-se por pura e espontânea vontade para a morte. A ausência de “alguém” por baixo daqueles encapuzados era nítido — afinal, eles não poderiam ser sentidos nem como uma aura quente ou fria. Afinal, estavam apenas existindo.
— … Imperdoável.
Usar tantas vidas que foram perdidas ao seu bel prazer como se fosse algo óbvio, algo natural, era cruel. Marie era incapaz de enxergar, mas as mudanças profundas nas cores da pessoa que estava parada atrás de todos os aprosopos era clara: Uma pessoa vil que se aproveitava do desgosto alheio não poderia, tão pouco, ser chamado de ser humano.
Enquanto esses pensamentos passavam por sua cabeça, alguns encapuzados se aproximaram sorrateiramente. E, assim que eles ergueram suas espadas e rasgaram o espaço em que estava, a garota desapareceu — mas não porque havia se teleportado, mas se agachou ao ponto das lâminas passarem por seus cabelos. Àquela altura, para uma menina que estava entrando na pré-adolescência, geralmente era esperado que seu corpo passasse pela fase da puberdade. Entretanto, Marie ainda possuía o corpo de uma garotinha, então sua elasticidade e magreza eram úteis a tal ponto.
Além disso, havia também o teor de que, mesmo sendo uma garota pobretona que cresceu nas ruas roubando comida para sobreviver, aprendendo um pouco de tudo para tentar ser útil à pessoa que cuidou dela, era esperado que pudesse se virar em situações de perigo.
Afinal, nem sempre Luccas estaria lá para protegê-la.
E Marie era, acima de tudo, uma pessoa com uma coragem grande o bastante para se tornar quase inconsequente nas próprias ações.
— Hiááá!
Com um gritinho, a menina deu uma rasteira nos três homens que a rodearam, derrubando-os de uma única vez. Os aprosopos poderiam portar armas brancas capazes de matá-la, e Marie poderia ser uma menina sem qualquer resistência física caso fosse acertada, mas suas habilidades em relação à sua velocidade e sagacidade não poderiam ser subestimadas.
Dito isso, mesmo os encapuzados não eram fortes o bastante para ser considerados guerreiros, então até uma garotinha como ela poderia derrubá-los. No mínimo, torná-los incapazes de causar danos a Sora, o único dentre os dois que podia matar adequadamente.
Quando as espadas foram soltas, Marie as pegou sem pensar duas vezes. E então, desgonçadamente, a menina se concentrou para teleportá-las para longe. Não foi uma distância enorme, mas alguns metros foi considerável o suficiente para deixar os encapuzados atordoados. Eles poderiam ser muitos, mas não eram inteligentes o bastante para raciocinar como seres humanos comuns.
Isso exigiu um pouco mais de esforço que o normal — afinal, ela não estava acostumada a teleportar coisas além dela mesma —, e a garota inspirou fundo para voltar a se concentrar.
— Aê! Cuidado aí!
Ao grito de Marie, Sora não se virou. Ele sentiu sua presença desaparecer e surgir, um instante depois, abaixo dele. De costas um para o outro, o assassino apenas deslizou as íris vermelhas para o sorriso confiante da jovem.
— Vou te dar uma mãozinha, beleza? Então vê se acaba com todos eles bem rápido, ou vamos ficar aqui até semana que vem!
O assassino franziu a testa, se sentindo ofendido. Porém, não retrucou, e apenas lançou um chute poderoso como um coice contra o peito de um homem, lançando-o para longe. Lentamente, cadáveres voltavam a se acumular, mas os aprosopos vinham em igual quantidade a se amontoar. Uma vez que um mar de pessoas negras os circularam e Sora percebeu que nem conseguia mais enxergar Roger…
— Tsc — reclamou ele, estalando a língua.
— Pensa rápido!
Em um piscar de olhos, os aprosopos ergueram suas espadas. Ao mesmo tempo, Marie abraçou Sora e os fez desaparecer, surgindo a pouco menos de um metro de distância do guerreiro de cabelos loiros. Roger, ao vê-los, apenas piscou. Ele parecia um pouco entediado.
Entretanto, os dois sabiam que o maior problema não era seu humor, mas a presença dele.
— Manda bala, cara!
— Não precisa ficar me dando ordens.
Trocando palavras, Sora fincou a lâmina de Castor no peito de um encapuzado e o rasgou para o lado, aproveitando o impulso para decapitar outro homem que se aproximava. Deu um passo na direção de Roger, que os observava.
— Iih!
Ouviu o grito agudo de Marie, que, atrás dele, se encolheu com as mãos na cabeça ao quase receber um corte no ombro. Em seguida, como que calculado, outro aprosopo usou sua altura para desferir um corte na vertical por suas costas.
Estalando a língua, Sora lançou-se no chão e deslizou até a garota, quebrando o joelho do encapuzado que estava pronto para cortá-la. Em seguida, segurando uma das facas kukri na boca, pegou a espada do próprio homem e cortou sua cabeça ao meio, exatamente no nariz. A mesma lâmina foi usada para matar com apenas um golpe os demais que se acumulavam.
— Foi mal! — disse ela, sorrindo, antes de se erguer e teleportar para as costas de um aprosopo, roubando sua espada e batendo com a coronha em sua nuca com toda a força. O corpo duro caiu no chão, mas a menina já havia sumido com a espada, surgindo por trás de outros dois para rasgar os joelhos por trás — Tomem isso!
Sora observou os movimentos dela e usou do momento em que ambos se ajoelharam, perdendo o equilíbrio, para cravar Castor e Pollux em seus crânios, atravessando as lâminas por seus ouvidos. Mais uma vez, Sora e Marie trocaram “olhares”, como se reconhecessem a presença um do outro, e voltaram a lutar.
Lentamente, enquanto o assassino tirava vidas e a menina usurpava armas e botes criados por aprosopos, o mar negro de pessoas passou a diminuir. Aquela chacina, que mesmo parecendo durar horas, passando apenas alguns minutos, começou a cansar a garotinha loira. Após usar o teleporte por tempo o bastante para perder as forças, sentindo uma tontura que quase a fez cambalear, Marie sentiu quando Sora a segurou antes de cair.
Ela soltou um arfo.
— Acho que não tô preparada pra… Usar isso o tempo todo… Mals aí…
— Consegue nos teleportar mais uma vez?
Àquela altura, Marie precisou usar boa parte de sua atenção para focar na aura poderosa que vinha da lateral deles — de Roger.
— Sim.
— Será o bastante — Sora, sentindo-a passar um dos braços por seu pescoço e apoiar-se nas suas costas, firmou as pernas no chão — Segure-se.
Mais uma vez, a figura do assassino desapareceu e deslizou como uma sombra pelas figuras encapuzadas. A passagem de Sora foi boa o bastante para se aproximarem de Roger, que, ao vê-los chegar, abriu um sorriso.
— Então, finalmente decidiram se aproximar?
— Fica parado, não, cara! — exclamou Marie, rindo e apontando o dedo indicador para o espadachim — Ou vai ficar beeeem solitário!
Roger apenas franziu a testa para a provocação infantil dela e deu um passo adiante. A cimitarra que portava se virou um pouco, pronta para se defender do avanço de Sora, que chocou lâmina com lâmina, mandando o guerreiro para trás, arrastando seus pés.
O assassino encarou o adversário, mostrando os dentes.
— O que houve, Akai? Está exausto?
— Nem um pouco! — respondeu Sora prontamente, sem um único tom de mentira na voz.
— Ainda bem.
Com um sorriso desafiador, Roger ameaçou o guardião com poucas palavras.
— Yang!
Sora arregalou os olhos quando, de repente, a espada de Roger começou a brilhar e se tornou um feixe completamente branco. Era como a mais pura luz, capaz de cegá-lo se encarasse a lâmina por tempo o bastante.
— Cuidado!
O assassino, ao ficar estagnado no lugar, franziu a testa quando escutou a voz de Marie. Então, afastou as facas e saltou para trás, dando um mortal. A intenção era evitar o possível ataque que viria — Sora, mesmo conhecendo aquele elemento, jamais o vira pessoalmente.
Mas parecia que não foi o suficiente. Afinal, no mesmo segundo que seus pés alcançaram o solo, Roger, estava ao seu lado, rasgando seu tronco ao meio com o corte diagonal.
— Ugh! — soltou o assassino ao sentir o mundo vibrar e sua visão mudar de ângulo, surgindo às costas do adversário. Quem o salvou, por um triz, foi a garota loira que ainda estava em sua retaguarda.
Ela se agarrou em seus ombros e deu um tapa na nuca dele.
— Idiota! Não percebeu que ele tá usando uma técnica diferente?! Não vai pra cima do nada! Quer morrer cedo, é?
— Quieta!
Os dois gritaram um com o outro, mas Sora tinha que ceder — afinal, Marie estava correta. Roger havia invocado o poder de seu elemento, de yang. Ainda mais rápido que um trovão ou qualquer ataque que o assassino poderia desferir, o espadachim cortou o local onde antes estava, fazendo um som agradável. Em termos de comparação, seria semelhante ao “vuoom” de um sabre de luz.
— Olha pra frente! — alertou a menina, de novo, virando o rosto dele para a direção de onde Roger novamente avançava.
Sora estalou a língua quando a cimitarra, brilhando em branco, avançou contra seu peitoral aberto. O assassino imediatamente se defendeu com Castor e Pollux, cruzando-as diante de si. Mais uma vez, o choque de lâminas fez tilintar um som e pequenos raios se espalharam.
— … O quê? — murmurou o assassino ao ver que algo estava estranho.
Afinal, as duas facas kukri lentamente começaram a rachar e ceder sob o poder da cimitarra.
Percebendo isso, Sora desferiu um chute no abdômen do adversário, esperando afastá-lo. No entanto, seu reflexo, que de repente ficou acima do normal, segurou o golpe e o fez puxar a canela do rapaz.
— Ugh! — dessa vez, foi Marie quem fez um som de esforço ao teleportá-los novamente, impedindo que a espada de Roger fincasse no peito de Sora ao cair de costas.
— … Ei! — disse o assassino, virando-se para a menina ao vê-la segurando a própria cabeça. Um fio de sangue escorreu por seu nariz e ouvidos — Você disse que só poderia teleportar mais uma vez!
— … Normalmente, sim.
Sora entendeu que ela havia se esforçado um pouco a mais para protegê-los da derrota. Afinal, duas vezes seguidas, o assassino foi pego desprevenido — e teria sido morto caso Marie não interferisse. Ele se calou, o que fez a menina rir baixinho.
— Qual foi? Não fica assim. Eu falei que ia te ajudar, não foi? Então a gente vai até o final… Mesmo que eu precise ficar sangrando um pouco. Não é nada demais.
Para uma criança comum, ver sangue escorrendo por seu nariz seria motivo de surpresa e desespero. Para Marie, no entanto, parecia apenas ser parte da aposta que fazia em Sora para a vitória. Ela era uma menina fraca e não muito esperta, mas sabia improvisar nos momentos certos e tinha coragem de sobra. Uma vez que as qualidades compensassem, mesmo que um pouco, os defeitos, ela era capaz de continuar.
Marie estava sobrecarregando seu cérebro ao usar o teleporte em sequência e concentrar-se para enxergar as auras. Era um exercício difícil de se fazer, principalmente em meio a um combate. Entretanto, ela já esperava que algo assim pudesse acontecer.
— Não se distraiam — foi o aviso de Roger, que surgiu agachado diante da dupla.
Marie agarrou-se nas costas de Sora. O assassino, em reflexo ao ataque, desviou o corpo da cimitarra que passou por baixo de seu suvaco. Então, avançou contra o peitoral aberto do adversário, rasgando-o com suas facas. Porém, em um deslizar de olhos, Roger virou o pulso e se defendeu, trazendo a espada exatamente onde as kukri acertariam.
— … Merda! — praguejou Sora.
— Não perde a cabeça — alertou Marie em seus ouvidos — Se concentra. Eu vou criar uma abertura.
As lâminas, depois de se chocarem, fizeram ambos se afastarem com um salto para trás. Sora olhou preocupado para Castor e Pollux, afetados pelo poder de Roger. Havia uma pequena rachadura que parecia ter sido feita não com uma batida entre espadas, mas como se algo quente e liso os atravessasse e esfriasse as lâminas em seguida.
— Você? — indagou o assassino, deslizando as íris vermelhas para a loira.
— Ou o senhor aí tem alguma ideia melhor? … Não tem, né? Então cala a boca e me escuta — após as palavras duras dela, Marie abaixou a voz e mudou o tom — Se as suas facas não podem bater de frente com a espada dele, é só arrancar fora os braços dele.
— Esse era o seu plano?
— Se ele não puder segurar a espada, não vai poder lutar — concluiu ela, simples assim — Além disso, deve te dar tempo o bastante pra acabar com ele depois, certo?
Era uma aposta difícil, e Sora duvidava que fosse dar certo. Haviam mais contras do que prós naquele plano. Afinal…
— Não sei se consigo acompanhar a velocidade dele… — sussurrou o guardião, franzindo a testa.
— Ué, pensei que os Akai podiam fazer tudo.
Lutando contra a vontade de apenas jogar a menina para longe, o assassino inspirou fundo e controlou os próprios nervos.
— Dá teu jeito.
— E isso é forma de falar?
— Onde eu cresci, se você não conseguia fazer alguma coisa, devia se virar pra arranjar outra forma de resolver o seu problema. Era matar ou morrer, roubar ou passar fome.
Sora ficou em silêncio com a explicação dela e olhou para Roger, que se aproximava a passos lentos. Era quase assustador que, em menos de um instante, ele poderia estar ao lado deles se quisesse. Mas, mesmo assim, ciente de que ambos bolavam um plano, o guerreiro apenas respeitou o tempo deles e mantinha a passagem — como se lhes desse um tempo limite.
Em contrapartida a isso, ao ouvir a experiência da pequena garota em suas costas, o guardião refletiu sozinho.
Matar ou morrer, não é…?
Eis uma experiência que ele conhecia perfeitamente bem. Nesse sentido, quando o assunto era usar unhas e dentes para protegerem a si mesmos ou alguém querido, eles eram semelhantes. A postura de Sora mudou um pouco e seus ombros relaxaram. Ele sentiu que havia ficado chocado demais com as habilidades do adversário.
Não combina nem um pouco comigo.
Riu sozinho da própria falta de coragem e apertou o cabo das facas nas mãos.
— Vamos.
— Manda bala, cara!
Sora e Roger avançaram um contra o outro e, mais uma vez, chocaram lâmina com lâmina. O som que estavam enjoados de escutar se repetiu várias e várias vezes conforme os cortes eram desferidos, os ataques eram repelidos e, lentamente, as lâminas de Castor e Pollux cediam.
Marie, estando grudada nas costas do guardião, não desgrudou a visão da aura de Roger. E, por vezes, teleportou os dois para vários pontos cegos do espadachim. Ele, então, velozmente voltava a acompanhá-los no embate, estando claramente acima dos dois em questão de habilidade.
Em um determinado momento, foi Roger quem surgiu nos pontos em falso da dupla — em especial, nas costas de Sora, visando atingir a garota que era responsável por boa parte dos problemas que ele enfrentava. O guardião, no entanto, ao perceber o corte que viria, girou os pés em um movimento brusco que fez Marie cair. Entretanto, enquanto desviava a cimitarra do adversário para baixo com uma mão, Sora retirou o haori azul que usava e lançou-o para a garota.
Marie foi impedida de cair brutalmente contra o chão graças àquele puxão, ao haori que a envolveu, e apenas sentiu um pequeno impacto nas costas. À sua frente, o som de lâminas soando ainda acontecia.
— … Droga — reclamou ela, sentando-se e tapando o nariz que sangrava cada vez mais.
Ela ergueu a visão para a dupla se movendo, e sentiu o cheiro de sangue. Sentiu quando os cortes atingiram os braços e torso do guardião, que sofria, mesmo com o Instinto Assassino ativado, para manter o ritmo dos golpes.
— Você é lento — comentou Roger com tonalidade superior — Se continuar assim, jamais conseguirá proteger ninguém.
Uma veia de raiva saltou na testa de Sora e ele deu um golpe com o pulso no nariz de Roger, fazendo-o sentir dor pela primeira vez. Porém, ao invés de reclamar, o guerreiro sorriu.
— Tu!
Sora invocou o poder que tornou seus ataques mais brutais e, assim, o sangue que escorria de seu corpo começou a aumentar. A pressão que fazia o corpo levar ao seu próprio limite em troca de força permitiu ao assassino aumentar o número de danos no adversário. Cortes e perfurações eram feitas, e lentamente os dois começaram a serem feridos.
Eu preciso… Teleportar, nem que seja só mais uma vez!
— Aaaaaaaaarrrghh! — com um grito propositalmente alto e agudo, a menina avançou com uma corrida desleixada e então saltou, agarrando nas costas de Roger — Vê se cai de uma vez, seu merda!
— Garota mal-educada!
— Ah!
Marie recebeu uma cotovelada no rosto antes mesmo de poder fazer algo e caiu de costas no chão. A cimitarra e o corpo de Roger, que se moviam na velocidade da luz, se viraram e rasgaram o ar na vertical, prontos para matar a menina.
Sora viu aquela cena se desenrolar diante de seus olhos e sentiu seu corpo ferver. Ele não queria que as coisas acabassem daquele jeito. Ele não queria que as palavras de Roger se tornassem verdadeiras.
… Eu… Vou protegê-la!
A aura poderosa que avançou contra ela foi impedida. Afinal, uma outra se colocou na frente, trocando de lugar com ela. Marie viu a espada de Roger atravessar o estômago do assassino, rasgando na diagonal, e parar. Em seguida, o guardião, com as íris brilhantes, brandiu sua faca kukri contra o corpo do adversário. Uma das mãos segurou o pulso do braço direito que manteve Roger parado, a outra, segurou Pollux e decepou o braço direito do guerreiro.
O membro arrancado caiu no chão, largando a espada brilhante ainda na cintura do assassino. Sangue espirrou e escorreu de Sora e Roger, que sentiram a dor eletrocutar seus cérebros.
— Ainda não! — exclamou o loiro, que, com o braço restante, segurou a cimitarra antes que pudesse cair no chão.
Ou foi o que ele achou.
— Garota maldita! — foi o que ele gritou quando Marie a roubou, segurando-a com a própria vida antes de teleportar para uma distância segura.
— Não dê as costas para mim.
O aviso de Sora foi acompanhado de um, dois cortes nas costas de Roger. E então, as lâminas se cravaram em seu corpo, retirando sem piedade o outro braço. Ao impulso e dor, o corpo do homem caiu de costas tendo espasmos. Ainda que a dor fosse insuportável, que a visão começasse a escurecer e os grunhidos de dor de Roger começassem a se tornar pequenos soluços, ele não se rendeu.
Os olhos rosas observaram o assassino, com as lâminas cheias de sangue, se aproximar. Com o queixo erguido e uma expressão de dor, Roger lentamente abriu um sorriso para ele. Não de convencimento ou tristeza, mas de respeito.
— Finalize-me — disse ele, fechando os olhos.
Era um pedido que poderia ter sido considerado vergonhoso para um Akai — afinal, era uma palavra de aceitamento da própria derrota. Roger havia perdido, e confessou isso sem qualquer remorso. Sora era incapaz de entender os sentimentos que se passavam no coração daquele homem, mas foi capaz de perceber que não haviam mentiras em suas ações.
Ao contrário de outros que enfrentou ao longo de sua vida, que no final choramingavam, se arrependiam ou choravam por si mesmos, o homem diante de si não demonstrou nenhuma outra reação que não fosse a mais pura estima pela jornada trilhada.
Se, naquele momento, não fosse ele ali presente, mas talvez Fuyuki ou Ryota, teriam elas perguntado a respeito da vida daquela pessoa que morria? Haveria empatia ou a vontade de entender o coração de alguém que foi seu inimigo e desejou sua morte? Será que, justamente por se tratar de um tipo completamente oposto aos ideais de nascença do guardião, o mesmo foi incapaz de dar-lhe tal satisfação?
Sora afinou as íris e olhou para Marie, que se aproximava a passos lentos. A cimitarra havia perdido seu poder, voltando a se tornar apenas uma espada comum. Ela parou logo acima do rosto do homem e o observou.
— O que foi? — perguntou ela ao perceber a atenção do assassino nela.
Por uma razão desconhecida, Sora não conseguiu finalizar Roger de imediato. Ele precisou olhar para a menina uma vez, como que esperando sua permissão para fazer isso. Entretanto, parecia algo idiota de se perguntar diretamente — afinal, os dois sequer se Roger e Marie sequer se conheciam.
Como que entendendo sua momentânea hesitação, a menina baixou o rosto de novo. E então, ao ver que mesmo agora o espírito forte de Roger nunca pereceu, que nem o medo, a frustração ou a tristeza pela morte mudaram a forte cor bordô de seu espírito, Marie apenas assentiu com a cabeça.
Sora se aproximou do rosto do adversário deitado e se abaixou. Sua expressão se tornou imediatamente neutra.
— Adeus, Roger.
— … Mande saudações ao seu avô.
O assassino inspirou fundo.
E, por fim, tomou-lhe o seu último suspiro com um único e liso corte.
Ao menos, essa poderia ser a sua forma de demonstrar respeito pelo homem que morreu, agora, por suas mãos.